Se a entrevista com Daniela fosse uma imagem, seria a de um trampolim: na sequência do impulso de cada pergunta, as respostas dispararam-nos para o alto, num misto entre o perder o chão e o expandir os pontos de vista; importava, depois, esmiuçar cada tema e ir ao fundo das questões. Num movimento contínuo ao longo de duas horas, cada resposta catapultou-nos para mais um salto.

Na conversa, que decorreu sem formalismos, Daniela reconheceu: "Apresento-me à sociedade de uma maneira que não é convencional. Admito que as pessoas sintam estranheza por aquilo que não conhecem”.

Mais conhecida pelo seu trabalho enquanto ativista, Dani, como gosta de ser chamada, é formada em astrofísica, trabalha em engenharia de software, gosta de fotografia e, na música, tem especial interesse pelo violino e pelo piano.

No dia 17 de novembro, esteve presente no encontro “O homem promotor da igualdade”, no ISCTE, onde foi falar sobre interseccionalidade [cruzamento de várias dimensões de discriminação], sob a perspetiva do movimento transfeminista.

Na nota biográfica do programa do encontro, assumes-te como "trans, não-binária, pansexual, anarquista relacional". O que significa cada um destes termos?

Tem que ver com os vários eixos de identidade que uma pessoa tem. Primeiro, do ponto de vista da identidade de género, sou trans, porque não me reconheço no género que me foi atribuído à nascença.

Isso quer dizer que as características físicas do teu corpo não correspondem à forma como te sentes?

Não necessariamente. Estamos habituados a um discurso que tem muito que ver com o facto de a corporalidade não estar correta, mas pode ser uma questão identitária apenas. Há muitas pessoas trans que não querem fazer mudanças ao corpo. Simplesmente não se identificam [com o género atribuído à nascença].

O que é, então, a identidade de género?

É a maneira como se sente o género. É uma experiência pessoal, não tem que ver com a corporalidade. Tudo o que conhecemos em termos de género é: biologicamente, um homem é "assim" e uma mulher é de outra maneira. O que estamos a dizer é que um homem ou uma mulher pode ser de várias maneiras do ponto de vista do corpo.

Portanto, uma pessoa pode sentir-se homem num corpo que habitualmente designamos de mulher.

Sim. Se se identificar como tal, é uma pessoa trans por autodeterminação. À nascença o que é assignado é aquilo que se vê: se tem uma pilinha, é um rapaz; se não tem uma pilinha, é uma rapariga. O género com que as pessoas trans se identificam corresponde à sua vivência pessoal - expressão, performance, tudo. Nesse sentido, defino-me como trans porque a minha identidade de género não é coincidente com o sexo que me atribuíram à nascença.

O que te faz sentir isso?

Durante muitos anos, só conhecia dois géneros - homem e mulher. A minha perspetiva era sempre: se eu não me sinto homem, então é porque me sinto mulher. Entretanto a minha desconstrução foi um pouco mais longe e, neste momento, a realidade é que me identifico como pessoa agénero. Ou seja, não me identifico com género nenhum.

Com nenhum ou com os dois?

Com nenhum. É uma forma de não-binarismo.

Do conjunto de termos de que falávamos no início, estás a referir-te agora à parte de te identificares como não-binária?

Sim. No entanto, quando uma pessoa é agénero tem de perceber como se encaixa melhor na sociedade. Eu identifico-me mais com aquilo que é designado socialmente como mulher. Sou uma "demigirl", ou seja, uma pessoa agénero que se identifica mais com o espetro feminino. Isto parece complexo, mas é mais simples do que parece.

Para mim também é importante a bandeira política que isto carrega. No momento em que eu me assumo como trans, estou a fazer uma reivindicação política. O direito de poder viver a minha expressão, o meu sentir em pleno, sem restrições institucionais, sociais, etc.

"Como no hospital já sou reconhecida como mulher, já não posso fazer o exame PSA, porque as mulheres não têm próstata. E eu tenho próstata"

O que diz o teu cartão de cidadão?

Que sou uma mulher.

Se pudesses escolher, o que é que diria?

Eu preferencialmente retirava toda essa informação. Acho que não é necessária.

Não?

A Segurança Social não precisa de saber se sou homem ou mulher, as Finanças não precisam de saber se sou homem ou mulher. Não é uma informação pública relevante. No máximo dos máximos, nem no contexto clínico precisam de saber se sou homem ou mulher. Precisam de saber que partes do corpo tenho, para ser tratada de acordo com essas partes do corpo.

Fazer uma descrição das partes do corpo de cada um numa ficha médica não se torna incomportável?

Pode ser mais simples. Vou dar um exemplo prático: como no hospital já sou reconhecida como mulher, já não posso fazer o exame PSA, porque as mulheres não têm próstata. E eu tenho próstata. O exame não devia ser para homens ou mulheres, devia ser para quem tem próstata. Outro exemplo: quando fiz criopreservação de espermatozoides, também não podia, porque uma mulher não pode dar espermatozoides. É preciso pensar como é que as coisas são feitas. É uma questão que se calhar demora algum tempo, mas é possível fazer. Tem de haver estratégias, porque estes casos já existem.

Pretendes fazer alterações ao corpo?

Quero mudar algumas coisas, mas não vejo isso como uma necessidade. Para muitas pessoas a autoidentificação [do corpo] com o género em que se reveem é importante. Para mim, é relativamente importante. Vou-me aproximando, mas quero fazer faseadamente. Não quero fazer tudo de seguida.

Porquê?

Porque a minha experiência de ser trans é também vivenciar a minha transformação corporal. É sentir este processo. Não quero saltar de um lugar para o outro, sem sentir as fases que estão pelo meio. Cada um tem a sua identidade corporal, que é a maneira como quer expressar o corpo para o mundo. E a maneira como eu trabalho o meu corpo deve ser uma coisa que eu decido. É o meu direito à escolha.

Não é artificial fazermos alterações em função de como queremos expressar o nosso corpo?

O que é que na nossa vida não é artificial? Uma pessoa que faz uma cirurgia reconstrutiva é artificial? Uma pessoa que tem uma tatuagem ou um piercing é artificial? Uma pessoa que faz uma mamoplastia é artificial? Não. Na sociedade o corpo é única coisa que realmente nos pertence. E temos o direito à autonomia de decidir como o queremos.

Há limites?

Podemos pensar no que é ético e no que não é ético.

O que é que não é ético?

É muito difícil dizer isso na relação que temos com o corpo. No limite, podemos fazer tudo. Uma das coisas que nos constrange mais é que eticamente não se pode remover órgãos que estão em plenas funções. Por isso é que há tantos problemas com as pessoas trans. Porque estamos efetivamente a remover ou a alterar órgãos que estão funcionalmente bons.

"Entrar no modelo de anarquia relacional implica, até politicamente, a pessoa desfazer-se de toda a noção que tem de relações"

Esse é o problema?

É um dos argumentos usados. Mas, no momento em que não se está a fazer mal a ninguém, acho que eticamente o que cada um faz consigo pode ser uma escolha sua. No entanto, são umas linhas muito ténues. É preciso ter em atenção aqui o que se discute. Percebo as salvaguardas acerca do que se pode e do que não se pode fazer. Mas, no caso das pessoas trans, o que estamos a fazer é muito prático; não estamos a fazer perda de funcionalidade do corpo.

Falemos agora do outro termo: pansexual.

Primeiro, falámos no eixo da identidade de género. Pansexual tem que ver com a orientação sexual, que é aquilo que nós sentimos por outras pessoas. Classicamente, o termo que sempre se usou para definir pessoas que gostam dos dois géneros - homens e mulheres - foi bissexual. O termo pansexual apareceu com a questão queer [o termo “queer” significa “excêntrico” e é usado para designar pessoas que não seguem o modelo do binarismo de género]: são pessoas que gostam de qualquer género, incluindo géneros não-binários. Entretanto, politicamente o termo bissexual foi reformulado. Hoje em dia, bissexual e pansexual têm um significado praticamente idêntico.

Porque usas pansexual então?

Porque é uma maneira que tenho de desgenitalizar as relações: não penso nas relações como algo que está associado à genitália de alguém. É como ver primeiro a pessoa e depois o resto do corpo. Seja qual for o corpo ou qual for a identidade, interessa-me primeiro a pessoa enquanto ser.

Faz-te sentido que para outras pessoas a atração física seja importante?

Acho que há pessoas que têm preferências óbvias e orientações definidas. Não podemos generalizar experiências. Se para mim não faz sentido genitalizar pessoas, para algumas pessoas o corpo é fundamental para a atração que têm por outras pessoas. Isso não me choca.

A seguir vem "anarquista relacional".

Isso é outro eixo identitário e tem que ver com a orientação relacional.

Não é o mesmo do que o anterior?

Não. Está relacionado com a maneira como construímos as relações interpessoais. Na sociedade tradicional ocidental o que temos tipicamente são as relações monogâmicas: pessoas que têm um único parceiro e que vivem em regime de exclusividade. Entretanto, apareceu o movimento poliamor, que expande a ideia e diz que as pessoas podem ter múltiplos relacionamentos, desde que seja com o consentimento de toda a gente.

E a anarquia relacional?

Quando falamos em anarquia, temos a mania de dizer que não há regras. Mas a anarquia também tem regras: é sustentada, com sentido ético e horizontal. Ou seja, toda a gente tem o mesmo nível de poder na relação. O que acontece é que, se nalguns casos hierarquizas relações - por exemplo, esta é mais importante do que aquela, porque nesta tens uma relação sexual -, na anarquia relacional todas as relações estão ao mesmo nível.

Todas?

Sim, um amigo ou uma amiga é tão importante como um companheiro ou uma companheira. Isto resulta numa situação em que as minhas relações não têm categorias. É comum as pessoas dizerem-me: "Tu não amas a sério" ou "Não te apegas a ninguém, por isso é que tens esse modelo relacional". Não, eu apego-me às pessoas, eu tenho relações sérias com as pessoas. Simplesmente, tenho dinâmicas que dependem exclusivamente da maneira como eu me relaciono com cada pessoa.

Todas as pessoas envolvidas precisam de estar alinhadas quanto ao modelo de relacionamento.

A questão difícil é que nem toda a gente está adaptada a um modelo de anarquia relacional. As pessoas estão muito habituadas a rotular o tipo de relação que têm. Entrar no modelo de anarquia relacional implica, até politicamente, a pessoa desfazer-se de toda a noção que tem de relações. Basicamente, é agarrar num monte de relações e dizer: "Isto agora estruturalmente é diferente. Vou trabalhar de outro modo. A minha relação com uma pessoa não tem de ser mais importante e fragmentar outra relação. Porque aquela pessoa também é importante”. E isto é mudar o esquema. Há colegas meus que dizem: "Isso de ser anarquista relacional ou poliamoroso é só fazer sexo". Mas não. Temos mais comunicação, porque discutimos muitas questões, temos de gerir uma série de situações com pessoas diferentes.

Achas que se comunica mais numa relação poliamorosa do que numa relação monogâmica?

Por experiência, comunica-se mais. A comunicação é importante em qualquer relação, o problema é que, em relações que têm estruturas muito fechadas, as regras estão implícitas. Numa relação de exclusividade é quase implícito que a outra pessoa não vai ter mais ninguém. E numa estrutura destas [poliamorosa] não há questões implícitas, é preciso comunicar. Não se assume nada. Para mim, isto devia ser a regra em qualquer relação.

"Tenho um problema com a institucionalidade do padrão monogâmico"

O que é que devia ser regra?

A boa comunicação. Quanto à orientação relacional, cada pessoa tem a sua. Mas uma coisa é ser uma pessoa monoamorosa, por só gostar de uma pessoa. Outra coisa é uma pessoa ser monogâmica compulsoriamente, ou seja, só porque é a única forma que o sistema permite. São coisas diferentes.

Sentes que fazes juízos de valor em relação a quem tem uma orientação relacional monogâmica?

Não. O que eu tento estimular é a pessoa a ter um sentido crítico sobre a relação que tem. Não é dizer: "As relações não funcionam dessa maneira” ou “Esse não é o modo correto". É dizer: "Podes criticar o teu modelo relacional e perceber se de facto é nisto que acreditas". Eu não tenho um problema com pessoas que estejam em relações monogâmicas. Tenho um problema é com a institucionalidade do padrão monogâmico.

Na tua visão, devia-se trabalhar para ir desmontando essa estrutura?

Sim. Acho que estruturalmente as pessoas deviam ter direito a ter a família como desejam. Claro que é complicado. É um desafio, ia dar trabalho, não digo que não. Mas acho que o Estado não devia poder impor um modelo.

Há diferentes formatos de relação, cada um com o seu nome?

Sim. Mas não é preciso saber nomes. A questão é que para explicar às pessoas torna-se quase necessário dar um nome às coisas. E é uma maneira de ativamente dizer: "Esta relação existe". E acima de tudo de dar validade [ao que se sente]. Eu sempre cresci bissexual, pansexual, mas na altura eu não sabia o que era isso. E só quando descobri a palavra pela primeira vez é que pensei: "Ah, afinal há pessoas que também sentem isto”. São processos de desconstrução pessoal. É remover as camadas de ti própria.

Nesse processo de desconstrução, acontece olhares para trás e dares-te conta de que tinhas preconceitos em relação a coisas que hoje compreendes?

Não digo preconceitos, mas tinha fobias internalizadas. Eu não tinha problemas em respeitar a existência do outro, mas tinha dificuldade em interpretar aquilo que me acontecia a mim. Eu tinha um papel muito rígido enquanto rapaz hetero e agora tenho uma abertura muito maior. O que tem acontecido é que eu fui desmontando as estruturas e desfiz categorias que na altura eram prisões.

"No outro dia começaram a gritar e a gozar comigo. Começaram a dizer: 'Esta gente devia morrer toda!'"

Mas entretanto foram criadas mais categorias.

Consegui encaixar-me em categorias que para mim são mais amplas. Neste momento estou numa caixa que me permite uma variedade de experiências completamente diferente. O que sinto é que aquelas correntes que eu tinha antigamente se partiram e neste momento sinto-me muito livre para fazer da minha vida aquilo que eu sinto que posso e quero fazer.

Ainda tens algumas correntes?

Acho que temos sempre correntes.

Que correntes ainda tens?

Ainda tenho de pensar, quando saio de casa, se estou segura ou não. Ainda por cima eu tenho este ar mais ambíguo, porque já tenho alguma mama, mas tenho barba. Já tive muitas situações de assédio e de perseguição. No outro dia começaram a gritar e a gozar comigo. Começaram a dizer: "Esta gente devia morrer toda!". Em certas zonas andar à noite é perigoso, porque as pessoas ficam na dúvida sobre quem eu sou ou fazem comentários estranhos.

Ofende-te que as pessoas estranhem?

Depende do que é estranheza. Se vier com violência, seja ela verbal ou emocional... Mas, se a estranheza for “Eu não te consigo definir, isto é estranho”, para mim não é um problema; é uma estranheza bem intencionada. Eu tenho de admitir: apresento-me à sociedade de uma maneira que não é convencional. E nesse sentido admito que as pessoas sintam estranheza por aquilo que não conhecem.

Falando nos processos que foste vivendo: como é que foi em termos familiares?

São processos longos. Quando tinha cerca de 20 anos fiz o coming out [saída do armário, revelação da identidade e da orientação sexual e relacional] à minha mãe. Disse-lhe que era bissexual e que tinha uma expressão identitária que não era congruente com o facto de ser rapaz.

Só com a tua mãe?

O meu pai é extremamente homofóbico. Neste momento não tenho relação com ele por outras questões, mas acho que não seria fácil conviver com o meu pai depois disto.

Como é que a tua mãe reagiu?

A primeira coisa que ela disse foi: "Está bem, mas vais ter uma mulher e filhos e vais casar". Ela sempre achou que era uma fase, que era da minha cabeça. Quando decidi mesmo mudar o nome, para a minha mãe foi muito difícil. Durante meses recusava-se a tratar-me pelo pronome correto - o filho não podia morrer. Era uma questão de luto por que ela também tinha de passar. Ainda hoje é difícil, de vez em quando, mas vamos conseguindo gerir.

E com as outras pessoas?

Com as outras pessoas da família foi mais ou menos tranquilo, porque eu e a minha família não temos uma relação muito próxima. Mais complicado foi com os amigos. Muitas pessoas acabaram por se afastar, ou porque não conseguiam lidar com o facto de eu ser tratada por "ela" ou porque não queriam também ser vítimas de preconceito.

Que sentimentos é que foste tendo ao longo dos anos?

Às vezes muita frustração, porque as coisas não andam ao ritmo que nós queremos. Uma coisa tão simples como mudar o nome demorou dois anos. Na altura, a lei obrigava a ter um relatório clínico que diagnosticasse disforia de género para eu poder aceder ao direito de mudar o nome. Eu não preciso de uma entidade externa para dizer quem é que eu sou.

Se não precisas de uma entidade externa para dizer quem és, porque é que era preciso mudar formalmente?

Porque se eu continuasse com a identificação antiga nunca era reconhecida pela minha identidade. O documento protege legalmente. É o Estado a dar legitimidade, a dizer "Eu reconheço esta pessoa".

E para além da frustração?

Muitas felicidades também. Os momentos de coming out foram sempre muito turbulentos, mas ao mesmo tempo muito positivos, porque era finalmente descobrir algo novo sobre mim. Também, por exemplo, quando tive o meu documento de identificação consegui olhar numa casa de banho pública pela primeira vez de frente para o espelho. Até àquela altura ia sempre de cabeça baixa, para ver se ninguém me reconhecia. Mas com o documento de identificação, se me dissessem alguma coisa, eu tinha uma prova de que sou uma mulher.

Que outros sentimentos tiveste?

Tive momentos tristes em que amigos se foram embora e em que comecei a perceber a exigência das pessoas em relação a mim. Quando as pessoas estão constantemente a invalidar quem eu sou, isso magoa muito. Ou se as pessoas são violentas pelo facto de eu ser trans. É uma realidade dura. Também me deixam triste os comentários [nas notícias]. É tanto ódio.

Há papéis na sociedade que são tendencialmente mais femininos e outros tendencialmente mais masculinos?

Os papéis de género são um constructo social. Há muitos exemplos de aspetos em que se trocou o que era considerado de homens e de mulheres. Por exemplo, antigamente os homens calçavam sapatos de salto alto, hoje em dia são as mulheres; antigamente os homens vestiam cor-de-rosa, e as mulheres azul.

"As pessoas baralham-se muito com esta ideia de olhar para alguém e não saber o que é que aquela pessoa é"

Achas que é um problema determinados comportamentos ou traços serem identificados como femininos ou masculinos?

Acho que não. O que tem mal é restringir os traços de masculinidade e de feminilidade a determinado género e a determinadas pessoas. Os traços não são femininos ou masculinos no sentido de pertencerem a mulheres ou a homens. Há características que uma pessoa tem e que a outra não tem. Não por ser mulher ou por ser homem, mas porque tendencialmente aquela pessoa tem uma predisposição para ser assim. São constructos sociais que associamos a determinados comportamentos. Isto é todo um processo desconstrutivo.

Não corremos o risco de desconstruir demais? As estruturas ajudam-nos a organizar o mundo.

Claro que precisamos de estruturas. O que estamos a fazer não é desconstruir simplesmente. É criar uma nova estrutura que é mais ampla e mais respeitadora. Estamos a amplificar a estrutura e a reconstruir de uma forma que seja respeitadora para toda a gente. As pessoas baralham-se muito com esta ideia de olhar para alguém e não saber o que é que aquela pessoa é, de não saber definir as pessoas.

E se uma pessoa, confortável com as estruturas que existem hoje em dia, sentir que esta desconstrução está a ser uma imposição?

Acho que temos de pensar de modo crítico. O mundo não está a respeitar toda a gente. Claro que uma pessoa se pode sentir confortável, mas, se começar a analisar os problemas, vai inteirar-se de que o mundo em que vivemos não é de facto justo. E há pessoas ainda com mais dificuldades a viver nele. Temos de pensar nisso.

Há pouco falámos de como o processo foi vivido em família. E em termos pessoais como é que foi?

A minha história, eu costumo dizer, é um bocadinho atípica, porque costumamos ouvir mais o discurso do corpo errado - e a mim isso não me diz nada - e porque tive momentos de dúvida, de questionamento, de andar para trás e para a frente.

Quais foram os primeiros sinais de que não te identificavas com o género masculino?

Em criança [com quatro, cinco anos], sentia empatia profunda por aquilo que eu conhecia como feminino. Lembro-me de ir buscar vestidos da minha irmã e brincar com eles. Punha laranjas a fazer maminhas. Sentia: "O meu género é como o teu". Esse é o sentimento que eu consigo expressar neste momento. Depois, entre os 14 e os 18/19 anos, arrumei o assunto.

Como assim?

Vivenciei uma vida de rapaz normal, cisgénero [pessoa que se identifica com o género atribuído à nascença], hetero, convencional. Tinha outros problemas na vida e a única coisa que sentia era que tinha um defeito qualquer que devia ser superado. Quando vim para Lisboa [aos 19/20 anos], as coisas mudaram muito.

De que forma?

Comecei a explorar-me identitariamente. Pensava: “Se eu experimentar um vestido, como é que vai ser?”. Fi-lo, gostei da sensação. De cada vez que as pessoas me confundiam com uma rapariga - sempre tive um ar mais ou menos andrógino - ficava muito contente. Ter uma expressão feminina empoderava-me. Os anos foram passando e eu pensei: “Eu posso ser assim e ser homem na mesma. Posso performar feminilidade e ser homem na mesma”. Ainda assim, houve um período, pelos meus 25 anos, em que voltei a tentar performar a minha heterossexualidade, a minha masculinidade, homem de barba...

Porquê?

Porque senti novamente que eu é que tinha um problema. As pessoas à minha volta faziam-me crer que eu tinha problema. Mas correu muito mal. Sentia sempre que estava presa. Não me podia expressar livremente, falar livremente, não podia falar do que sentia. Era tabu. Cheguei à conclusão de que aquilo que me dizia que eu era mulher era mais profundo do que o simples facto de me vestir ou performar como mulher. Tanto que, quando fiz o meu coming out no trabalho, as pessoas ficaram muito admiradas por eu não ir de sapatos de salto alto e tudo mais. Eu ia de t-shirt e calças na mesma.

Com que idade?

Isso foi com 27/28 anos.

Foi uma conversa explícita que tiveste com as pessoas no teu trabalho?

Não, foi aos poucos. Fui falando com pessoas com quem tinha mais confiança. Mas a comunicação geral foi feita pelos Recursos Humanos, porque havia a questão das pessoas que não se cruzavam comigo. “A partir de agora, o Daniel vai começar a chamar-se Daniela”.

"Houve umas situações um bocado estranhas (...), como haver alguém que não te diz 'olá' sequer e que te pergunta diretamente pelo teu pénis"

Foi fácil essa mudança?

O facto de eu já ser tratada por Dani ajudou, porque é mais neutro. Mas, na altura, caí em todos os estereótipos de género. Para mim era importante fazer a depilação, não ter barba, maquilhar-me. Era a maneira mais segura e mais fácil de as pessoas me tratarem pelo género correto.

Alguém te interpelava diretamente sobre o assunto?

Houve umas situações um bocado estranhas, que se podem considerar assédio no trabalho, como haver alguém que não te diz “olá” sequer e que te pergunta diretamente pelo teu pénis. Ou alguém que diz que agora vais ter mamas e que te pode assediar à vontade, porque vais gostar. Comecei a ter situações destas muito complicadas. E depois começaram a policiar muito a maneira como me vestia.

No encontro “O homem promotor da igualdade” [posterior a esta entrevista], falas sobre a interseccionalidade e o movimento transfeminista. Podes explicar o que são? 

Não se pode avaliar as opressões isoladamente. As opressões por género e por raça, por exemplo, têm de ser avaliadas em conjunto. No encontro, a minha ideia é dar a perspetiva transfeminista do ponto de vista interseccional. O movimento transfeminista tem todos os recortes interseccionais: classe, sexo, género, raça, etnia, funcionalidade física. Como é que um movimento consegue suster toda essa estrutura, sem deixar cair nada? É um desafio ter em conta as várias interseções. Como é que nós, sendo humanos tão incongruentes, conseguimos construir um movimento que luta contra o patriarcado, as normas de género, o capitalismo, o racismo?

Dizes que o ser humano é incongruente por natureza. Que incongruências tens tu?

Digo que é incongruente, no sentido em que temos ideias politizadas que se contradizem. Eu começo de um princípio em que o Estado se pode ir embora, sou libertária, sou anarquista, mas estou no sistema. Mesmo não concordando com sistemas institucionais, para chegar às pessoas é preciso fazer alguma coisa. Senão, posso estar a ser muito purista na minha ideologia política e não estar a chegar a ninguém. Isto às vezes acontece. Mas é olhar para essas incongruências e pensar que se calhar a visão não está errada; pode ser composta. Ao mesmo tempo que criticamos, compactuamos com o sistema de alguma forma. Até que ponto é que conseguimos criticar o sistema, para deixar de compactuar com ele e mudar estruturalmente a maneira como funciona?


Este artigo faz parte de uma série de entrevistas sobre a igualdade de género realizadas pelo SAPO24 no âmbito do encontro "O homem promotor da igualdade", que se realizou nos dias 15, 16 e 17 de novembro, no ISCTE, e foi organizado pela associação Quebrar o Silêncio.

Pode ler aqui as entrevistas publicadas até ao momento:

Ângelo Fernandes: "A igualdade de género deve incluir todas as partes. E o homem é uma delas"

Vânia Beliz: “Os pais associam a conversa sobre sexualidade ao dia em que se sentam no sofá com os filhos a falar sobre o tema". E aí já vão atrasados

Cláudia Morais sobre violência emocional: "Se vivemos com a sensação de pulga atrás da orelha, normalmente é porque está lá uma pulga"

Fado Bicha: "O fado foi saindo de um armário e entrou noutro maior, onde já cabem mais pessoas"

Rosa Monteiro: “Desde quando é exagero reivindicar direitos humanos? Exagero são os discursos xenófobos e misóginos”

Os homens perdem privilégios quando lutam pela igualdade de género? Os estereótipos que eles e elas querem desconstruir