Findada uma semana conturbada, com o abalo de uma crise política, aviso de eleições antecipadas e contestações partidárias, será que iríamos entrar noutra etapa do calendário em relativa tranquilidade? A resposta é não, e a razão para tal afeta o coração das Forças Armadas portuguesas.

As notícias começaram a somar-se em catadupa ao longo da manhã, quando se soube que a Polícia Judiciária tinha iniciado uma investigação às Forças Armadas. Porquê? Por suspeitas de tráfico de diamantes, ouro e droga em missões militares noutros países, como na República Centro-Africana (RCA).

Denominada “Operação Miríade", esta foi, na realidade, uma mais que megaoperação: envolveu 300 inspetores e buscas em 100 locais, de Bragança a Faro, ou seja, literalmente de norte a sul do país. Mais do que isso, os agentes iam já preparados para deter pelo menos 10 suspeitos, munindo-se de mandados judiciais.

A PJ explicitou que esta investigação visou "uma rede criminosa, com ligações internacionais, que se dedica a obter proveitos ilícitos através de contrabando de diamantes e ouro, tráfico de estupefacientes, contrafação e passagem de moeda falsa, acessos ilegítimos e burlas informáticas, tendo por objetivo o branqueamento de capitais".

O epicentro deste esquema terá sido o Regimento de Comandos, no quartel da Carregueira, em Sintra, mas o escândalo não se cinge às Forças Armadas: ao longo da tarde ficámos a saber que tanto um agente da PSP (ex-militar) que estava ao serviço do Comando Metropolitano de Lisboa como um guarda-provisório da GNR em formação em Portalegre foram detidos no âmbito desta investigação, que terá tido início no final de 2019 por denúncia de um responsável destacado na RCA.

Quem espoletou a operação foi, na verdade, o próprio Estado-Maior-General das Forças Armadas, que perante as suspeitas de que militares que participaram nas FND [Força Nacional Destacada], na RCA, poderiam ter sido utilizados como “correios no tráfego de diamantes, ouro e estupefacientes" em aviões militares (e, por isso, não fiscalizados), alertou a Polícia Judiciária Militar. Esta, por sua vez, passou a mensagem para o Ministério Público, que meteu a Polícia Judiciária (não militar) ao serviço.

Como em tantos outros casos, a investigação há muito que corria nas sombras do segredo de justiça, com os primeiros resultados a serem produzidos hoje. No entanto, o Ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, veio a público informar que já tinha sinalizado a ONU para este caso “nos primeiros meses” de 2020, já que os militares portugueses foram destacados na RCA no âmbito de uma missão de paz das Nações Unidas. Esta, em retorno, pela palavra de António Guterres, fez também saber que vai “cooperar e prestar auxílio dentro das estruturas legais existentes”.

O caso, naturalmente, já começou a ter ondas de choque, com as previsíveis tentativas de gestão de danos subsequentes:

  • Gomes Cravinho frisou que os “militares sob suspeita já não estavam na RCA” na altura da denúncia, pelo que a ONU pode continuar a ter “toda a confiança em relação às nossas Forças Armadas como sempre tiveram”. Além disso, o ministro sublinhou que “tudo indica que se trata de atividades assumidas a título individual por alguns militares e não por algo que tenha qualquer tipo de natureza sistémica" e que as autoridades fizeram a denúncia prontamente e em tempo útil, apesar de reconhecer que é "profundamente lamentável que haja este tipo de alegações em relação a militares portugueses”.
  • Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, limitou-se a dizer que o caso “não afeta a nossa imagem internacional” e que, vigorando “o princípio da separação dos poderes”, não quis dizer mais nada “sobre investigações em curso”.
  • Marcelo Rebelo de Sousa seguiu igual bitola. Em visita oficial a Cabo Verde, o Presidente da República disse que “há casos isolados que devem ser punidos se for caso disso” e que o escândalo não belisca “a excelência das nossas Forças Armadas”. Pelo contrário, o chefe de Estado defendeu que o mero facto de ter sido o Estado-Maior-General das Forças Armadas a dar início às investigações “só as prestigia, só aumenta o prestígio internacional que têm e que é reconhecido por toda a gente”, acrescentou.
  • A Associação de Oficiais das Forças Armadas reservou palavras mais duras, considerando que “inevitavelmente está em causa o bom nome das Forças Armadas portuguesas e dos militares portugueses” e que os possíveis autores “deverão ser exemplarmente responsabilizados e punidos sem quaisquer contemplações”. No entanto, este corpo alertou também para “julgamentos em praça pública, devendo ser escrupulosamente respeitado o princípio fundamental da presunção da inocência”.

O que é certo é que o caso já faz notícia “lá fora” — veja-se a cobertura das agências noticiosas Associated Press e Reuters —, pelo que, mesmo que não faça mossa, é indiscutível que o escândalo provocará desconforto no Governo.

Gomes Cravinho — recentemente no olho do furacão por ter alegadamente desautorizado o Presidente da República ao tentar demitir do Chefe do Estado-Maior da Armada sem a sua consulta — não tem tido vida fácil. Já os Comandos sofrem assim mais um dano reputacional depois do caso que se arrasta nos tribunais devido à morte dos recrutas Dylan da Silva e Hugo Abreu, em setembro de 2016. Todos estarão, assim, ansiosamente à espera que os autores sejam “exemplarmente responsabilizados e punidos” para deixar este episódio para trás.