Em entrevista à agência Lusa, André Costa Jorge, diretor do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) e da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) disse estar preocupado com a “dispersão e a diversidade de procedimentos de acolhimento” de refugiados ucranianos em Portugal e com a “dificuldade em perceber quais são os critérios que fazem com que alguém possa acolher em sua casa uma família de refugiados”.
“Quando falamos em famílias falamos sobretudo em mulheres e crianças, este é o perfil que estamos a acolher, nós temos de perceber o nível de vulnerabilidade destas pessoas que estamos a acompanhar”, alertou.
Deu como exemplo o caso de uma mãe ucraniana e do filho com autismo que estão a ser acompanhados pelo JRS e que “está a exigir uma monitorização particular”, salientando que, tal como este, existem mais casos em que “o próprio adulto está em grande sofrimento”.
“Ainda há pouco a pessoa que está a fazer o acolhimento desta família me relatou que ontem [segunda-feira] esta mãe estava a telefonar para a Ucrânia e a chamada caiu por causa dos bombardeamentos e esta pessoa passou a noite toda a chorar, em situação de pânico”, relatou.
André Costa Jorge sublinhou que as pessoas que Portugal está a acolher e a acompanhar “são potencialmente viúvas e crianças que são potencialmente órfãs”, salientando que o acolhimento contempla dimensões que “vão para lá da dimensão meramente afetiva ou da disponibilidade emocional”.
O responsável apontou que parece não existir qualquer uniformização nos procedimentos, mas antes “uma série de iniciativas municipais, cada uma delas com estruturas de acolhimento diferentes umas das outras em termos de tempo de acolhimento de emergência”.
“Depois há um encaminhamento para habitação disponibilizada por famílias acolhedoras, iniciativas de cidadãos ou empresas que disponibilizam espaços de acolhimento com uma variabilidade de permanência nestes espaços de acolhimento de emergência”, sublinhou.
Destacou que o trabalho que está a ser feito pelo JRS e pela PAR passa por “peneirar todas as ofertas” de famílias ou cidadãos a titulo particular que se voluntariam para acolher refugiados e “mapeá-las”, não só para perceber “quem é que se disponibiliza para o acolhimento”, mas também para estabelecer critérios e definir “um protocolo entre quem acolhe e quem se sente responsável pelo acolhimento”, onde fica estabelecido durante quanto tempo e em que condições as famílias refugiadas vão ser recebidas.
“Há aspetos que me parecem que devem ser acautelados, nomeadamente a questão da idoneidade das pessoas que participam no acolhimento”, defendeu André Costa Jorge.
Lembrou, a propósito, que desde a fundação da PAR, em 2015, ficou definido que só participariam no acolhimento de pessoas refugiadas instituições e não famílias ou pessoas a título individual, e que, por isso, “haveria uma responsabilidade protocolada entre uma instituição reconhecida e o Estado, que era a entidade que protegia todos os cidadãos, principalmente os mais vulneráveis”.
“Esta experiência de acolhimento de refugiados é radicalmente diferente de todas aquelas que tivemos no passado porque não há um controlo centralizado por parte do Estado do processo de chegada, não há controlo do fluxo de chegada”, apontou.
Recordou que em todos os processos anteriores, incluindo o mais recente com cidadãos afegãos, “o Estado assumiu sempre o papel de garantir a seleção ou o controlo desde o país de trânsito até à chegada a Portugal”, ao mesmo tempo que “havia uma entidade de referência no acolhimento”, já que a PAR surgia como uma rede de instituições de acolhimento, e o acompanhamento era posteriormente feito pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM).
“Há de se fazer esse balanço mais tarde ou mais cedo, mas é de facto uma experiência que tem sido substancialmente diferente do que tem sido no passado”, admitiu.
Para o responsável, o que “mudou radicalmente” teve a ver, em primeiro lugar, com o facto de “as iniciativas de busca e resgate das pessoas em países de trânsito serem feita de forma atomizada”, a partir de “iniciativas de cidadãos que vão buscar as pessoas por razões de preocupação humanitária”.
Para André Costa Jorge, o ideal seria haver um processo de controlo de chegadas centralizado por parte da União Europeia, com o envolvimento de todos os países europeus, para posterior distribuição das pessoas e alívio dos países de fronteira, mas admitiu que isso só poderia ser feito com recurso ao fecho de fronteiras, o que teria como consequência que as pessoas ficassem num espaço de confinamento, como já acontece na Grécia.
“A solução encontrada de deixar a sociedade civil fazer o trabalho, e está-se agora a tentar controlar por causa dos vários relatos que tem havido de vítimas de tráfico e situações de abuso, foi o preço que a União Europeia resolveu pagar porque tem processos muito lentos de tomada de decisão”, explicou.
Entende, por isso, que “o mais lógico” seria “aguentar” as pessoas nos países fronteira para fazer um processo de triagem, identificar os casos mais vulneráveis e fazer a posterior distribuição pelos vários países europeus, consoante as suas capacidades de acolhimento.
Internamente, cada país faria o mapeamento das ofertas de acolhimento, estabelecia os critérios e recebia depois os refugiados em centros de acolhimento de emergência, mantendo-se a possibilidade de entrega imediata a familiares que tivessem no país.
“Esse cenário seria um cenário de controlo em que iniciativas bem-intencionadas e mal-intencionadas seriam limitadas, mas isso não aconteceu, o que aconteceu é que qualquer cidadão pode pegar numa carrinha e ir buscar as pessoas que entender”, apontou.
Portugal aceitou até hoje 19.619 pedidos de proteção temporária a pessoas chegadas da Ucrânia em consequência da situação de guerra, segundo a última atualização feita à Lusa pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), sendo que cerca de um terço são de menores.
PAR está a apoiar cerca de 300 refugiados ucranianos, alguns entregues por quem os foi resgatar
A Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR) está a apoiar algumas iniciativas particulares de resgate e a acompanhar cerca de 300 pessoas refugiadas ucranianas, algumas das quais entregues por quem as foi buscar a países fronteira da Ucrânia.
O diretor da PAR adiantou que, entre as cerca de 40 instituições que integram a Plataforma e estão a fazer acolhimento direto, estão a “acompanhar aproximadamente 300 pessoas”.
“Esse número vai crescer provavelmente nas próximas semanas porque nós estamos à espera de uma chegada grande de cerca de 150 pessoas”, adiantou André Costa Jorge.
O casal Svitlana Anosova, 59 anos, e Serhii Savchuc, 60 anos chegaram há dias, depois de terem abandonado a casa em Kharkiv, rumo a Lviv num comboio de retirada de civis, para depois atravessarem a fronteira com a Polónia e apanharem um avião para Portugal.
Não falam inglês e é com a ajuda da nora, que faz a tradução para português, que contam à Lusa que queriam vir para Portugal para poderem estar com os filhos e que estão muito agradecidos não só ao governo português, mas a todas as pessoas que os ajudaram quando chegaram.
Com a voz trémula e de lágrimas nos olhos, Svitlana Anosova começa a dizer que quer um mundo normal para todos, mas precisa da ajuda do marido para concluir que “querem que fique tudo bem para todos”.
Não hesitam quando se lhes pergunta se pensam em voltar à Ucrânia e respondem ao mesmo tempo: “Sim”.
Segundo André Costa Jorge, os atendimentos de refugiados ucranianos sucedem-se a um ritmo diário e acrescentou que deverá aumentar, tendo em conta que “é possível que haja outras iniciativas [de resgate]” para as quais contactem a PAR, uma vez que “iniciativas de grupos de cidadãos acontecem todos os dias”.
“Todos os dias há saídas de carrinhas”, apontou, revelando que muitas vezes são contactados por pessoas que foram buscar refugiados ucranianos, mas que não têm forma de os acolher, bem como por autarquias ou mesmo pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM).
Para André Costa Jorge, esta é uma situação que potencia o risco de tráfico de seres humanos, não só em Portugal, mas por toda a Europa, apesar de agora haver mais controlo.
Por outro lado, defendeu que “é importante que todos os responsáveis no acolhimento saibam e tenham consciência que a prioridade da intervenção é a proteção das pessoas”, alertando que há muitas crianças a cargo e é preciso ter atenção à saúde destes menores e à sua integração em meio escolar.
“Creio que a saúde mental deve ser a preocupação número um nestas pessoas, depois a estabilização social e a questão da habitação”, salientou André Costa Jorge, chamando também a atenção para a questão da empregabilidade e da sustentabilidade destas famílias.
Sublinhou que em causa estão “pessoas que tiveram um processo de perda muito forte, em alguns casos profundamente traumático”, defendendo que “é preciso acompanhar este processo no terreno para que haja uma mitigação do sofrimento que provavelmente acontecerá se o conflito não parar nos próximos dias”.
Logo a seguir, André Costa Jorge defendeu que é preciso encontrar soluções que permitam às pessoas aceder ao mercado de trabalho, bem como à habitação, sublinhando que “devem ser encontrados caminhos” que permitam a estas pessoas desempenhar funções que tenham a ver com as suas qualificações.
Apontou que é também preciso pensar no ensino da língua, admitindo que essa não seja uma prioridade para quem chega, dada a vontade de regresso.
Disse também que outra das coisas que o preocupa é a “necessidade de haver uma definição mais rápida de qual é o quadro de apoio financeiro a quem está a fazer o acolhimento”, uma vez que até aqui esse acolhimento era feito apenas por instituições, que recebiam uma verba para isso, mas agora é também aberto a famílias.
“Neste momento é necessário clarificar este ponto até porque não se pode exigir aos cidadãos e às famílias que tenham uma componente de acompanhamento técnico, não é essa a sua vocação, têm disponibilidade [e isso] já é bastante”, defendeu.
Destacou que Portugal já recebeu mais refugiados num mês – o número total ultrapassa os 19 mil pedidos de proteção – do que nos últimos seis ou sete anos, mas salientou que “boa parte deste acolhimento assenta na existência de uma comunidade, que é uma das maiores comunidades imigrantes” e no facto de haver “uma enorme disponibilidade social”.
Alertou, por outro lado, que “as famílias não podem ficar eternamente com refugiados” e defendeu que “é necessário acautelar que estas pessoas tenham condições para passar para uma situação de autonomia atendendo ao stress psicológico a que estão sujeitas neste momento”.
Na opinião de André Costa Jorge, muitas destas pessoas não estarão em condições de entrar no mercado de trabalho no imediato e defendeu que é preciso começar a trabalhar em vários cenários, entre o conflito poder durar mais do que é expectável ou haver um acordo e a estabilidade regressar.
O responsável acredita que num cenário de fim de guerra, muitas das pessoas quererão regressar ao país de origem, mas salientou que poderá também haver casos de quem queira ficar a residir no país de acolhimento e que, nesse caso, será necessário definir um quadro legal que se aplique a essas pessoas, já que nessa altura terão de passar por um processo que será mais semelhante ao de um imigrante económico do que ao do acolhimento de emergência.
[Susana Venceslau (texto) e André Kosters (fotos), da agência Lusa]
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