Agenda para sábado à noite. Dançar. Ouvir música. Deixar-me ir com o som vindo das colunas enquanto os olhos seguem o rasto das luzes e video walls num emblemático espaço noturno da cidade de Lisboa. Um programa que começou 24 horas antes, no dia seguinte à noite de abertura das discotecas após 18 meses de hibernação.

Local: Lux Frágil. Hora 22h30 de sexta-feira.

Confuso? Passo a explicar.

O dia 1 de outubro marcou a reabertura das pistas de dança por todo o país após cumprirem o dever de encerramento sabático por razões sanitárias.

O SAPO24 não podia deixar passar ao lado esta efeméride. Hesitei entre saciar a contida vontade logo no primeiro minuto da sexta-feira (00h01). Mas esperei. Contive-me. Valeria a pena aguentar o corpo mais 24 horas depois de cerca de mais de 13.150 mil horas (mais minuto, menos minuto) sem se mexer. Sendo que, no meu caso em particular, teria de somar mais umas centenas de horas.

Achei, por bem, regressar em grande. O reencontro tinha dia e hora previamente marcada e bem visível nos anúncios nas redes sociais da discoteca. Sexta-feira, noite de um para dois de outubro de 2021, uma data para mais tarde recordar depois de dançar toda a noite. Assim, o desejava.

Poucos minutos após o jantar segui sozinho de mãos ao volante. No percurso ribeirinho entre a zona de Santos e a estação de Santa Apolónia, a animação nas ruas servia de preliminar para uma noite que tinha tudo para ser longa. Afinal, a espera foi demorada e a sensação que me assaltava assemelhava-se à abertura das turbinas numa qualquer barragem a transbordar de água.

Pelo caminho, por entre pensamentos ambíguos, dividia-me em dois. Àquela hora, seria eu e a bola de espelhos no piso 1? Ficaria, a solo, na varanda do Lux, a mirar os dois lados da moeda do rio Tejo, a partilhar o olhar com os luxuosos paquetes e o lado mais cru da autoestrada aquática da zona operária, a contar contentores empilhados, questionava-me. Ou, ao invés, enfrentaria uma fila do tamanho das filas de espera para a compra da última versão do iPhone numa megastore asiática ou a loucura dos saldos numa qualquer metrópole mundial.

Esteve longe, muito longe de uma caminhada fria e a solo até à porta, e esteve mais perto, bastante mais perto, do modus operandi da compra de bilhetes para o concerto de uma qualquer pop star.

Às 22h45, a fila media quase duas horas de distância até à porta de entrada. Tempo suficiente para traçar o retrato de quem ali se dirigiu. Quem eram, ou antes, são, de onde vêm e como se comportam os novos habitantes da noite.

Pois bem, a pandemia introduziu para uns, recuperou para outros, o botellón. Um “eu e tu”, “tu e mais eu e outros”, reunidos à volta de bebidas alcoólicas a que juntamos música e dois dedos de conversa.

Nesta nova normalidade, este velho hábito importado de Espanha veio para criar raízes. Tal como o teletrabalho ou empregos híbridos. Durante quase duas horas, variadas garrafas de vidro, de plástico, de vinho e bebidas brancas misturadas com outras cores passavam de mão e mão, boca em boca e ajudavam o tempo o passar.

Havia quem ensaiasse timidamente um passo de dança e quem recordasse a última vez que ali se dirigiu. Múltiplas línguas e variadas nações debitavam sons e gargalhadas. Uma verdadeira Torre de Babel concentrada à beira-rio de uma Lisboa cosmopolita.

Havia quem em contrapondo ao L invertido, onde se alinhava, apontasse para a fila mais curta, na lateral, onde uma senhora de cabelo louro e longo e outra de cabelo curto e preto davam abraços do tamanho da saudade a uns eleitos que reviam passado este tempo todo. Tinham na mão, pude constatar uns bons metros mais à frente, um par de folhas brancas que pareciam ser a velha lista vip. Há hábitos imutáveis.

O tempo de espera importa, e, por isso, sem olhar a nacionalidades, houve quem tentasse a sorte, tirasse proveito da ousadia e atravessasse a fronteira como quem viaja em executiva. Outros voltaram para trás. Numa e noutra fila.

Pilhas de garrafas iam ficando alinhadas, dispostas de forma ordeira e milimétrica, deixavam rasto, à medida que quem estava na fila se aproximava da hora de entrar.

Além das luzes do piso 1 e do terraço do Lux, da palavra "Vida" escrita a letras garrafais na parede, uma concentração de luminosidade dos telemóveis transportava-me para um ambiente de concerto. Lembrei-me da banda Depeche Mode.

Homens e mulheres, rapazes e raparigas, a pares ou em grupos ímpares, puxavam do smartphone e mostravam o Certificado Digital de Vacinação ou o teste PCR, o livre-trânsito de entrada para um bar aberto pago pela nossa carteira de satisfazer a nossa necessidade vital de dançar.

Longe, assim aparenta, vão os tempos das perguntas assassinas do ego. “Vem com quem?”. Puxo sempre Deus para esta frente de batalha. Não falo dos Vaya com Dios. Deus mesmo, porque sempre entendi ser a melhor resposta a dar enquanto esgueirava o olhar para dentro do espaço que queria entrar.

Mas há mais. Há mais danos reputacionais. “Hoje temos uma festa” ou “estamos cheios, tem de aguardar um pouco”, um recado e uma exclamação gélida que não se aplica a quem, atrás de nós, espeta um bacalhau e um beijo na face do todo-poderoso porteiro.

O passado fica para trás. Chegou a minha vez. Sem borboletas no estômago, todos os meus órgãos queriam dançar e não deram espaço a insetos imaginários.

Aos votos de “boa-noite, tem certificado?” pensei que era chegado o momento. Azar dos Távoras. Era uma fotografia do documento guardado no meu telemóvel original que estava a arranjar. “Se é fotografia, não vai dar”, fui avisado simpaticamente. “Tente”, pedi, com educação. “Não dá, como vê”, respondeu. “Mas já entrei no futebol, tenho o meu cartão de cidadão....”, retorqui. “Podemos ajudá-lo”, abriu o flanco enquanto chamou outro homem de negro e auricular. “Ajuda este senhor a obter o certificado digital no telemóvel”.

Assim foi pedido, assim foi feito. Entre data de nascimento e número de utente SNS, tentámos uma vez. Duas. Três. A mensagem foi sempre a mesma. “Lamentamos, não podemos satisfazer o seu pedido. Tente daqui a 4 horas”.

O olhar do porteiro não dizia tudo o que me ia na alma. “Se calhar está muita gente a fazer o download. Entrada só mesmo com o certificado”, rematou. Senti-me na pele de quatro miúdas claramente abaixo dos 16 anos que tentaram abusar da sorte uns minutos antes de mim. Não entraram. Não entrei.

Tinha duas opções. Esperar as tais quatro horas ou, derrotado, mas não vencido, voltar no dia seguinte a ter sido goleado, com educação, pelo “Portas”. Optei pelo dia seguinte e regressei ao local onde muitos de nós já foram felizes. E desta vez com dois telemóveis (o original recuperado do arranjo) e o suplente, ambos com o certificado digital original. Nada, mas nada, me faria parar até chegar à pista de dança.

Parte da história repetiu-se, mas desta vez com final feliz. Os estrangeiros que deambulam pela noite alfacinha continuavam por ali, uns atrás de outros, tal como as luzes dos telemóveis-passaporte. Na fila curta ao lado, continuam os pulos de alegria dos reencontros dos amigos da casa.

O botellón continua a ser imagem de marca e, desta vez, fui convidado para partilhar o gargalo de uma garrafa de rótulo Coca-Cola, mas, assumo, nem que estivesse no deserto aceitaria depois de ter passado por umas quantas gargantas.

Pouco mais de 1h30 chegou a hora da verdade. Olhei, de soslaio, para o casal atrás de mim com um certificado impresso numa folha A4. O papel nunca falha, pensei.

Antecipei-me e disse “boa noite” enquanto mostrava aquele código de barras que separa a felicidade da porta na cara. O porteiro olhou para mim e disse. “Boa noite, posso ampliar (QR Code)?”, perguntou. “O senhor esteve cá ontem à noite”, exclamou. Gelei. Reformulo. Congelei. Petrifiquei. Os meus pés colaram ao chão. Senti-me o homem estátua a quem despejaram um balde de cimento da cabeça aos pés. Antecipei uma chapada em forma de tsunami a varrer-me da entrada do Lux. Duas negas em 24 horas fariam demasiada mossa. “Ó meu Deus”... chamei-O.

Elogiei, em tom de graxa, a memória daquele simpático “Portas” e dirigi-me ao balcão do consumo mínimo para pagar o preço da felicidade. 12,50 euros divididos num bilhete separado em pedaços destacáveis de 1€.

Cortina preta corrida para o lado e aproximei-me da escadarias cujo baú guarda mais as memórias de subidas do que descidas naqueles degraus só equiparáveis aos 135 do desfile de moda na Piazza de Spagna, em Roma.

De peito feito, entre um passo acelerado e outro trémulo, transladei-me até ao gigante globo. A bola de espelhos 4.0 esteve este tempo todo à minha espera. À nossa espera. Apeteceu-me dar-lhe um beijo, mas refreei ímpetos com uma ida ao bar. Pedi uma Coca-Cola com a senha comprada. Não gastei mais “fichas” do papel retangular. Por um lado, queria ter toda a sobriedade do mundo naquela noite e, mais pessoal, queria guardar o papelinho mágico como quem guarda o bilhete da final da Liga dos Campeões.

“Let’s Dance”. Comecei por bater com o dedo no copo, bebi de uma enfiada, abandonei-o numa mesa, a mão libertou-se, abanou uma vez, duas, par de mãos, punhos cerrados, um pé levanta e bate levemente no solo, tímidos espasmos corporais entram em ação, levanto um braço, dois, um aponta o céu, segue-se o outro, os dois ao mesmo tempo, aumento o ritmo, parece que estou a fazer halterofilismo acelerado e dei por mim a abanar e a pular. Pronto. Estou finalmente a dançar. D-A-N-Ç-A-R.

Acelerei até à pista de dança, descansei no Rooftop e voltei às virtudes da zona do meio (piso 1) para vestir a pele de um peixe no aquário. Missão cumprida e não comprida. Quase duas horas depois de entrar, desço as escadas de descidas de memórias incertas. Saio e apanho um Uber, não sem antes olhar para a fila. A eterna fila que passa largamente a popa do cruzeiro vizinho que dorme ao lado de restaurantes ribeirinhos.

“Miguel”, pergunta o profissional de letra O. “Sim, respondo”. Ainda não estava sentado e já estava servido com uma pergunta: “Gosta da noite?”, perguntou. Respondi que sim. Estava com saudades. De estar num clube.

(Artigo atualizado às 12h30 de dia 06 de outubro.)