A carioca de 47 anos trabalhava e geria uma equipa nos cuidados intensivos neonatais da maior unidade do Rio de Janeiro, com 56 camas para recém-nascidos, quando se inscreveu no processo de “reconhecimento específico” que permite aos brasileiros (e outros cidadãos estrangeiros, com exceção dos que chegam da União Europeia) o exercício da medicina em Portugal.
Foi no início de julho de 2019, porque a ideia era mudar-se para o Porto “só quando tivesse data” para o início das provas.
Longe de saber “o filme” que tinha pela frente, ficou à espera da confirmação da Universidade do Porto – uma das oito escolas médicas portuguesas que avaliam os conhecimentos académicos, clínicos e linguísticos dos médicos estrangeiros que querem exercer em Portugal –, que “jamais” recebeu.
Também “nunca” conseguiu contactar ninguém na Universidade, dados os “dias específicos” e as “horas apertadas” de atendimento, inconciliáveis com outros fusos horários.
Em novembro de 2019, o processo finalmente avança, mas acabaria por ser cancelado logo em janeiro seguinte e adiado para março, o mês em que uma pandemia veio alterar tudo.
Cansada de esperar, Gabriela mudou-se para Portugal no início de fevereiro de 2020. “No início do mês de março adiaram para maio e depois entrou o confinamento e cancelaram”, recorda, em conversa com a Lusa, pedindo anonimato.
Gabriela – que, por ser falante de português, não teve de realizar a prova de comunicação que habitualmente inicia o processo de reconhecimento – acabaria por realizar a prova teórica só no final de julho de 2020, acompanhada “sobretudo” por outros conterrâneos.
“Foram 120 questões de medicina geral, como se tivesse acabado de me formar”, conta, “impressionada”.
Concluída a primeira fase, as escolas médicas “congelaram o processo e fizeram coincidir com o de 2021”, observa, assinalando que as universidades só começaram a chamar os candidatos para a segunda fase – prova prática de clínica médica ou cirúrgica – entre junho e agosto de 2021.
Gabriela realizou a prova em julho passado e em setembro finalizou o processo com a defesa do currículo (dissertação de mestrado).
Um mês depois recebeu o certificado de equivalência e deu entrada com o pedido de inscrição na Ordem dos Médicos, que pediu “três semanas para avaliar” e depois a convocou, em novembro, para “finalizar a inscrição”.
Gabriela aguarda agora a luz verde da Ordem dos Médicos – já há mais de dois meses, contrariando a indicação de “30 dias úteis de resposta” que lhe deram.
Na expectativa de poder começar a exercer em fevereiro próximo, Gabriela quer trabalhar como “’plantonista’ [médica de plantão] no Hospital de São João”.
Só depois desta primeira luz verde poderá dar início ao processo de reconhecimento da sua especialidade, que adivinha “demorado e difícil”.
Com “sete anos de formação em pediatria e neonatologia”, quatro no Brasil e três no Canadá, e “15 anos de prática em neonatologia”, Gabriela confessa que não percebe por que tem de se sujeitar à avaliação do Colégio da Especialidade de Pediatria da Ordem dos Médicos.
Criticando os “muitos empecilhos” do processo, a médica carioca compara com outros países, com “modelos muito mais razoáveis”, desde logo Espanha.
“Como eu, tem muita gente que está em Portugal completamente parada, sem poder fazer nada, sem falar nas pessoas que desistem e tentam noutros países”, lamenta.
Portugal aprova menos de metade dos estrangeiros candidatos a médicos
Portugal aprovou, nos últimos três anos, 42,2% dos pedidos de candidatos a médicos oriundos de países estrangeiros, três quartos dos quais brasileiros, segundo dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES).
Desde 2019 – ano a partir do qual existem dados centralizados –, Portugal recebeu um total de 1.674 pedidos de admissão de estrangeiros para o exercício de medicina, tendo deferido 706 (até 14 de dezembro de 2021).
Quem se candidata a exercer medicina em Portugal tem que cumprir dois requisitos para se inscrever na Ordem dos Médicos: ver reconhecido o curso/grau por qualquer uma das oito escolas médicas portuguesas e demonstrar que sabe comunicar em português.
Um médico de qualquer país da União Europeia tem reconhecimento automático em Portugal, ao abrigo da legislação comunitária – e, portanto, para se inscrever na Ordem dos Médicos, só terá de realizar uma prova de comunicação médica.
Porém, para quem venha de outras paragens – e apesar de a lei de reconhecimento de graus académicos e diplomas de ensino superior atribuídos por instituições estrangeiras se aplicar também a Andorra, Moldávia, Noruega, Reino Unido, Rússia, Suíça, Turquia e Ucrânia –, esse reconhecimento é condicionado, pela entidade que regula a atividade médica, à avaliação de conhecimentos académicos, clínicos e linguísticos, assegurados, primeiro, pelas escolas médicas portuguesas e, depois, pela Ordem dos Médicos, com uma prova de comunicação médica.
Proporcionalmente, os estrangeiros candidatos a médicos com uma taxa de aprovação mais elevada são os espanhóis (84,4% dos pedidos deferidos), seguidos de ucranianos (78,8%), alemães (70%) e italianos (66,2%).
Já entre os 74,7% de pedidos apresentados por brasileiros, apenas 42,7% foram aprovados – ainda que estes representem três quartos do total de pedidos aprovados (706).
Nos últimos três anos, todos os candidatos a médicos oriundos de três países – Cuba, Guiné-Bissau e Venezuela – foram recusados. E apenas um dos 29 pedidos feitos por cidadãos angolanos foi aprovado.
“Todo o processo de qualificação é feito pelas escolas médicas” e visa assegurar que os candidatos aprovados “têm conhecimento reconhecido e estabilizado” para exercerem “uma medicina de qualidade” em Portugal (ou, posteriormente, no espaço comunitário), com o mesmo “padrão de exigência” imposto aos estudantes nacionais, disse à Lusa o presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), Henrique Cyrne Carvalho.
À exceção dos candidatos oriundos de países onde o português é língua oficial, todos começam por realizar uma prova de comunicação.
Aprovados nessa prova – e juntamente com todos os candidatos que não tenham de a fazer –, o passo seguinte é a avaliação curricular, com um “teste escrito nas grandes áreas de conhecimento médico”, da responsabilidade das várias Escolas Médicas (em rotação e por área).
“É uma avaliação nacional, o teste é igual para todos”, frisa Cyrne Carvalho. É neste teste de conhecimento específico que “à volta de metade” dos candidatos fica pelo caminho, assinala.
Os candidatos que prosseguem fazem depois uma “prova prática, com o doente, chamada ‘prova de caras’”, em cada uma das faculdades onde apresentaram candidatura. Nesta, a percentagem de chumbos “é flagrantemente menor”, destaca o também diretor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto.
Finalmente, os candidatos têm que apresentar uma dissertação de mestrado, exigida também aos estudantes portugueses, que saem dos cursos de Medicina com grau de mestre.
Concluído o processo das escolas médicas com aprovação – que demora “um ano civil inteiro”, contabiliza o presidente do CEMP –, podem inscrever-se para o exercício de clínica geral, mas não sem antes se submeterem a uma prova de comunicação médica, esta exigida pela Ordem dos Médicos e que envolve outro ator diferente: o Camões, instituto tutelado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
“Se não souber falar português, não pode exercer. É preciso falar com os doentes e escrever nos diários clínicos”, justifica o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, asseverando que “o nível de exigência [da prova] não é muito elevado”.
Ainda assim, segundo dados da própria Ordem, em 2021, dos 62 candidatos à prova de comunicação médica, 11 ficaram pelo caminho – 11 que já tinham sido avaliados em várias provas, incluindo de comunicação, pelas escolas médicas.
Ordem admitiu 55% dos pedidos de especialidade feitos por estrangeiros em 2020
Pouco mais de metade dos médicos estrangeiros que pediram exame de especialidade à Ordem dos Médicos portuguesa foram admitidos em 2020, indicou à Lusa o bastonário.
Em entrevista à Lusa, Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, referiu que, no ano passado, foram admitidos 55% dos pedidos de exame de especialidade, percentagem que se havia situado nos 60% em 2019.
Dos médicos estrangeiros que foram aceites a exame de especialidade no ano passado, 86% foram aprovados, um aumento face a 2019 (81%).
Quem se candidata a exercer medicina em Portugal tem, no mínimo, um ano civil inteiro pela frente, para cumprir dois requisitos exigidos para a inscrição na Ordem dos Médicos: ver reconhecido o curso/grau por qualquer uma das oito escolas médicas portuguesas e demonstrar que sabe comunicar em português.
Um médico de qualquer país da União Europeia tem reconhecimento automático em Portugal, ao abrigo de legislação comunitária – e, portanto, para se inscrever na Ordem dos Médicos, só terá de realizar uma prova de comunicação médica.
Porém, para quem venha de outras paragens – e apesar de a lei de reconhecimento de graus académicos e diplomas de ensino superior atribuídos por instituições estrangeiras se aplicar também a Andorra, Moldávia, Noruega, Reino Unido, Rússia, Suíça, Turquia e Ucrânia –, esse reconhecimento é condicionado pela entidade que regula a atividade médica.
Este processo chama-se “reconhecimento específico” e impõe a avaliação de conhecimentos académicos, clínicos e linguísticos, assegurados, primeiro, pelas escolas médicas portuguesas e, depois, pela Ordem dos Médicos, com uma prova de comunicação médica.
Por outro lado, a inscrição na Ordem dos Médicos apenas concede a possibilidade imediata de praticar clínica geral. Ora, se o candidato estrangeiro quiser equivalência a uma especialidade, essa avaliação caberá aos colégios da Ordem e isso já “é outro campeonato completamente diferente”, reconhece o bastonário, admitindo que é um processo “moroso e complexo”, que “não depende da Direção Nacional da Ordem, mas de cada Colégio per si”.
Por essa mesma razão, a Ordem não consegue indicar a média de tempo que cada colégio da especialidade demora a avaliar os médicos estrangeiros candidatos.
“Há pequenas variações no tempo que demora a fazer a avaliação, há uns que avaliam rapidamente, outros demoram mais um mês, dois ou três”, explicita Miguel Guimarães.
O bastonário defende o modelo de seleção de candidatos estrangeiros a exercer medicina em Portugal, em que o currículo dos cursos é avaliado, em primeira instância, pelas escolas médicas.
“Há cursos de Medicina que não têm qualidade e as universidades [portuguesas] têm cuidado com isso”, realça, dando um exemplo. “O Brasil é o país do mundo com mais cursos de Medicina, tem os piores e os melhores curso de Medicina”, refere, notando que a sua duração varia de um a seis anos.
“Abrir uma escola médica no Brasil é muito fácil, o Governo não impede nenhuma escola”, sinaliza, referindo que “a maior parte dos médicos brasileiros não estão inscritos na Ordem dos Médicos brasileira”.
Porém, Miguel Guimarães reconhece demoras no processo em Portugal e assinala “um atraso considerável” em tempo de pandemia de covid-19 - a avaliação dos candidatos de 2021 ainda está em curso e o processo só deverá estar finalizado no final deste ano, demorando dois anos em vez dos habituais 12 meses.
“O exame está a atrasar a vida aos médicos que vêm de fora, que se queixam de estar um ano ou dois à espera só para o fazer”, refere o bastonário, admitindo que é preciso “fazer um debate a sério” sobre o assunto.
“Da nossa parte, [o processo] é ágil. Agora, da parte das universidades… fazem um exame por ano”, aponta, lembrando que a Ordem faz “admissões em qualquer altura” e se, por exemplo, um pedido entrar em setembro, “na pior das hipóteses vai ser admitido em outubro”. Porém, a Lusa encontrou uma candidata que espera luz verde da Ordem há mais de dois meses.
Já para o presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), é “definitivamente” inviável fazer mais do que uma prova por ano.
“Isto é um acréscimo de trabalho brutal para as escolas médicas, que tem de ser gerido dentro do calendário académico”, assevera Henrique Cyrne Carvalho, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto.
“O número de candidatos tem vindo a aumentar de forma flagrante, o que não nos tem ajudado a dar a resposta com a rapidez que gostaríamos”, reconhece, atribuindo os atrasos à pandemia e acreditando que, ultrapassada a situação, o “modelo sistemático” que está em vigor desde 2020 será eficaz.
“A nossa intenção é que, passado este período muito complicado, o processo se torne fluido, com intervalos definidos, rigorosos e previsíveis”, vinca.
Pedidos de estrangeiros para exercer medicina em Portugal diminuíram com pandemia
O número de pedidos de reconhecimento por parte de estrangeiros para o exercício da medicina em Portugal diminuiu com a pandemia de covid-19, segundo dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior enviados à Lusa.
Esta tendência – que foi, de acordo com a mesma fonte, acompanhada por um aumento das aprovações de equivalência – é confirmada por dados da Ordem dos Médicos, segundo os quais se inscreveram 132 médicos estrangeiros no ano passado, um número inferior ao registado nos três anos anteriores: 175 em 2020, 172 em 2019 e 148 em 2018.
Apesar desta diminuição, o número de médicos de nacionalidade estrangeira em Portugal tem aumentado ligeiramente desde 2018. Em 2021, 4.350 estrangeiros exerciam medicina em Portugal – mais 20 do que em 2020, mostrando a diferença de saldo entre inscrição e prática efetiva (recorde-se que um reconhecimento em Portugal abre, desde logo, caminho a exercer em qualquer país da União Europeia).
Até meados de dezembro passado, Portugal contava com 16.967 clínicos de nacionalidade estrangeira entre os 59.697 médicos inscritos, representando 28,4% do universo total.
Segundo dados da Ordem dos Médicos, os espanhóis lideram este grupo, com 38,9%, seguindo-se os brasileiros, com 19,9%. Todas as nacionalidades que se seguem estão abaixo dos 5%, destacando-se ucranianos, italianos, cubanos e alemães.
Portugal prevê a realização de uma prova de reconhecimento para médicos estrangeiros por ano.
Porém, e dado que não é possível fazê-la em formato a distância, o impacto da pandemia nas viagens fez arrastar o processo de 2021, que só estará concluído no final deste ano, demorando dois anos em vez de um, confirmou à Lusa o presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP).
Ao último teste, realizado apenas a 7 de janeiro deste ano (para os candidatos de 2021 e os de 2020 que foram reprovados, dado que têm hipótese de repetir a prova mais uma vez), compareceram 520 candidatos, segundo informação do CEMP.
Desses 520, foram aprovados 183, o que representa 35,2%, um pouco abaixo da média de aprovações observável nos dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior para os últimos três anos. Acresce que estes candidatos vão ainda sujeitar-se, entre abril e maio próximos, à prova de prática clínica, o que poderá baixar ainda mais aquela percentagem.
De acordo com os dados do CEMP, a Universidade do Porto (que junta duas Escolas Médicas, a Faculdade de Medicina e o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar) foi a que recebeu mais de metade dos candidatos que compareceram ao último exame (219), seguindo-se Lisboa, que, com duas escolas, recebeu 186 candidatos.
Juntas, as faculdades das duas maiores cidades totalizam 405 dos candidatos, no total de 520. À parte Porto e Lisboa, a Universidade do Minho, em Braga, foi a mais requisitada para exame (61), seguindo-se a Universidade do Algarve (31), a Universidade de Coimbra (16) e a Universidade da Beira Interior (UBI), na Covilhã (7).
Tendo por base as taxas de aprovação do último teste, nenhuma Escola Médica aprovou sequer metade dos candidatos. É Coimbra que lidera a tabela, com 43,8% de aprovações, seguindo-se a Universidade do Algarve (41,9%) e a Faculdade de Medicina do Porto (40.4%).
No outro extremo está a UBI, que não aprovou nenhum dos candidatos que examinou. As restantes quatro escolas médicas ficaram acima dos 30%, excetuando a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, que aprovou apenas 11,4% dos candidatos.
Apesar das exigências do processo, o bastonário da Ordem dos Médicos destaca que Portugal está “acima de meio da tabela” em matéria de acolhimento destes profissionais. “Somos dos países europeus que têm uma taxa mais elevada de médicos estrangeiros, sobretudo que vêm de fora da Europa, a exercer no país”, destaca Miguel Guimarães, em declarações à Lusa.
Ainda assim, realça, “a maior parte dos médicos que vem para Portugal são médicos de países que têm alguma afinidade com a língua”, como Brasil e Venezuela, com uma comunidade de descendentes de emigrantes de origem portuguesa.
A ronda de candidaturas para 2022 já está aberta e, ao contrário da tendência, Henrique Cyrne Carvalho não espera uma “grande diminuição de candidatos”, estimando que os brasileiros continuem a chegar, dadas “as condições” no país de origem.
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