Gustavo Carona diz que começar a fazer missões humanitárias, enquanto médico, foi “a melhor coisa” que lhe aconteceu na vida. Já esteve no Congo, no Paquistão, no Afeganistão e na Síria. Também viu a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, entre outros locais.

Não é tarefa fácil, mas é o que faz com que se sinta na sua melhor versão. “Todos nós temos um lado bonito, um lado feio, um lado mais ou menos, um lado fútil, um lado engraçado. Todos temos vários lados e cabe-nos cultivar aquele de que gostamos mais — eu encontrei-o muitas vezes em missão”, garante ao SAPO24.

No seu novo livro, “Olhem para o Mundo com o Coração”, olha para este planeta esquecido para onde por vezes é difícil olhar, sempre com o objetivo de torná-lo mais acessível a todos, através de histórias que humanizam pessoas que nos parecem tão distantes.

Em missão, nunca se cruzou com nenhum médico português, mas sente que “há cada vez mais” profissionais preocupados com esta realidade e a disponibilizar o seu tempo e conhecimento. Porque, defende, o voluntariado tem de ser visto como algo realmente importante e feito por pessoas que colocam ao serviço o que têm. “Não dá para se fazer algo tão importante e desafiante com aquela atitude de ‘eu gostava de ajudar’”. E, na maior parte das vezes, não é o “quilinho de arroz” ou a “roupinha” que se doa que vai fazer a diferença em catástrofes humanitárias.

"Quando nos conectamos às pessoas, percebemos que somos todos iguais"

Começo pelo título do livro. Enquanto médico, como é que se olha para o mundo com o coração?

Olhar para o mundo com o coração é sairmos de nós próprios. Nós, enquanto indivíduos, vivemos com alguma certeza de que somos uma coletividade, uma família, comunidade, cidade, eventualmente país. Mas fechamo-nos aí. Temos de perceber que somos uma família mais alargada. Isto, dito por outras palavras, é a interpretação da Carta Universal dos Direitos Humanos.

É muito difícil, quase anti-natural, sentirmos que estamos conectados com povos, com populações que nos são tão distantes. A distância não é só em termos de quilómetros, mas em termos culturais, linguísticos, religiosos, identitários. Através das diferenças criamos barreiras. Eu tive a oportunidade — e considero um privilégio — de ultrapassar estas barreiras com o propósito principal de exercer medicina, mas com uma missão secundária de conhecer o mundo. Quando nos conectamos às pessoas, percebemos que somos todos iguais e que temos de cultivar esse sentido de humanidade global e de valorização de todas as vidas. Esta é a premissa que nos deveria dominar a todos e que é sempre um caminho.

"Acredito que os grandes temas fraturantes do planeta se resolvem sentados à mesa. É só as pessoas olharem-se, tocarem-se, sentirem-se"

Falava de ultrapassar barreiras. Como?

Ou com barcos ou com aviões [risos]. Acima de tudo, o pensamento humanitário — a interpretação dos Direitos Humanos — é uma atitude perante a vida. Não é preciso ser médico, não é preciso viver situações in extremis nas linhas da frente dos conflitos armados. É agir plenamente, percebermos que as crianças da Somália ou do Iémen têm o mesmo valor que as nossas crianças. É um pensamento, é uma ideia — que alguns corroboram, outros não, mas deveríamos ser mais.

Quebrar essa barreira é percebermos que das diferenças nascem preconceitos. E o preconceito é tão natural como a nossa existência. A partir do momento em que construímos um identidade sustentada na nossa família, na escola, naquilo que vemos à nossa volta, criamos sempre, de alguma forma, fossos entre outros povos, outras pessoas. Temos de ter essa consciência e aproximarmo-nos, sentarmo-nos à mesa. Eu acredito que os grandes temas fraturantes do planeta se resolvem sentados à mesa. É só as pessoas olharem-se, tocarem-se, sentirem-se. Este é o ideal. Mas, não sendo possível, é uma construção do pensamento, uma atitude.

Nós dominamos o nosso olhar, podemos escolher e dizer ‘não quero saber das pessoas que vivem em África’ ou podemos dizer ‘eu posso não saber quais são as soluções, mas preocupo-me com as pessoas, acho que estas pessoas têm os mesmos direitos à vida e à dignidade humana’. Vamos para além de uma questão de vida e de morte. Há questões de dignidade humana que são mínimas e é assim que se ultrapassa barreiras: a afinar o nosso olhar.

Portanto, olhar para este planeta esquecido.

Completamente. Estamos a viver intensamente a guerra na Ucrânia, já não faltará muito para fazer dois anos, e estamos a viver intensamente a guerra na Faixa de Gaza há um mês. Estas guerras são importantíssimas porque têm consequências geopolíticas que podem interferir com a nossa vida, mesmo que seja só economicamente.

E depois há outras guerras que, ao não interferirem com a nossa vida, simplesmente varremos para debaixo do tapete. O pensamento humanitário, no meu entender, é essencialmente definido pela proporcionalidade. Aquilo que eu tento trazer com o meu livro é proporcionalidade nas histórias de vida, em que este tal planeta esquecido, de tantos conflitos armados, de tantas doenças que matam milhões e que seriam facilmente tratadas com meia dúzia de euros, que possam estar mais próximos dos corações das pessoas.

Para isso, precisamos de humanizá-las enquanto histórias de vida. Os números são importantes, para termos a noção da dimensão do problema, mas não é só isso. É triste, mas temos de ver as mães a chorar as mortes dos filhos. E neste tal planeta esquecido nós não vemos nem ouvimos as mães a chorar. E, como tal, ignoramos. Desumanizamos. É um ato de pura crueldade fingir que estas pessoas não existem.

Fotografia cedida por Gustavo Carona
Fotografia cedida por Gustavo Carona

Quando começou este seu sonho humanitário?

Foi literalmente por acaso. Às vezes há pessoas que ficam à espera que venha uma história ‘eu desde pequenino que brincava com hospitais de campanha’ e assim. Bom, tomei muitas decisões da minha vida emocionalmente. A minha decisão de querer ser médico foi muito emocional e mais tarde, já era médico, aos 27 anos, foi a primeira vez que fui a África, a Moçambique. Quando confrontado com aquela pobreza extrema, senti — e isto não é de todo presunção — que não gostaria da pessoa que eu me tornaria se fingisse que não vi aquilo que vi.

Já tendo alguns conhecimentos médicos importantes, que para Portugal são obviamente importantes mas que para estes países são infinitamente mais importantes dada a escassez de conhecimento científico, senti ‘quem sou eu se não for coerente com a vontade de ajudar quem mais precisa?’. A partir daí quis entrar neste mundo humanitário e, depois da minha primeira missão, nunca mais senti uma realização profissional e pessoal tão grande. Isto mistura-se, em missão a minha vontade de ser médico é quase a minha vontade de ser pessoa.

Por estranho que pareça, em alguns dos cenários mais complicados dos nossos dias, eu fui feliz porque estava muito coerente com a melhor versão da minha pessoa. Todos nós temos um lado bonito, um lado feio, um lado mais ou menos, um lado fútil, um lado engraçado. Todos temos vários lados e cabe-nos cultivar aquele de que gostamos mais — eu encontrei-o muitas vezes em missão.

Portanto, começa tudo por acaso com a vontade de entregar conhecimentos e depois apercebi-me de que este mundo fazia mais sentido, a realização pessoal era maior. A gratificação e a conquista de paz interior era muito grande. E assim foi andando e foram 13 missões até agora, entre 2009 e 2019. Espero que o número aumente, não sei se alguma vez aumentará, mas gostava muito. São as minhas medalhas.

"Temos um problema e só algumas hipóteses, não há nada ali no meio. E ou fazemos parte do problema ou fazemos parte da solução"

Há alguma missão que considere mais marcante?

É difícil responder. Comparar desgraças é um exercício muito injusto. Será que a guerra da Síria é pior do que a guerra do Sudão do Sul? Comparar sofrimento humano, comparar doenças, tipos de guerra… Mas a primeira marcou-me imenso, na República Democrática do Congo, pela virgindade das minhas emoções, pela ignorância extrema daquilo que eram os Médicos Sem Fronteiras. O impacto que isto teve em mim enquanto pessoa foi de longe o maior. Depois, talvez pela intensidade, a guerra da Síria foi também muito marcante.

Qual a sensação de estar nestes lugares e perceber que está a fazer a diferença?

Temos um problema e só algumas hipóteses, não há nada ali no meio. E ou fazemos parte do problema ou fazemos parte da solução. A inação já é uma tomada de posição. Fazer parte da solução perante aquilo que é a maior falha da humanidade, que é a guerra e as consequências da guerra, é algo que me deixa feliz. E isto numa dimensão microscópica, porque mesmo enquanto médico não faço nada sozinho, preciso de uma grande equipa, de toda uma estrutura que me permite aplicar os meus conhecimentos, e estou apenas num local e sou preciso em não sei quantos locais. Mas sou recompensado, o meu salário é em olhares, em sorrisos, em palavras às vezes em línguas que nem compreendo. E isso, para mim, é uma riqueza que não se consegue pôr no banco mas que me faz sentir um privilegiado por tê-la acumulado.

Numa passagem do livro, mostra uma pergunta que fez a si mesmo: “o que é que eu estou aqui a fazer”. Sentiu isto muitas vezes?

[Suspira] Tantas, tantas… Faz-me lembrar também o que poderão estar a passar as equipas médicas que estão em Gaza neste momento. O que é que se está a fazer num hospital quando depois o próprio hospital é bombardeado? Uma pessoa tem tanto cuidado com o doente e depois… Há tantas questões para serem aplicadas no exercício da medicina que são altamente complexas. E depois vem uma bomba e destrói tudo, tudo, tudo. Construir é dificílimo, depois destruir é um segundo. Muitas vezes sentimo-nos impotentes perante a dimensão do desafio.

Se olharmos para os números, já estive em guerras em que morreram centenas de milhares de pessoas, como no Afeganistão. Mas quando vemos crianças, mulheres em situações realmente dilacerantes, há alguma sensação de impotência que só se combate com uma divisão clara entre aquilo que eu posso fazer e aquilo que não posso fazer, quer a nível individual, quer a nível coletivo. E não me deixar destruir, emocionalmente falando, pelo que eu não consigo fazer.

"Já tive situações em que estava literalmente a pensar em desistir. ‘Vou-me embora, não aguento mais, estou farto de chorar’"

Há crianças que já me morreram nas mãos em circunstâncias em que, se estivesse em Portugal, tinha conseguido salvá-las. Eu não consigo mudar isso no imediato, mas há outras situações em que consigo ser útil. Claro que no plano teórico é facílimo de falar, no plano prático é mais difícil, mas é aí que eu me concentro. Às vezes sou dominado pela impotência, tendo em conta a dimensão do problema, outras vezes canalizo a minha energia para o que depende de mim. E no que depende de mim eu vou tentar fazer o meu melhor.

Como é que se lida com esta dualidade entre vida e morte?

Os casos mais dolorosos da minha vida foram sempre ultrapassados da mesma forma: com o próximo doente. Já tive situações em que estava literalmente a pensar em desistir. ‘Vou-me embora, não aguento mais, estou farto de chorar’. E depois chamam-me e dizem ‘Dr. Gustavo, precisamos de si no bloco operatório e no serviço de urgência porque está aqui um doente assim e tal’. A partir desse momento, a cabeça volta a funcionar.

Sempre senti que a minha capacidade de resistir ao inultrapassável, do ponto de vista emocional, era o próximo. Era o pragmatismo de, a partir do momento em que me chamam, eu ter de funcionar. A minha cabeça, enquanto médico, tem de voltar a funcionar. Então ressuscito e reavivo a minha capacidade de estar presente enquanto pessoa e enquanto médico.

Já esteve também em Gaza. Como é que vê os recentes acontecimentos?

Há imensas dimensões, mas a primeira tem de ser sempre a humana. É muito triste percebermos que, com séculos de evolução, com a capacidade de desenvolvimento que a inteligência humana permite a tantos níveis, ainda somos capazes de uma crueldade de que nem os animais são capazes. É uma tristeza abismal ver as mortes de inocentes dos dois lados, mortes com uma enorme crueldade. Ainda para mais agora ao vivo e a cores, quase em direto na televisão.

Sinto que temos uma palavra a dizer. Nós, pessoas do mundo, temos de ter uma palavra a dizer sobre aquilo que não nos está a acontecer mas que nos podia acontecer. Se não tivermos uma palavra a dizer sobre algo que nos parece distante, um dia vamos pedir que alguém tenha uma palavra por nós e essa palavra não virá. Preocuparmo-nos com os outros não é uma questão de altruísmo, é uma questão de justiça. E a humanidade, enquanto tecido humano composto por 8 mil milhões de células, neste caso 8 mil milhões de pessoas, só funciona em harmonia se houver justiça. É muito injusto aquilo que se está a passar em Gaza.

As pessoas, às vezes, esquecem-se, do ponto de vista humanitário, que contamos os feridos, contamos os mortos, mas há uma dimensão que não conseguimos contar e isso espelha bem a tristeza destes acontecimento: a tristeza humana é tão frequente e tem tantas perspectivas, tantos ângulos diferentes, que não conseguimos imaginá-los a todos. Estou a falar de mulheres que precisam de assistência no parto e não têm; pode morrer a mãe no parto e pode morrer o bebé. Do ponto de vista médico, uma cesariana é uma coisa simples e em pelo menos 10% das gravidezes é mandatário para salvar a vida da mãe e da criança.

"Há pais que perderam os filhos, filhos que estão nos hospitais e perderam os pais. Há uma dimensão também do sofrimento psicológico"

Quando os hospitais deixam de funcionar, que é aquilo que estamos a ver, não tem a ver com os feridos de guerra. São os que são mais visíveis e contabilizados pelos media, mas há crianças que morrem por falta de antibiótico numa pneumonia, uma apendicite que se não for tratada é morte. No caso da medicina materno-infantil, isto está sempre a acontecer. Li no outro dia que acontecem cerca de 100 partos por dia em Gaza e estão sempre a morrer pessoas de uma forma anónima que nunca vamos contabilizar.

Fotografia cedida por Gustavo Carona
Fotografia cedida por Gustavo Carona

E há certamente mais casos.

Os exemplos devem ser infinitos. Pais que perderam os filhos, filhos que estão nos hospitais e perderam os pais. Há uma dimensão também do sofrimento psicológico. Não estou a dizer que é ignorado, mas não percebemos o impacto que isto tem muitas vezes nas pessoas. E que não passa, dura vidas, gerações. A minha opinião é de extrema tristeza e a minha posição é sempre por aqueles que estão a sofrer e a perder a vida de uma forma que eu acho que podia ser evitada.

"Vivi Gaza, digamos, num estado normal. De pobreza, de desumanidade"

Aquilo que viu quando esteve em Gaza é muito diferente do que se vê agora, considerando que aquele território vive em conflito?

Estive em Gaza em 2019, numa altura em que havia protestos com frequência por parte da população, na fronteira. Com isto, os soldados israelitas alvejavam, normalmente, jovens do sexo masculino, essencialmente nos membros inferiores. O objetivo era não matar, porque os mortos aparecem nas notícias, mas se for uma perna completamente desfeita por uma bala, provavelmente perdida para sempre, já não faz barulho no espaço mediático.

Vivi lá numa fase tensa e estive, por exemplo, no Hospital Al-Shifa, o principal de Gaza, mas nem sequer posso comparar. Vivi Gaza, digamos, num estado normal. De pobreza, de desumanidade. A expressão ‘prisão a céu aberto’ é tão repetida que acho que às vezes as pessoas se esquecem do que quer dizer. É uma prisão a céu aberto; significa que está murada a toda a volta, significa que as pessoas que lá estão são prisioneiros. É verdade que temos de falar, sempre, dos reféns feitos pelo Hamas, enquanto pessoas que não têm culpa nenhuma e têm de regressar às suas famílias o quanto antes, mas também é verdade que há 2.2 milhões de palestinianos que vivem em Gaza que são reféns da política israelita. E isso é ilegal — penso eu, não sou especialista —, é uma questão de Direito Internacional. Desafio qualquer pessoa que tenha a oportunidade de ir à Cisjordânia ou à Faixa de Gaza a achar que aquilo é humanamente compreensível.

Não deve ser fácil de ver.

Não é, não é. Acho que se fala muito pouco, até porque a guerra está a acontecer em Gaza, mas humanamente incomodou-me mais o que se passa na Cisjordânia — e estive lá apenas enquanto turista, digamos assim, de um lado para o outro. Há a questão dos colonatos — lá está, outra palavra que às vezes as pessoas não compreendem. Um colonato é, no fundo, um massacre. Claro que não é visual como aquilo que vemos o Hamas fazer. Não é matar mulheres, matar crianças, não vemos bombas a cair. Mas a existência do colonato é uma tortura, é um massacre físico e psicológico.

Doeu-me enquanto humano. Nós podemos discutir a História, a geopolítica, e ir até Abraão para tentar compreender este conflito que, infelizmente, se baseia no extremismo religioso dos dois lados, que acho que deveria ser incompatível com a política. Já ultrapassámos o tempo de deixar que a religião interfira na política. Magoou-me imenso aquilo que é efetivamente um apartheid exercido dentro da Cisjordânia e que faz com que os palestinianos estejam completamente sufocados, esmagados, encurralados pelo exército israelita. Isso dói na alma, para quem tem coração.

Tem sido muito noticiada a questão das dificuldades nos cuidados de saúde à população em Gaza. Apesar do conflito, tinha vontade de ir até lá?

Se pudesse, ia amanhã. A questão que se coloca é que os crimes de guerra que estão a ser cometidos são de tal forma graves que não sei até que ponto é que estão a ser cumpridas as condições de segurança mínimas para o exercício da medicina. Em muitas catástrofes humanitárias, chamemos-lhes assim, tento perceber a melhor forma de ajudar. No terramoto em Marrocos, as cheias na Líbia…

Agora, quando falamos sobre esta questão, sobre a melhor forma de ajudar… é parar com as bombas. Os camiões humanitários serão sempre insuficientes — agora parece que já há dias em que passam cerca de 60, quando em circunstâncias normais eram cerca de 100. A vontade de exercer é aquilo que me domina, é aquilo que eu sei. Só podemos dar aquilo que temos, e aquilo que eu tenho é conhecimento médico, mas ao mesmo tempo não consigo negar o facto de que, perante a realidade, com aquilo que se passa, é difícil de se falar em ajuda humanitária quando os bombardeamentos são quase ao minuto. As prioridades estão pervertidas nesta questão.

"Não acho que tenhamos de carregar todos os males do mundo às costas, mas temos de ter algum espaço para percebermos que somos cidadãos do mundo"

A sua experiência em Gaza não está neste livro. Vem aí outro?

Este já o segundo livro de missões, mas espero que venha aí um terceiro. Gaza é um sítio sobre o qual eu gostava muito de escrever e o Iémen também me marcou imenso. Tal como o Sudão do Sul e outros que até são repetidos e que têm histórias também poderosíssimas e que cumprem o objetivo. As pessoas sentem-se impotentes perante algumas das maiores desgraças que acontecem nos nossos dias e eu desafio sempre a ouvir uma história, a contar uma história.

Dizer que na guerra do Congo já morreram cinco milhões de pessoas e que é a pior guerra desde a II Guerra Mundial causa-nos relativamente pouca emoção. Se contarmos a história de uma mãe, de um filho, de uma criança-soldado, daquilo que é a realidade das pessoas que fazem parte destes números gigantes, aí percebemos a importância de sermos mais atentos ao que se passa no nosso mundo e já não há desculpas para não sabermos tanta informação.

Não acho que tenhamos de carregar todos os males do mundo às costas, mas temos de ter algum espaço para percebermos que somos cidadãos do mundo e que, por exemplo, até nas alterações climáticas — o maior desafio humanitário dos nossos dias —, se não tivermos um pensamento comum, esta perceção de globalidade, nunca conseguiremos lutar por um objetivo que nos pertence a todos. É nessa medida que não é só uma questão de justiça, é uma questão de pragmatismo e de obrigatoriedade de nos olharmos como uma grande família, para que consigamos lutar contra os desafios que temos para nós próprios e para os nossos filhos, já nos dias de hoje.

Fotografia cedida por Gustavo Carona
Fotografia cedida por Gustavo Carona

Há muitos médicos portugueses a irem em missão humanitária?

Por sorte ou por azar, nunca me cruzei com nenhum médico português. O que eu acho é que há cada vez mais, é essa a minha convicção. Não tenho dados que o comprovem, mas acho que nós, Portugal, temos algum sub-desenvolvimento do nosso pensamento humanitário, algo em comum com os nossos irmãos europeus. Não é só querer ajudar, também é saber ajudar.

"Em Portugal está a crescer a compreensão de como é que se ajuda"

Vivemos aqui agarrados àquele chavão do voluntariado, que é uma palavra muito bonita e que, no fundo, é a génese de tudo isto, mas que esbarra no amadorismo. É redundante dizer que qualquer atividade feita por profissionais e por amadores é mais bem feita por profissionais. Estas organizações humanitárias, sejam elas independentes, como os Médicos Sem Fronteiras, como a Cruz Vermelha Internacional, que está vinculada nas Convenções de Genebra e tem questões governamentais, ou estejam ligadas às Nações Unidas — como a UNICEF ou a OMS —, são organizações profissionais que envolvem milhões. Envolvem pessoas que fazem disto carreira. Não dá para se fazer algo tão importante e desafiante com aquela atitude de ‘eu gostava de ajudar’. Isso aqui não chega, mas chega para outros campos que são muito importantes.

Acho que em Portugal está a crescer a compreensão de como é que se ajuda. Já ouvi muitas vezes, inclusive o nosso presidente da República, dizer que somos um povo maravilhoso, com um coração maravilhoso. Percebo que na posição dele seja importante dizer esse tipo de coisas, mas isso não é totalmente verdade. E para isto temos dados, no Good Country Index, o Índice do Bom País. Claro que é só uma métrica, mas Portugal é dos piores países a nível europeu [e está em 29.º lugar a nível mundial]. Não estou a dizer que os portugueses não são boas pessoas, estou a dizer que os portugueses ainda não pensaram como é que devem transformar o seu coração numa boa ação. Ou seja, ação versus impacto.

"Aquela coisa de ‘dou um quilinho de arroz, uma roupinha e tal’… temos de ultrapassar essa fase"

A própria criação dos Médicos Sem Fronteiras em Portugal reflete isso mesmo. É muito recente, muito pequena, mas está a crescer bastante. Fico imensamente orgulhoso que comecemos a perceber melhor este mundo da ajuda humanitária. Gosto também de lhe chamar literacia humanitária, para as pessoas perceberem como é que se ajuda. Aquela coisa de ‘dou um quilinho de arroz, uma roupinha e tal’… temos de ultrapassar essa fase. A boa intenção é bonita, mas isso tem uma eficácia, não diria nula, mas negativa, quando as pessoas acham que se pode ajudar de uma forma tão ingénua.

Este tipo de ações humanitárias envolvem muito dinheiro. E os médicos, como eu, se calhar até são aqueles que podem, com mais facilidade, fazer disto uma semi-vida. Posso ir em missão, vir de missão, regressar aqui e exercer. Mas há certas áreas de conhecimento em que, para que as missões funcionem, precisam de pessoas que dediquem a sua vida a isto. Mas há cada vez mais pessoas a crescer neste sentido de perceber que temos um mundo à nossa volta e que somos mais felizes quando estamos do lado da solução.

Este livro também cumpre esse propósito, que é explicar às pessoas que este caminho não só é possível como está ao alcance de qualquer um. Não é uma história de Hollywood, não é uma história dos filmes. É banal, é normal abraçar esta via. Mas é preciso perceber uma coisa: a medicina é apenas uma de muitas formas de exercer humanitarismo e se calhar nem é a mais importante.