A Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou à Lusa que foi instaurado um inquérito que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Matosinhos para averiguar as denúncias de alegados maus-tratos apresentadas por um grupo de sócios que dizem que os “maus-tratos nunca deixaram de acontecer”.
O caso foi também já denunciado junto da Segurança Social.
Refugiando-se no anonimato, os funcionários e utentes que decidiram falar à Lusa, descrevem um cenário em tudo idêntico ao que as autoridades de saúde encontraram em 2020, ano em que morreram, segundo números oficiais, 24 utentes de covid-19 e em que até o Exército teve de intervir.
À data, perante a incapacidade da instituição para travar a progressão da doença, as autoridades transferiram os idosos para outras instituições. Após a desinfeção das instalações, os utentes voltaram depois para o Lar do Comércio, sítio já naquela altura investigado por suspeitas de maus-tratos. Ouvidos pela Lusa, funcionários e utentes perguntam, reiterando que nada mudou, porque nada está a ser feito.
Os relatos repetem-se, como se de um eco se tratassem: “os idosos estão a morrer aos bocados por falta de cuidados”, conta um funcionário à Lusa.
Diz não entender a razão pela qual as autoridades não intervêm. Há utentes com lesões, alguns de vários anos que precisavam de outros cuidados, outros que se queixam de ter assaduras causadas por horas com fraldas sujas e alguns a quem se esquecerem de dar o jantar ou a medicação.
“O lar parece uma casa fantasma”, descreve um outro funcionário da instituição que traça um cenário dramático, com idosos, mais de cem, mais de metade dos quais acamados ou sem autonomia, “deixados à sua sorte”.
Dentro e fora de portas, no apoio domiciliário, as refeições são, relata, de má qualidade e em quantidade insuficiente.
As queixas, diz, são frequentes, mas não há ninguém para as ouvir. A diretora de Serviços da Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) “aparece uma vez por semana, se tanto”, e nem sempre está disponível por telefone.
Relata ainda que houve utentes que “não tomaram banho durante meses porque foi detetada, em fevereiro de 2022, a bactéria da legionela no sistema de abastecimento de água”. Situação que hoje diz não saber se está resolvida. Conta que foram colocados filtros em alguns chuveiros, mas não em todos, e instalado um contentor das obras com diversos chuveiros de forma provisória.
“Se tomaram lá banho 50 pessoas, e alguns mais do que uma vez, foi muito. A utilidade que teve foi para encher garrafões com água quente para dar banho aos utentes”, denuncia, referindo que a situação do Lar do Comércio que “estava mal, ainda ficou pior”.
A doença dos legionários, comummente conhecida como Legionella, é uma forma de pneumonia que pode, entre outras consequências, ser fatal. As pessoas com mais de 50 anos estão entre o grupo com maior risco de complicações.
Entre os residentes vitalícios do Lar Comércio, ouvidos pela Lusa, impera a tristeza. Apesar de terem os seus espaços, pelo qual pagam cerca de 350 euros mensais, decidiram sair devido à falta de condições.
“Fomos obrigados a sair para viver”, afirmou um dos residentes, acrescentando que “andam a brincar com a vida humana”.
Quando investiram num lugar vitalício no Lar do Comércio para garantir tranquilidade no fim da sua vida, estavam longe de imaginar um cenário como o que descrevem hoje.
À Lusa, outro dos residentes diz ter assistido na primeira pessoa, a situações de abandono, falta de cuidados e maus-tratos reiterados. Utentes abandonados em salas sem assistência a suplicarem por água, utentes com chagas “onde cabia um punho” ou que passaram meses doentes sem que lhes fossem perguntadas coisas mais básicas – se estavam bem, se tinham comida, ou se precisam de cuidados de enfermagem.
Conta como um senhor na ala dos residentes foi abandonado à sua sorte, durante três anos. Quando deixou de se alimentar, “partiram-lhe os dentes para o entubar”.
Não é caso único. Outros como este senhor, sublinha, também foram abandonados. Equipas de auxiliares sem formação, enfermeiros e médicos em constante mudança explicam em parte, garantem, a situação em que se encontram os idosos.
“Não quer dizer que antes [em anteriores direções] estivesse tudo bem, mas agora está pior”, afirmou, lamentando a degradação dos cuidados prestados, que já em 2020 levantava dúvidas.
A Lusa questionou o Lar do Comércio sobre estas acusações, mas até ao momento não obteve qualquer esclarecimento.
Foram também pedidos esclarecimentos à autoridade de saúde local de Matosinhos, que ainda não prestou informações sobre esta matéria.
Em 2020, mais de 100 idosos foram infetados com covid-19, 24 dos quais acabaram por morrer. A atuação do lar, levou o Ministério Público a abrir um inquérito já em fase de julgamento.
O antigo presidente da direção, a ex-diretora de serviços e a própria lar estão acusados de 67 crimes de maus-tratos, 17 dos quais agravados pelo resultado morte. A acusação sustenta que os arguidos, atuaram “com a consciência de que a omissão dos cuidados aos utentes poderia causar-lhes a morte, como veio a suceder”.
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