“Já estamos arruinados. Que mais mal pode fazer o coronavírus”, pergunta Irene Kampira, enquanto separa roupas em segunda mão para vender num dos mais movimentados mercados de Harare, capital do Zimbabué.
Num dos países mais pobres e devastados de África, a população está confrontada com a escolha diária entre a sobrevivência e o cumprimento das medidas recomendadas para prevenir um vírus, que, segundo Irene, “pode até nem matar”.
O país entrou a 30 de março em quarentena total como medida preventiva face à pandemia de covid-19, mas o distanciamento social está a ser suplantado pela procura de alimentos, dinheiro e transporte público barato, conforme constataram, nas ruas de Harare, os jornalistas da agência noticiosa Associated Press.
“É melhor apanhar coronavírus enquanto se procura dinheiro do que ficar sentado em casa e morrer de fome", defende Kampira, recolhendo a aprovação generalizada dos outros vendedores do mercado.
Neste contexto, e para muitas das 15 milhões de pessoas do Zimbabué, as medidas de isolamento social e de lavagem frequente das mãos com água potável e sabão, recomendadas pela Organização Mundial de Saúde, parecem desenquadradas.
Este país da África Austral tem poucos casos de infeção pelo novo coronavírus, mas o seu sistema de saúde é frágil e está sobrecarregado com problemas de saúde como o HIV, que afeta 12% da população, ou os graves níveis de subnutrição no país.
No ano passado, um especialista das Nações Unidas classificou como “chocante” o número de pessoas famintas no Zimbábue, tendo em conta que país não tem qualquer conflito ativo, e o Programa Alimentar Mundial (PAM) estimou que mais de 7 milhões de pessoas precisam de ajuda alimentar.
Harare, como a maioria das cidades e vilas do Zimbabué, tem falta de água e os residentes por vezes passam meses, ou mesmo anos, sem uma torneira a funcionar, recorrendo a poços comunitários e favorecendo assim o contacto próximo que poderá acelerar a propagação do coronavírus.
"Se as torneiras estivessem a funcionar não estaríamos aqui, enxameando o poço como abelhas numa colmeia ou moscas no esgoto. Estamos aqui ocupados a trocar coronavírus, tossindo e espirrando para cima uns dos outros", disse Annastancia Jack, de 18 anos, enquanto esperava a sua vez num dos poços da cidade.
O governo fechou as fronteiras e proibiu a concentração de mais de 50 pessoas, enquanto incentiva as pessoas a ficarem em casa, mas a maioria dos zimbabueanos precisa de sair diariamente de casa para conseguir colocar comida na mesa.
Com uma inflação de mais de 500%, a maioria das indústrias fecharam, atirando muitas pessoas para a venda ambulante, num país com a segunda maior economia informal do mundo depois da Bolívia, de acordo com o Fundo Monetário Internacional.
Nos últimos dias a polícia tem tentado, sem sucesso, tirar os vendedores das ruas.
Por outro lado, as necessidades diárias da população tornam o distanciamento social uma ilusão. Na baixa de Harare, centenas de pessoas concentram-se à porta dos bancos para levantar dinheiro e outras viajam apinhadas nos transportes públicos.
“Nós somos os únicos a praticar o distanciamento social, sentamo-nos no carro sozinhos o dia todo", disse Blessing Hwiribisha, um motorista, que aguardava numa fila de mais de um quilómetro para meter gasolina no subúrbio pobre de Kuwadzana.
Num supermercado do outro lado da estrada, centenas de pessoas debatiam-se para conseguir comprar farinha de milho, que se tornou escassa devido à seca devastadora, que há meses assola o país, e à falta de moeda estrangeira para a importar.
“O que está a acontecer no Zimbábue é muito assustador. É como se estivéssemos a jogar às cartas: ou se ganha o coronavírus ou se ganha a fome", disse, por seu lado, Tinashe Moio, que procurava entrar no supermercado.
"Estou muito assustada", acrescentou.
Devido à greve, poucos são os médicos e enfermeiros disponíveis nos hospitais públicos.
“Há uma diferença entre ser heroico e ser suicida", defende Tawanda Zvakada, presidente da Associação de Médicos Hospitalares do Zimbabué.
Os médicos denunciam a falta de desinfetantes, sabão e mesmo água nos hospitais, apesar das repetidas garantias do ministro da Saúde, Obadiah Moyo, de que o Zimbabué está bem preparado para responder aos casos de covid-19.
Os médicos citam a morte de um conhecido apresentador de televisão num centro de isolamento especificamente reservado para os casos da COVID-19.
“Não tinham um ventilador para o ajudar", disse Zvakada.
"A incapacidade do nosso sistema de gerir um paciente é preocupante. E se houver 50 pacientes”, questionou.
Segundo a associação de Médicos, o Zimbabué tem menos de 20 ventiladores para acudir a pessoas com graves problemas respiratórios, estimando-se que sejam necessárias centenas para lidar com este vírus.
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