O pecado é um conceito arcaico que existe em todas as religiões, e a ciência, desde que criou massa crítica (o termo “cientista” foi usado pela primeira vez em 1834), é vista como a antítese da religião. Considera-se, em termos gerais, que quando a ciência avança a religião recua, embora uma não explique completamente o que a outra afirma. Já dizia o poeta Henry David Thoreau, em 1851: “Com toda a vossa ciência, podem dizer-nos como e quando a luz entrou na alma?”
No entanto, as religiões continuam dominantes, inabaladas pelas descobertas científicas que explicam alguns dos seus “mistérios”. E a ciência, pelo seu lado, não para.
Neste contexto, é interessante que um neurologista, ao explicar as atitudes e emoções do ser humano através de dados unicamente fisiológicos, se interesse pelas definições do que é o “pecado”. Foi o que fez Jack Lewis ao analisar os sete pecados capitais (para quem não sabe, ou não se lembra: gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e orgulho), à luz do conhecimento cada vez mais completo das ligações cerebrais. Falamos com Lewis por ocasião da apresentação, na Feira do Livro, do seu ensaio, “A ciência do pecado” (Desassossego, Lisboa, 2019).
Você tenta explicar os sentimentos e as atitudes das pessoas – os “pecados” – como sendo o resultado de ligações dentro do cérebro. Mas não haverá também razões sociológicas, para lá da fisiologia? Costumo dizer que uma pessoa é 50% caráter e 50% educação. Aqui apostaria que é uma situação análoga; somos metade o que o computador do nosso cérebro é – a química as ligações dos neurónios - mas também há uma componente social, não acha?
O cérebro foi concebido para ser altamente adaptável aos impulsos que recebe do mundo exterior, portanto concordo completamente. Se pegarmos num bebé, com um determinado ADN e se ele crescer no Círculo Ártico, as ligações do cérebro, as suas capacidades e aptidões serão diferentes do que se crescer na floresta amazónica. Portanto, há um enorme potencial para se desenvolver em ambientes muito diferentes, mas o ambiente em que cresce contribui para a sua especialização. O cérebro capta indicações das cores e da vegetação, mas também das pessoas à sua volta e das informações que elas lhe dão.
Não são apenas as variações de ambiente climático...
Não, não. Também o ambiente social. Se ele crescer entre canibais, onde seja uma coisa nobre e maravilhosa cortar cabeças da tribo rival e depois comer o cérebro, vai ter isso em grande consideração e aspirar a fazer o mesmo. Mas se for educado noutra sociedade, que tenha outro conceito de certo e de errado, em que o Estado e a religião influenciam o que as massas pensam, assim como as pessoas com quem convive, isso muda os circuitos do seu cérebro.
Tenho um certo ceticismo quanto ao poder da nossa mecânica interior em moldar o que somos. Parece-me que o ambiente social é muito forte e muito importante – pode mesmo lutar-se contra ele, mas a sua presença é inegável. Custa-me a acreditar que mude as conexões fisiológicas do cérebro. Pode ir-se contra a ordem instituída ou ser a favor dela, mas é sempre essa ordem que nos faz ser como somos. Aquela história extrema que você referiu, dum homem normal que se tornou pedófilo por causa dum tumor no cérebro... Sei de pedófilos que não têm nenhum tumor, são normais fisicamente.
Como sabe, os conservadores consideram que comportamentos, não só a pedofilia, mas também a homossexualidade, são “doenças”. E o que você diz é quase a mesma coisa. Não uma doença, mas uma modificação no cérebro a que se pode chamar um desvio.
Uma alta percentagem de pedófilos poderia interferir na infância de muitos e isso poderia “implantar” o desvio de modo a que se tornasse uma coisa boa. O sofrimento que se tem por fazer uma coisa considerada universalmente como má seria aliviado fazendo o mesmo que os outros. É uma forma perversa e estranha de encarar a situação, mas pode criar um equilíbrio na cabeça. Pensar uma coisa assim: “o professor ou o adulto que interferiu comigo é uma criatura diabólica” ou então achar que é uma coisa normal que as pessoas fazem. Qualquer destas noções, uma vez implantada no cérebro, pode crescer desmesuradamente.
Mas há duas maneiras de interpretar a história do homem do tumor: uma é que o tumor, ao comprimir uma determinada parte do cérebro criou essa predileção de interagir com crianças; a outra é que já existia um desejo latente que seria suprimido em circunstâncias normais mas um determinado circuito, ao ser comprimido pelo tumor, eliminou a capacidade de contrariar esse impulso e inibir tal comportamento.
"A novidade é o sal da vida, não é? É normal que as pessoas achem menos interesse em alguém com quem vivem há muito tempo. Então, a vontade é natural, mas a seguir entra a moral."
Mas falemos de outras situações. Por exemplo, amor e sexo. O sexo envolve obviamente uma atividade química. A testosterona e tudo isso.
Bem, as pessoas ficam muito confusas com isso. Porque se têm uma vontade sexual em relação a alguém que não é o seu companheiro sentem-se culpadas. Mas trata-se duma coisa absolutamente normal, que há de acontecer sempre. A novidade é o sal da vida, não é? É normal que as pessoas achem menos interesse em alguém com quem vivem há muito tempo. Então, a vontade é natural, mas a seguir entra a moral.
Contudo houve sociedades, como a romana, em que isso não era um pecado. Quer dizer, uma mulher não gostava que o marido a enganasse, mas não era visto como um pecado.
Pois não, mas mesmo assim refletia-se na confiança na relação. A traição influencia o nível de intimidade. Por mais que as mulheres ou os homens romanos aceitassem as infidelidades, mesmo assim sentiam-se magoados. Então, não acho que devamos suprimir a nossa luxúria. Mas se estamos num relacionamento estável, há uma vantagem em construir e manter essa confiança, em vez de a trair com outra pessoa. É esse o problema: o desejo, a vontade de gratificação imediata é muito poderosa, embora saibamos que no dia seguinte, algum tempo depois, havemos de lamentar o que fizemos.
Se for uma aventura duma noite, pode-se esconder.
Mas se se faz uma vez, é provável que se faça outras. Além disso, não podemos esconder a coisa de nós próprios. Sabemos o que fizemos e para corrigir temos de minimizá-lo, pelo menos.
Há muitas pessoas que acham normal ter essas aventuras.
Claro que há. Mas se pudessem voltar atrás, tenho uma forte impressão de que não o fariam, por causa das consequências num relacionamento a longo prazo. Têm medo de que um dia, mesmo que seja trinta anos depois, a história venha ao de cima, lhes acabe com o relacionamento e morram sozinhos.
Para mim, os sete pecados capitais são atitudes que acabam por nos levar a uma solidão e a más relações sociais que é muito mau para a saúde, mental e física.
Mas, claro, é difícil convencer uma pessoa de que ter agora uma oportunidade sexual com alguém com quem não tem uma relação estável pode vir a prejudicá-la daqui a vinte anos.
Sempre achei que os pecados foram inventados como uma maneira de controlo por parte das igrejas. Os pecados não são os mesmos em todas as religiões, mas todas as religiões têm pecados. Os budistas, menos.
Para os budistas, são barreiras para a iluminação. Mas ainda é um pecado, não no sentido de que ofende um deus, mas porque mesmo assim impede a pessoa de atingir a iluminação almejada.
Creio que os cristãos e os muçulmanos são os mais radicais quanto a pecados, especialmente relacionados com as mulheres – ou com elas, ou que elas cometem. O controlo exerce-se através da decisão do que é pecado ou não é pecado, e depois da vigilância, dos outros ou interior, para não cair nele. E quem determina tudo isso é a autoridade religiosa. Não há aqui nenhuma questão fisiológica.
"Tudo deve ser praticado com moderação, até os sete pecados mortais. Acho que o extremo, o exagero, é que é mau para a pessoa."
Eu diria que os pecados mortais são posturas que prejudicam a comunidade e as relações em geral. Imagino que começaram de uma forma benevolente, como atitudes que eram más para quem as cometia. Depois do sistema (de crenças religiosas) estar instalado, é que passa a ser usado pelos que estão no poder para controlar os outros. Mas é possível que tenham sido inventados para dar mais felicidade a um maior número de pessoas.
No nosso tempo já não são considerados mortais, tanto no sentido de matarem a pessoa, como no sentido de matarem a sua oportunidade de ir para o paraíso... Porque a inveja, digamos, pode ser má para quem a sente, mas a vaidade (ou orgulho) até é, como você diz no livro, um componente natural da nossa personalidade e precisamos dela. Se não tivermos orgulho em nós próprios perdemos a auto-confiança.
Tudo deve ser praticado com moderação, até os sete pecados mortais. Acho que o extremo, o exagero, é que é mau para a pessoa.
No livro, você estabelece uma diferença entre orgulho, vaidade e arrogância.
A vaidade é uma componente do orgulho. A arrogância é uma atitude. Mas a vaidade muitas vezes parece arrogante.
Arrogância é humilhar o outro, não acha? A vaidade é centrada em si próprio, mas a arrogância é em relação aos outros.
Realmente, não sei. Uma pessoa arrogante certamente que gosta de humilhar outrem. Acho que você tem razão, porque se uma pessoa é muito vaidosa, narcisista, é suficientemente arrogante para humilhar as outras pessoas, dizendo-lhes “sou muito melhor do que você, e não me interessa se o magoo ao dizê-lo”.
Então, narcisismo é ter uma grande opinião sobre si próprio, não é?
Bem, todos temos que ter uma boa opinião sobre nós próprios, até um certo ponto. Todas as pessoas pensam que estão acima da média, mas os narcisistas exageram na sua auto-avaliação.
A auto-confiança é o conhecimento do que valemos, e o orgulho é a felicidade de sermos como somos. Concorda?
Creio que sim, é isso. O narcisismo é pensar que não há ninguém melhor, uma enorme satisfação com o que somos. Achamos que sabemos tudo, mesmo quando confrontados com a nossa ignorância. Achamos que o sucesso dos outros se deve a nós próprios. Somos os melhores, estamos numa nuvem acima dos outros, e ignoramos qualquer prova do contrário.
Outra coisa: a inveja não é o mesmo que o ciúme, certo?
Certo. Concordo 100%.
Porque a inveja tem a ver com uma necessidade.
A pessoa quer uma coisa que outra tem.
Exatamente. O ciúme é o medo de perder.
Exactamente. É falta de auto-confiança. Mas o ciúme tem uma componente de inveja. Porque se a pessoa tem ciúmes do seu companheiro é também porque tem inveja das pessoas por quem ele se interessa.
Não tenho a certeza. Acredito que a inveja é o sentimento predominante em Portugal.
Em que sentido?
Se uma pessoa se destaca por alguma razão – ou porque é rica, ou porque faz algo bem feito – as pessoas reagem imediatamente com inveja. E isso tem sido um grande problema deste país. Veja os ingleses, por exemplo, quando alguém faz um grande produto, a reação dos outros é tentar fazer um produto ainda melhor.
Entendo, vou ser ainda melhor do que o outro.
"Acho que há uma diferença entre a inveja benigna e a maligna. Na benigna, a vontade é de subir mais alto, na maligna, de puxar o outro para baixo."
Nos portugueses, a reação é: este filho da mãe fez um grande produto. Vou lixá-lo! Por exemplo: temos agora um Presidente que é uma pessoa muito simpática e popular. Claro que é um político, não um santo. É muito esperto, sabe o que faz, se há um grande desastre vai logo lá consolar as pessoas. Mas há muitas pessoas que o detestam. Porquê? Inveja. As pessoas têm inveja de todos os que veem como melhores ou mais bem-sucedidos. Se uma pessoa faz muito dinheiro é logo considerada desonesta, porque ganha mais do que os outros.
A inveja é um sentimento muito destrutivo. Não torna a pessoa melhor. Mas acho que há uma diferença entre a inveja benigna e a maligna. Na benigna, a vontade é de subir mais alto, na maligna, de puxar o outro para baixo. A intriga maliciosa é o resultado da inveja maligna. Porque os mexericos podem não ser feitos com má intenção; é o equivalente ao modo como certos primatas se arranjam; passam muito tempo a pentear-se e a lavar-se para impressionar os outros.
Você menciona que as redes sociais vieram aumentar muito a vaidade e a inveja.
Pois vieram. Podem ser usados com boas intenções, mas amiúde as pessoas são mal-intencionadas. Exageram a sua qualidade de vida; é uma exibição dos seus aspetos positivos, eliminando cuidadosamente tudo o que é negativo. Quando se vê as publicações no Facebook parece que toda a gente tem uma vida perfeita. Quando comparamos com a nossa vida, parece que não é tão boa.
Há também uma certa emulação. As pessoas tentam copiar as que acham melhores. Não é mau em si. Mas vejamos outra coisa: você usa os conceitos de pecado, que é são muito antigos, e avalia-os duma forma contemporânea, fisiologicamente. Acha que o avanço da ciência e a descoberta da localização das funções do cérebro fará com que os pecados deixem de ser considerados falhas de caráter, como antigamente?
Eu vejo o pecado como um comportamento antissocial extremo. Não é um comportamento mau em si, mas pode sê-lo no extremo, levando a pessoa ao isolamento social. Se uma pessoa comete algum destes sete pecados em pequena escala, não faz mal a ninguém; mas se for em grande escala, praticamente fora de controlo, a pessoa vai prejudicar-se e eventualmente os outros, familiares e amigos vão-se afastar. O pecado tem a ver com fazer da sua vida na terra um paraíso ou um inferno.
"As pessoas precisam de grandes objetivos que ultrapassam a luta diária pela vida, que é aborrecida."
Não tem nada a ver com religião, então.
Se uma pessoa acredita em Deus ou não, tanto faz. Todos precisam de vigiar os pecados que cometem, para não os cometer em excesso – se não as pessoas de que precisa na sua vida viram-lhes as costas. E isso torna a vida um inferno na terra. Se a pessoa controla os seus pecados e tem uma atitude pró-ativa a ajudar os outros, sem egoísmo, então é provável que os outros também a ajudem. É isso que cria e mantém as relações sociais. As conexões sociais saudáveis prolongam a vida física e mental, reduzem o perigo de depressão e ansiedade.
Quem é que pode dizer se existe o Céu e o Inferno? Eu acho que não existem, mas posso estar enganado... A questão é: quer se acredite em Deus ou não se acredite, vale a pena controlar estes sete pecados porque todos os humanos, sejam quais forem as suas crenças religiosas, têm dentro de si a potencialidade de os cometer duma forma descontrolada.
Contudo, apesar de não acreditar no Céu e no Inferno, você afirma que as religiões são necessárias. Não é um paradoxo?
Acho que as pessoas precisam de grandes objetivos que ultrapassam a luta diária pela vida, que é aborrecida. O comunismo, por exemplo, propunha um conceito do poder nas mãos do povo e podia-se sentir o esse poder como ideal. Depois da sua queda, o capitalismo não parecia um objetivo igualmente grandioso. A religião ressurgiu na Rússia como uma etapa intermédia entre a grandeza do comunismo e os objetivos do capitalismo.
Mas o comunismo não era apenas anti-capitalista, também era anti-religioso.
Creio que as pessoas, no fundo, precisam de alguma coisa para venerar. Mesmo que a religião seja uma falsidade, enquanto trouxer esperança, mantém as pessoas focadas num objetivo. E com as suas emoções sob controlo. Facilita enfrentar as durezas da vida.
Conhece-se alguma cultura que não tivesse uma religião?
Não sei, mas acho que não. Porque na ausência de uma religião oficial as pessoas têm tendência para venerar alguma coisa – pelo menos a natureza. E depois a religião, ao levar as pessoas a frequentar um templo, igreja, sinagoga, tanto faz, cria um sentido de comunidade, de pertencer a um grupo, que lhes faz falta. É essa conexão com os outros que realmente precisamos. Todos os seres humanos sentem essa necessidade de se unir para agradecer o que têm, seja as colheitas ou o bom tempo, a paz, ou outra coisa qualquer.
O que você propõe, ou pressupõe, portanto, é uma dessacralização do pecado.
Sim, aquilo a que chamamos pecados são questões de socialização. O cérebro adapta-se a essas questões e ao que interessa à pessoa.
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