Quem são uns e outros? Iluminados, ou convencidos disso, há muitos. Ainda assim, nunca o mundo moderno esteve tão às avessas. É que, na realidade, vivemos alguns equívocos. Em certa medida, Portugal, como país periférico, é um caso à parte. E que caso.
Esta conversa, ou "Bárbaros e Iluminados", podia muito bem ser um tratado de psicologia. Mas, como diz Jaime Nogueira Pinto a certa altura, nem sempre aprendemos com as lições da história. Talvez isto desperte a curiosidade do leitor: no livro é transcrita uma carta de Engels para Marx, num período em que a Alemanha faz uma tentativa para despenalizar a homossexualidade, em que Engels ironiza sobre o "vício infantil" daqueles que, como eles, ainda gostam de mulheres. E hoje, o que parece absurdo?
Numa palavra, o século XIX foi o século da liberdade, o século XX o da igualdade e o século XXI é o século da identidade. Portugal, mais uma vez, é uma amálgama. Para o bem e para o mal. Mas prefere parecer a ser. Com contornos, muitas vezes, rocambolescos...
Dedica-se ao estudo das ciências sociais e políticas. O seu livro "Bárbaros e Iluminados" pretende responder a questões que a maioria dos analistas não soube calcular: a vitória do Brexit, de Trump ou de partidos considerados anti-sistema. Na sua opinião, por que motivo falham as previsões?
As tentativas de previsão na História são antiquíssimas, há diversas teorias... Tentar adivinhar o futuro é uma coisa que, no fundo, sempre obcecou os homens. Mas é evidente que todas as previsões, toda essa futurologia está muito marcada pelas convicções, pela ideologia de quem as faz. A ideia da objectividade pura do historiador, do pensador que deixa de lado as suas crenças, não existe.
Nestes casos em concreto, houve um pensamento claramente optimista. Porquê?
Porque a ideia em que assenta a Europa é também um pouco uma filosofia de optimismo. Em meu entender baseada em pressupostos errados, como o de que a União Europeia evitava guerras entre os Estados europeus. Quer dizer, depois da II Guerra Mundial, os Estados europeus deixaram de ser o centro do mundo e o centro do poder e, como é evidente, as guerras, que têm a ver com uma certa dominância política na área internacional, passaram a ser entre as superpotências da época: os Estados Unidos e a União Soviética. Que, como tinham armas nuncleares, nunca tiveram conflitos directos, utilizaram sempre intermediários, fossem Estados ou movimentos.
As sociedades mudam, mas as pessoas não mudam. Aquilo que é a natureza humana não muda
Mas o optimismo não explica tudo ou explica? Há o desencanto?
Outra coisa que acentuo no livro "Bárbaros e Iluminados" é a redução da política à economia: a mensagem que movimentos como este da União Europeia trazem, por um lado, o optimismo de que o período das guerras está ultrapassado, por outro, de que hoje tudo se reduz à gestão - o que era um sonho antigo, já no século XIX Comte [Auguste] dizia que a partir do momento em que entrássemos na sociedade industrial as guerras iriam desaparecer e em vez do governo dos homens teríamos a gestão das coisas. Ora, isso é tudo contrário àquilo que, em meu entender, é imutável, que é a natureza humana. A ideia de que a natureza humana muda...
A tentativa de mudar a natureza humana para melhor tem, normalmente, efeitos catastróficos
Há quem, de tempos a tempos, tenha esse sonho...
As sociedades mudam, mas as pessoas não mudam. Aquilo que é a natureza humana não muda. Se lermos alguns dos primeiros textos da história da humanidade, da Bíblia, dos poetas gregos ou dos trágicos gregos, está tudo ali, a natureza humana está lá: a paixão, o ciúme, a violência, o ódio, o amor... Os homens são iguais desde o início dos tempos. É por isso que Ulysses, por exemplo, é uma personagem eterna, recriada em cada época. Joyce [James] recriou-o e continua a ser uma figura actual. O sonho das utopias é mudar a natureza humana. Aliás, uma parte extensa do livro é dedicada a isso: o "Nós", do Zamiatine [Evgueni], ou o "Brave New World" do Huxley [Aldous], mostram que a tentativa de mudar a natureza humana para melhor normalmente tem efeitos catastróficos. Enquanto a literatura utópica do século XIX, já um pouco ligada à ficção científica, como Wells [H.G.], era relativamente optimista, a do século XX, sobretudo as tentativas feitas na altura dos regimes totalitários, que foram os que tiveram esse poder - a União Soviética e Estaline, o curto tempo do domínio do Nacional Socialismo na Alemanha, o eugenismo, o aperfeiçoamento da raça, a eliminação das classes sociais –, acabaram por ter efeitos perversos. Mas, de facto, não colhemos estas lições. E ficaram todos muito surpreendidos quando surgiram estes movimentos a que agora chamam populistas. Porque populismo é a popularidade dos outros, à esquerda ou à direita, desde que saia do mainstream, é populista. Mas isso, que eu saiba, não resolve nada.
Hoje tudo é populismo...
Exactamente. Macron derrota a Front National e Marine Le Pen encarnando uma determinada forma de populismo. Ele vem do establishment e aparece como uma novidade. Tem êxito porque ganhou o referendo anti-Le Pen, o que, penso eu, seria possível a qualquer um. E sim, tudo é populismo. Isso vê-se na questão agora muito acesa da corrupção dos políticos. Eu costumava dizer que só iam para a cadeia os pobres e os desconhecidos, porque a partir de determinado nível os adiamentos são constantes e os processos arrastam-se. Não vamos também dizer que todas as pessoas compactuam, mas o sistema é perverso.
Reduziu-se a política à economia e pensou-se que o crescimento económico ia ser para sempre
Porquê perverso?
As instituições judiciais, as magistraturas, para se defenderem um pouco, perceberam que tinham de criar uma certa cumplicidade. Nesse aspecto o sistema está viciado. Apesar de tudo, as pessoas são racionais, são conscientes, e formulam juízos. O due process of law fez-se para dar garantias às pessoas, mas não para criar um sistema tão perverso que seja possível ficar eternamente sem uma decisão. Tudo isto tem de ter uma certa medida. Penso que houve um erro e é este o problema principal: a ideia de que o crescimento económico ia ser contínuo, continuado. Reduziu-se a política à economia e pensou-se que o crescimento económico ia ser para sempre – como foi naqueles 30 anos, praticamente até ao choque petrolífero de 1973. As pessoas foram criadas nesta expectativa, mas isso mudou por variadíssimas razões, uma delas a globalização.
"Com a globalização voltámos a ter muitos aspectos do capitalismo selvagem. E é evidente que isso tinha de causar reacções fortes"
É aqui que entra o capitalismo selvagem...
O capitalismo sobreviveu, e é um ponto que me parece importante – Marx declara, até com uma certa graça, que no seu tempo não havia sociedades socialistas, mas que conhecia muito bem o capitalismo. E tinha um certo fascínio pelo lado completamente subversívo do capitalismo. Achava que o capitalismo, pela sua natureza subversiva, acabaria por destruir as suas bases éticas, económicas, políticas, etc. E isso não aconteceu porque o capitalismo se reformou. Quer dizer, o tal capitalismo selvagem de que Marx e Engels falam n'"O Manifesto" – e aquele que está nos romances de Dickens [Charles] e de Zola [Émile], o da exploração infantil, dos horários de trabalho sem limites, dos salários miseráveis, da selvageria - acabou por se reformar, mas, ao contrário do que se conta, não pela vontade dos capitalistas, mas muito forçado pelo próprio Estado da Alemanha, com as leis sociais de Bismarck. Há também uma carta muito interessante, se não estou em erro do Carnegie para o Rockefeller, a dizer exactamente que deverão começar a fazer fundações e organizações filantrópicas, caso contrário terão enfrentar uma revolta social. E os Estados Unidos tiveram grandes tensões sociais até implementar leis de trabalho, leis sociais.
A globalização trouxe muitos desses receios de volta.
Com a globalização voltámos a ter muitos destes aspectos do capitalismo selvagem. E é evidente que, num dado momento, isso tinha de causar reacções fortes. Onde é que essas reacções apareceram? Na Europa e nos Estados Unidos que, apesar de tudo, são as zonas mais democráticas do globo. Aquilo que se traduziu numa vantagem para uns, na melhoria de condições económicas em países como a China, que em 30 anos, desde as reformas de Deng Xiaoping, criou classes médias significativas, fez-se à custa de outros. Na Europa e nos Estados Unidos as classes trabalhadoras e, sobretudo, as classes médias baixas, levaram um abanão. E na Europa, sobretudo na França, na Alemanha e na Grã-Bretanha - e na Itália e na Espanha um pouco, já para não falar nos países nórdicos -, a questão de uma imigração culturalmente muito diferente, e que acaba por não ser assimilável, também provocou o aparecimento dos tais partidos populistas ou de direita radical ou identitários. Porque é evidente que os sistemas não estão preparados, ou melhor, parecem não ter resposta para estas questões.
As pessoas, os eleitores – ou os potenciais eleitores – reagem de forma diferente consoante a idade, a classe social, o meio em que residem?
Depende muito. Em Itália, a Liga Norte, que agora é só Liga, atinge mais as áreas de desindustrialização. Em França, a Front National é mais forte no norte. Aliás, na zona de Lille, nos anos 90, deu-se um fenómeno curioso: à queda do Partido Comunista correspondeu uma subida idêntica da Front National, ou seja, houve uma transferência de votos directa. Parece absurdo, mas porque os quadros das pessoas, às vezes, também não são adequados à realidade. Uma das coisas que observamos é que é cada vez mais difícil as estruturas interpretativas adequarem-se à realidade, porque a realidade é muito rápida. Marx tinha essa noção, de que a tal realidade do capitalismo, pela sua natureza subversiva, revolucionária, estava sempre a mudar, que resulta nestes fenómenos, as guerras comerciais a que assistimos. Em quem é que Trump pega, quais são os países com que acaba por ter problemas? São aqueles que têm maiores excedentes comerciais com os Estados Unidos: a China, o México e a Alemanha, não por esta ordem.
Gera-se uma certa esquizofrenia: não se pode viver sem eles, mas recusa-se viver com eles...
O que é curioso é que não estamos preparados para coisas que já aconteceram. Como por exemplo na Europa, nos séculos XVI e XVII, em momentos de crise. Muitas vezes aquela ideia da bipolarização... Temos fenómenos muitos interessantes, como as guerras dos Países Baixos, em que se dá esta situção: Filipe II está a combater a revolta dos protestantes holandeses e o seu exército, que é comandado pelo duque de Parma, Alessandro Farnese, é abastecido por uma esquadra comercial holandesa paga pelo governo espanhol. E é com esse dinheiro que o governo holandês paga o exército que está a combater Farnese. E está tudo muito tranquilo, ninguém se importa.
It's just business, como diria o outro...
Hoje começamos a ter situações dessas. O que revela uma certa interdependência entre o económico e o político. E esse mundo, que é complicado, bem como as tentativas de o explicar, são outro dos problemas com que nos confrontamos. A excepção hoje multiplica-se - quer dizer, as teorias gerais, por exemplo, o marxismo/leninismo, a interpretação histórica do que é a luta de classes, são conceitos importantes, servem para explicar alguns conflitos, mas não explicam tudo. Segundo, Marx – sobretudo, segundo a vulgata marxista, que não é bem a mesma coisa -, a explicação é puramente económica. Ora hoje sabe-se que não é necessariamente assim: há operários qualificados que podem ter mais rendimento do que um comerciante independente e, no entanto, o comerciante considera-se de classe média. E este pode ter valores de classe média e o outro não. Até a ideia que cada um tem sobre a sua classe social conta para isso. Não é um conceito objectivo. Penso que um dos problemas complicados da filosofia marxista é a questão do objectivo.
"Penso que já houve uma mudança de paradigma: o valor identidade voltou a ser importantíssimo neste momento"
É subjectivo?
Sim. O que são condições objectivas? As condições são sempre percepcionadas por alguém, portanto há sempre uma subjectividade nas sociedades, que são medida do homem, aquilo a que Kant chamava "a coisa em si". Estamos os dois a olhar para o mesmo microfone, a mesma perspectiva, sabemos o que é, mas não há uma objectividade, vamos descrevê-lo de forma diferente. E a realidade social também vai ser descrita assim, em função dos valores sociais de cada um, dos valores religiosos, da situação de classes, situação familiar, da experiência de cada um e até da não experiência. Uma sociedade que está assim preparada, ou não preparada, é evidente que tem de ter surpresas históricas, tem de se surpreender. E penso que já houve uma mudança de paradigma: o valor identidade voltou a ser importantíssimo neste momento. Aliás, saímos para uma sobressimplificação, mas, às vezes, simplificar as coisas ajuda, dá pistas. Depois temos de ser críticos em relação a essas simplificações.
"O século XIX foi o século da liberdade. O século XX passa para a ideia da igualdade. O século XXI é o século da identidade"
Se tivesse de caracterizar, numa palavra, os três últimos séculos, como caracterizaria cada um?
O século XIX foi, de facto, o século da liberdade. A preocupação principal das sociedades do século XIX é instaurar a liberdade, sobretudo a liberdade religiosa, a liberdade de pensamento, a liberdade política, a liberdade económica. O século XX passa para a ideia da igualdade. E penso que o século XXI é o século da identidade. Até para se protegerem, as comunidades voltam muito à ideia da identidade, pelo receio da amálgama. E estamos a assistir a isso nos grandes estados; nos Estados Unidos, na China, na Rússia. São hoje Estados com governos muito identitários, para quem a a identidade é uma preocupação fundamental. E não é só Trump, os chineses são fortemente nacionalistas.
E Portugal é um caso curioso, há uma componente económica fortíssima na questão da expansão e dos Descobrimentos
E essa identidade vai contra a globalização ou a globalização pode ser também uma forma de afirmação identitária?
Acaba por ir contra, mas não em tudo. A China é fortemente identitária, mas aposta na globalização. Como os Estados Unidos apostaram no passado. E Portugal é um caso curioso, há uma componente económica fortíssima na questão da expansão e dos Descobrimentos. Na Idade Média, a economia baseava-se na agricultura, que num país como Portugal era paupérrima. Quando passamos os Pirenéus temos uma gigantesca planície europeia, até à Rússia, de terras baixas, fertilíssimas e com rios navegáveis. Aqui terras boas só a Lezíria do Tejo, Sado e baixo Mondego, o resto é paus e pedras, uma agricultura é dificílima. Lembro-me de, na minha infância e adolescência, ler os jornais e as grandes questões de homicídios em Portugal serem ou os crimes passionais ou as disputas de terras e águas. Ou seja, este país, que nos finais do século XIV consegue defender-se de Castela, escapar da hegemonia castelhana, para resolver o seu problema de recursos, que não tem, tem de sair para o mar Atlântico. E globaliza, somos pioneiros nisso, numa expansão política, militar e comercial. É evidente que os Estados Unidos foram, durante muitas décadas, sobretudo no pós-guerra, a grande potência globalizante, não só na economia, por exemplo no vestuário, com os jeans, o cinema, a cultura fílmica, televisiva - Nova Iorque tornou-se icónica.
É essa projecção americana, que hoje está a ser copiada, que está também a ser posta em causa.
Essa projecção está a ser copiada pelos chineses e por outros, embora com outra dimensão e outras condições, porque os Estados Unidos tinham uma vantagem de sucessão cultural, foram os continuadores sem interrupção do Império Britânico – no fim da II Guerra Mundial aquilo que era antes um pouco a expansão imperial inglesa, no quadro da Guerra Fria e da resistência ao chamado expansionismo soviético, passou para os Estados Unidos. Tudo isso começa a ser posto em causa por outras potências, como é normal. Pela China, mas também pela Índia e, regionalmente, por outros poderes. É um jogo que tem sempre um lado dialético, com forças que se chocam e vão produzindo sínteses. Actualmente estamos numa fase em que há uma reacção àquilo a que podemos chamar as consequências perversas da globalização, como a desindustrialização.
E há outro problema profundíssimo na Europa, que é a questão demográfica: o envelhecimento da população, que vai gerar uma situação que, não diria absurda, mas, altamente perigosa.
O que nos leva de novo à questão do porquê Trump vencer as eleições.
Primeiro, porque tinha uma adversária que, de certo modo, encarnava tudo o que os populistas odeiam: a senhora Clinton. Segundo, porque acaba por ter o voto, decisivo, em áreas que desde 1984 votavam nos democratas (Reagan só não foi eleito em dois estados), as tais zonas tradicionais da indústria: automóvel, siderurgia... E as pessoas votaram Trump não foi só porque as fábricas fecharam, não foi só por uma questão económica – claro que os salários e o emprego também são importantes -, foi também por um lado cultural, por gostarem de fazer coisas. Na Europa passa-se o mesmo: a Europa desindustrializou-se e isso marca as zonas e as pessoas, descaracteriza-as. E há outro problema profundíssimo na Europa, que é a questão demográfica: o envelhecimento da população, que vai gerar uma situação que, não diria absurda, mas, altamente perigosa.
Qual? Porque sei que não está a falar na baixa da natalidade, pura e simplesmente...
Por um lado, os europeus não querem mais filhos ou têm poucos filhos e têm sistemas sociais precários. Portanto, precisam dos imigrantes. Mas, como os imigrantes vêm de certo modo descaracterizar a tal identidade de que temos vindo a falar, também se incomodam com isso. Estas são questões que normalmente se apresentam de uma forma unilateral e a solução encontrada é esta ideia de multiculturalismo das sociedades... Só que as sociedades não são tão multiculturais como gostamos de pensar. Uma sociedade como os Estados Unidos pode ser e foi multicultural, mas é um multicultural muito relativo; os imigrantes chegavam de países como a Suécia, a Rússia, a Itália, todos cristãos brancos. E isso marcou-lhes os costumes, há uma equivalência cultural. Porque se estivermos a falar de tradição muçulmana, já é completamente diferente. Não sei se uns são melhores do que outros, mas são diferentes. E não vale a pena estar a tapar o sol com a peneira, que é o que se tem estado a fazer.
O certo e o errado são determinados por quem tem mais força e isso é muito perigoso
O politicamente correcto. Quem define o que é correcto?
O politicamente correcto, que depois impede que as pessoas usem determinadas expressões. E, lá está, quem determina isso? A característica das sociedades liberais é exactamente, desde que não se utilize a violência, pode defender-se uma teoria. Numa sociedade, e a prática foi sempre essa, um sujeito pode até defender uma prática racista, desde que nesse limite. Se não, como é que defendo que é bom ou mau? Aí começa a ser complicado. Ou então começa a ter sistemas de controlo. E nós, exactamente aquilo que tínhamos no passado, eram sistemas de controlo. Agora estamos a passar para o politicamente correcto, que é não poder usar determinadas palavras e expressões.
São formas de censura?
São formas de censura. E é muito complicado e perigoso. O certo e o errado são determinados por quem tem mais força e isso é muito perigoso.
Então vamos policiar a linguagem de todos, mas qualquer dia não podemos falar.
Celebrámos agora o 25 de Abril, a liberdade. É uma liberdade condicionada, intimidatória? Começa no exemplo caricato do "atirei o pau ao gato", que já ninguém pode cantar, e vai dar ao fascista?
Criou-se aqui uma série de interditos e tabus, o tal politicamente correcto, e que às vezes tem aspectos caricatos... As pessoas da minha geração têm uma determinada linguagem... É como dizia o Trump: os homens, entre eles, dizem aquelas coisas, toda a vida disseram. Não sei como é entre as mulheres, mas os homens sempre se gabaram de coisas, usaram palavrões... Isso agora também passa a ser proibido? Começa a ser muito complicado. E criam-se umas ligas, umas organizações que fazem queixa... Essas coisas acabam por gerar reacções, às vezes de uma grande brutalidade e violência, que também não é impune. Penso que as sociedades vivem destas coisas. Esta ditadura do chamado politicamente correcto, que é o policiamento das expressões, também tem exageros. Há determinadas expressões em relação aos homossexuais que não podem e não devem ser utilizadas. Mas eu sou católico e vejo essas expressões a ser utilizadas em relação ao Papa ou aos bispos ou à própria religião, tradições e crença católica e ninguém se importa com isso. Portanto, há aqui um tratamento completamente desigual. Aquilo que é injurioso em relação a uns deve ser aplicado em relação aos outros. Então vamos policiar a linguagem de todos, mas qualquer dia não podemos falar. Aliás, é curioso, no "Bárbaros e Iluminados" transcrevo uma carta do Engels para Marx – as pessoas acreditam sempre que a História é feita de blocos de bons e maus – escrita num período em que a Alemanha faz uma tentativa de despenalizar a homossexualidade. E Engels diz mais ou menos: "Bom, qualquer dia, pessoas como nós, que têm o vício infantil de ainda gostar de mulheres, vão ter a vida desgraçada e ainda acabam acusadas de ser heteros. Felizmente já não vamos viver nesses tempos". As sociedades são assim, há coisas que nos parecem hoje completamente absurdas, incredulíssimas, mas em determinadas épocas são assim.
Racista não sou, mas sou nacionalista. Falaram das duas como se fosse a mesma coisa
Há um ano uma conferência sua na Universidade Nova de Lisboa foi travada pela associação de estudantes, que o acusou de xenófobo, fascista... Ficou adiada sine die. Já tem data?
É uma coisa extraordinária. Foi uma coisa... Só teve alguma gravidade, e até foi um episódio um tanto pícaro, porque, primeiro, foi uma decisão tomada por uma associação de 32 pessoas, numa faculdade de 5 mil alunos, o que é um tanto ridículo. E depois teve um efeito perverso: normalmente tenho 60, 70, 80, 100 pessoa já é uma festa, numa conferência destas. A conferência foi proibida e acabei por publicá-la no Expresso, o que significa que foi lida por uns milhares de pessoas. Mas é daquelas coisas completamente imbecis: eu racista? Tenho mais amigos negros do que a maioria dos portugueses, acredito.
Mas se fosse racista perdia o direito a expor a sua opinião?
Não. Mas o que é estúpido e abusador é juntar tudo no mesmo saco: racista e nacionalista. Racista não sou, mas sou nacionalista. Falaram das duas como se fosse a mesma coisa.
Tem uma empresa em Moçambique...
Tenho, emprego lá 2700 pessoas.
Trata-os mal?
Não, até os trato bem e pago-lhes os salários. Mas toda a vida tive esta relação normal, nunca me fez a menor confusão... Nunca me passou pela cabeça. O nacionalismo português nunca foi racista, nem podia ser, historicamente. Portanto, tudo isso são disparantes, é uma misutra de desinformação, falta de cultura e ignorância profunda.
O problema não foi tanto a associação de estudantes, mas das autoridades académicas, que tiveram medo e que nunca querem conflitos. Aliás, é um dos problemas das nossas sociedades: não querem conflitos, nunca querem decidir
Como é que um grupo de aluno tem este poder? E o papel reitor?
O problema não foi tanto a associação de estudantes, mas das autoridades académicas, que tiveram medo e que nunca querem conflitos. Aliás, é um dos problemas das nossas sociedades: não querem conflitos, nunca querem decidir. Perante qualquer situação, negam o conflito, não decidem. É o sistema de, perante qualquer situação, criar uma comissão para estudar o assunto em vez de tomar uma decisão. Ora a política, e isto é uma afirmação de Carl Schmitt, é decidir. Pessoas que estão legitimamente em determinados lugares políticos têm de decidir. Hoje observa-se muito essa fuga mais ou menos permanente, o adiamento. Aliás, lembro-me de quando tentou encontrar-se uma solução: a conferência não tinha sido proibida, tinha sido adiada. Não foi nada adiada, foi adiada sine die. São estas formas mais ou menos diplomáticas ou politicamente correctas ou socialmente correctas de evadir os problemas que gostamos de adoptar.
Quem são em Portugal os Bárbaros e quem são os Iluminados?
Bárbaros não há. Iluminados são quase todos. [risos] Não, Portugal está, de certo modo, um pouco à margem deste fenómeno. Talvez seja dos pouquíssimos países da Europa que está à margem. Porque, curiosamente, não tem aquelas causas que na Europa determinaram estas reacções; não temos o problema da imigração, temos uma pequena taxa, à volta de 400 mil estrangeiros a viver em Portugal, numa população que ronda os 10 milhões. Desses, cerca de 50 mil são muçulmanos, de um modo geral pessoas completamente integradas na vida social do país, uma comunidade ismaelita muito significativa, outra de gente oriunda da Guiné-Bissau e outras. Em França há cinco ou seis milhões de muçulmanos, a maior parte vindos de Argel, de Marrocos, da Tunísia... Desses, 90% ou 95% podem ser pessoas ordeiras e integradas, mas basta que os restantes 10% ou 5% causem confusão para haver problemas gigantescos. E nós também temos uma capacidade integradora fácil, até porque fomos um país e emigração, mas ao mesmo tempo com uma fortíssima identidade nacional, o que penso ser um trunfo para Portugal. Não temos esses problemas de secessões, de Catalunhas, comunidades com religiões diferentes, um fenómeno que espero não venhamos a destruir com esta ideia de voltar à regionalização, que acho perigosíssima.
Porquê perigosíssima?
Porque vem criar exactamente divisões. Compreendo a regionalização, o poder das regiões, como aconteceu na Alemanha e na Itália, para manter unido o que de outra maneira se poderá separar. Quando não há problemas de separação, não faz sentido fragmentar uma nação ou um estado artificialmente, sob pena de nascem de facto as tais fragmentações.
Para descentralizar não é preciso regionalizar, criar regiões
A regionalização faz sentido para descentralizar serviços, poderes?
Para descentralizar não é preciso regionalizar, criar regiões. Não sou perito em Direito Administrativo, mas ainda sei alguma coisa de Direito Político. Descentralizar não tem nada a ver com regionalizar. Criar poder autónomo legítimo numa determinada área, chamar-lhes uma região, é que não tem pés nem cabeça. Descentralizar competências, isso é uma questão de bom senso administrativo e de capacidade política, porque também não é fácil. Evidente que temos uma questão importante em Portugal e da qual raramente se fala, que é a da macrocefalia de Lisboa. Lisboa foi sobretudo a cabeça do Império e a tesouraria do Império. Fazia sentido, então. Era um pouco como Viena, na Áustria, que era a cabeça do império dos Habsburgo. O império desapareceu a partir da Grande Guerra, há 100 anos, mas Viena ficou igual. Quer dizer, a pequena Áustria, chamemos-lhe assim, ficou com uma capital talvez demasiado grande. Lisboa é um pouco isso.
Isso vê-se ainda hoje pelo Tejo, o porto natural...
Explica muito os fenómenos e as causas da independência portuguesa. Se olharmos para a costa, depois da Galiza, que tem uma série de portos naturais, praticamente desde a fronteira do Minho não há portos naturais. Era dificílimo desembarcar em Portugal. Quando Wellington desembarcou na Figueira da Foz, em Lavos, fê-lo em condições especiais. O país é bastante invulnerável nesse aspecto. Shakespeare, numa das suas peças [As You Like It, 1599], tem uma expressão muito engraçada: uma das personagens diz qualquer coisa como 'o meu amor por ti tem um fundo desconhecido, como "the bay of Portugal"', ou seja, como o estuário do Tejo. Mas Lisboa, esta Lisboa que conhecemos, cresce sobretudo a seguir à guerra, que é quando se faz Alvalade. Aliás, há um filme muito interessante de António Lopes Ribeiro, de 48 ou 49, onde se vêm ainda todas as obras de Alvalade, a conclusão de algumas obras das Avenidas Novas, e esta dimensão muito grande da cidade. Na minha geração as pessoas vinham de uma terra, havia poucas pessoas de Lisboa, que foi um fenómeno que se deu também com Madrid, foram cidades que cresceram muito depois da guerra, são os tais fenómenos de industrialização. E, sobretudo, é um fenómeno cultural, a pessoa quer ir para o sítio onde que passam coisas. Estamos a falar de uma época anterior à televisão: o cinema português, a idade de ouro, a comédia dos anos 30, 40 e 50, do António Silva, em que tudo se passa na capital, há a miragem para resto do país, que é aquilo que se faz hoje nas telenovelas - os brasileiros fazem isso magistralmente - que é mostrar as cidades para as pessoas terem vontade de ir lá. Os franceses também fazem isso, ainda agora vi uma série na Netflix, "Marseille", com o Depardieu [Gerard]. Essa valorização, que é outro fenómeno, a força das grandes cidades. Até porque se passa ali uma coisa que já vimos no romance do século XIX, no Balzac, no Dickens, no Flaubert, que é as pessoas quererem ir para a grande cidade porque é lá que se muda de vida. É o sítio onde há heróis – são homens, as heroínas são estáticas, vivem através das grandes paixões, o romance do século XIX era machista, vemos isso em "O Primo Basílio", "Madame Bovary" ou "Anna Karenina", elas são todas castigadas. E, repare, os escritores eram supostamente gente progressista, mentes abertas. O Flaubert, que foi processado por amoralismo no "Madame Bovary", safou-se porque o advogado que o defendeu e alegou que ela era castigada e, no final, acabava por se suicidar, havia ali moral. Mas todo o romance do século XIX tem presente a ideia de que é na grande cidade que se progride, que se muda de vida. Agora, uma vez mais, quem fica para trás? Porque isto ainda é um pouco um jogo de soma zero, há sempre uns que perdem. A ideia de que todos ganham não é verdade. Nisso sou muito céptico. Claro que a vida das pessoas melhorou muito nos últimos anos, pois tinha que melhorar, mas isso não tem a ver com os modelos políticos, tem a ver com o crescimento natural das sociedades. O Schumpeter [Joseph] dizia sempre que uma marquesa do tempo do Luís XV não tinha à sua disposição os mesmos cosméticos que tem uma modesta dona de casa, mas isso tem mais a ver com o progresso industrial e técnico do que com a política.
Sobre as elites, não podemos dizer que não temos elites, mas o conceito de elite mudou?
Pois, elites temos sempre. O embaixador Franco Nogueira, de quem fui muito amigo e que conheci muito bem, uma pessoa de grande categoria e de grande coerência – faria este ano 100 anos – de certo modo popularizou aquela frase segundo a qual "o povo é bom, as elites são más". É uma sobressimplificação que muito gostam de usar, porque o problema da renovação da história é um problema de renovaçãoo de elites.
Em Portugal temos muito a coisa da amálgama. E as pessoas querem fazer-se passar por aquilo que não são. Aliás, a comédia portuguesa baseia-se muito nisso
Vamos definir elites, em primeiro lugar...
Podemos dizer que o nascimento e a profissão determinavam, nas sociedades tradicionais, o lugar social. As revoluções, a modernidade vieram alterar isso. Nas sociedades modernas há várias elites: continua a haver uma elite de sangue, chamemos-lhe assim, uma elite do dinheiro, uma elite intelectual e académica, uma elite de pessoas conhecidas, por serem grandes desportistas, pessoas com uma certa visão social e as elites políticas, deputados, governo. Estas várias elites são um tanto periféricas em relação à Europa, porque é evidente que as elites francesas ou alemãs são mais ricas e destacadas... Isso vê-se nas fortunas. Por exemplo, no fim da II Guerra Mundial, os Krupp ainda tinham dezenas de criados em casa e não eram criados filipinos ou ucranianos, eram alemães. O que acontece é que, nas sociedades modernas ou pós-modernas, o dinheiro ultrapassou o resto. Antes havia uma mistura de valores intelectuais, económicos, políticos e sociais, as pessoas eram medidas em função de uma pontuação global. Hoje, a tendência é muito o dinheiro. E, claro, também existe uma confusão muito grande entre notoriedade e notabilidade. As pessoas têm a obsessão de ser conhecidas e acham que isso lhes dá direito a tratamento privilegiado. É engraçado, eu frequentava um café ao pé de minha casa, o Magriço. Esteve fechado para obras e, para grande alegria minha, reabriu agora. Mas ia lá desde os vinte e poucos anos e era atendido normalmente, não sei se bem, se mal. Um dia fui à televisão, a um desses programas de debates, e no dia seguinte cheguei lá e o gerente disse imediatamente: "É um café aqui para o xôtor!" [risos] Eu tinha aparecido na televisão e passei a ter outro estatuto. Até podia ter ido à televisão por ser um criminoso... As sociedades modernas geram este tipo de coisa. Curiosamente, a sociedade portuguesa procurou sempre juntar famílias de uma relativa importância social, nome, a dinheiro. E isso foi uma forma de uma sociedade relativamente pequena e periférica sobreviver. Porque em França não se vê muito isso, mas lá as famílias tradicionais tinham recursos para não precisarem de se cruzar com a burguesia. Em Inglaterra exactamente a mesma coisa. Em Portugal temos muito a coisa da amálgama. E as pessoas querem fazer-se passar por aquilo que não são. Aliás, a comédia portuguesa baseia-se muito nisso. O tal cinema de que falávamos, é sempre uma ambiguidade de identidade: o falso conde, "O Leão da Estrela", o falso rico... Os italianos também têm esse humor. E mostra que as pessoas querem fazer-se passar pelo que não são. O meu sogro, que tinha uma certa graça, dizia a partir de uma certa altura, uns anos depois do 25 de Abril, que nunca tinha visto tantos condes na lista telefónica.
Contava-se de um banqueiro que, vaidoso, mostrava no seu gabinete os quadros da família pendurados na parede: "Esta é a prima baronesa; Este é o bisavô marquês; Este é o avô conde..." E o convidado interrompe: "Por mais um lance no leilão o seu avozinho era meu!"...
[risos] Claro, os quadros dos antepassados que não são deles. Há uma reflexão de um escritor tradicionalista francês que tem muita força, Jean de La Varende, que a propósito de um texto de Victor Hugo, em que um nobre fala para os seus antepassados, ele diz que só quem não tem antepassados pode imaginar um monólogo feito para a galeria dos antepassados, porque aquela é uma cena um bocado burlesca. Mas isso é à portuguesa, porque tem um lado de uma certa insegurança, tem muito o ser e o parecer, a preocupação do parecer subalternizando o ser. Há muito isso. A comédia portuguesa, como a italiana, apanha muito isso.
Temos apenas uma inovação política interessante, que é na relação entre aquilo que era a metrólople e as terras de descoberta e conquista; criámos modelos bastante originais de integração
No livro "A Direita e as Direitas", que actualizou e reeditou agora, começa por dizer que em Portugal não mudou nada desde as eleições. Somos assim tão amorfos?
Portugal - e nesta coisa das ideias políticas discuti isto muito a fundo com o professor Martim Albuquerque, que conhece isto muito bem – não tem nenhum pioneirismo na invenção de modelos políticos. A história política portuguesa segue muito os modelos europeus, com alguma décalage em tempo. Temos apenas uma inovação política interessante, que é na relação entre aquilo que era a metrólople e as terras de descoberta e conquista; criámos modelos bastante originais de integração. Os franceses também, a partir e 1871, na Terceira República Francesa, com a Argélia e depois com a Indochina. Mas nós tivemos esse pioneirismo. Fora isso, vamos seguindo o que a Europa vai fazendo. Curiosamente, ainda não seguimos estes fenómenos mais recentes, o aparecimento dos tais movimentos ou partidos populistas, quer à direita, quer à esquerda.
Por que motivo acredita que ainda não aconteceu?
Por duas razões: primeiro porque o populismo a aparecer teria de ser de direita. Mas tivemos um regime autoritário até mais tarde exactamente de direita, pelo que me parece que torna mais difíceis as saídas por aí. Por outro lado, não temos em Portugal o forte impacto da imigração, que é o que tem causado esta onda, este ressurgimento identitário. Os fenómenos sociais e políticos surgem quase sempre como reacção e também aqui não há um sentimento tão forte quanto noutros Estados europeus. Se alguém tentar fazer hoje uma guerrilha na Suíça não terá sorte nenhuma... É a mesma coisa.
De resto, temos em nós o radicalismo necessário?
Os brandos costumes portugueses são uma coisa que veio com Salazar. Salazar, para o bem e o para mal, domesticou muito a sociedade civil. Salazar tinha horror à violência fora do estado - pese até aquela frase muito interessante: "O Estado tem de ser forte para não ter de ser violento". Porque Portugal viveu ciclos de instabilidade em instabilidade, a começar no século XIX com as invasões napoleónicas, em 1807. Depois a violência vai praticamente até quase aos anos 1930/36, porque mesmo depois do 28 de Maio, já depois da ditadura militar, no princípio do Estado Novo, ainda há muita revolta, como o 7 de Fevereiro, violentíssimo. E depois entra numa relativa estabilidade, com Salazar e os tais brandos costumes. Mas o século XIX é muito violento, mesmo em termos no pós-guerra civil. Aliás, isso está muito documentado na literatura. E ainda tivemos grandes quadrilhas, organizadas, os Brandões, o Zé do Telhado, que depois foi degredado para Angola e lá teve uma data de filhos. Eram dezenas de homens armados, matavam pessoas, assaltavam casas... Evidentemente que o sistema autoritário tem essa consequência, a violência fica organizada do lado do estado.
mesmo as pessoas da direita, preferem dizer que são do centro, ou vão do centro para a direita. Por exemplo, o novo líder do PSD teve logo a preocupação de dizer que era do centro-esquerda
Gostamos de rótulos, talvez necessitemos deles. Que esquerdas e que direitas temos hoje?
Sou suspeito, porque penso que não há direita nenhuma em Portugal. Mas mesmo as pessoas da direita, em termos de opinião, as pessoas que votam à direita, preferem dizer que são do centro, ou vão do centro para a direita. Por exemplo, o novo líder do PSD teve logo a preocupação de dizer que era do centro-esquerda. Do centro-esquerda é o António Costa e o Partido Socialista.
Ainda que a ideologia original dos partidos que representam não tenha nada a ver com o que defendem...
Sim, mas os conteúdos...A maior parte das pessoas nem liga a isso, ninguém vai ver, ninguém procura. O pensamento político é paupérrimo. Estes debates, a maior parte deles, centram-se na gestão. Tratam a política como um elemento de gestão. Durante a campanha do PSD para as eleições internas, nunca ouvi o Dr. Santana Lopes e o Dr. Rui Rio falar sobre o que pensavam da Europa, do mundo. Passaram a vida a discutir coisas internas, de família partidária, a falar das tácticas, não se discutiram conteúdos políticos.
O Parlamento está agora a discutir se os independentes devem ou não ter lugar na Assembleia da República. Qual a sua opinião?
O que interessa ver é a abstenção enorme que existe hoje em Portugal. Globalmente, os votos brancos, nulos e a abstenção nas presidenciais e legislativas já são iguais ou superiores aos votos em partidos, o que significa que o sistema está disfuncional. Eu acredito que o sistema está disfuncional porque não há direita política em Portugal, não há partidos de direita.
Mas no sistema ainda continua o peso do chamado antifascismo, entre aspas. Este peso é ainda muito forte nos media e na academia
O que é para si direita política?
Direita política, para mim, tem de ter três valores: independência nacional, tem de ser conservadora em termos de valores sociais e tem de ser liberal na economia, um liberalismo temperado com questões de justiça social. São estes os três valores que eu encontro numa direita e não vejo nenhum partido assim. E há eleitores que ou não votam porque não encontram uma partido com estes valores, ou votam últil em partidos que acham menos maus. Mas, é curioso: o CDS subiu. Lá está, a ideia de que, apesar de tudo, é menos mau para esses eleitores. Mas no sistema ainda continua o peso do chamado antifascismo, entre aspas. Este peso é ainda muito forte nos media e na academia. Não é preciso ir a Portugal, nos Estados Unidos há um desequilíbrio nestes dois sectores, que estão politicamente bastante mais à esquerda do que outras áreas sociais. Cá também.
Mas cá não têm surgido novos partidos e os últimos que surgiram apareceram à esquerda.
Isso é curioso... Espanha tem partidos novos. O Ciudadanos e o Podemos são partidos que, somados, já quase chegam aos partidos tradicionais, o PP e o Partido Socislista. Na Europa também começaram a aparecer partidos novos, à direita e à esquerda, em quase todos os países. Mas estamos numa época de partidos novos, isto também é um mercado, o mercado eleitoral, e há produtos que o mercado procura mais, portanto eles aparecem. Em Portugal não tem acontecido, talvez ainda aconteça.
Para terminar, o encontro histórico entre as duas Coreias...
Foi o Trump. Não tenha dúvidas.
Começámos esta conversa a falar da natureza humana...
Quando se censurava Trump por causa do botão nuclear, que o outro dizia eu tenho um mil vezes mais potente?! Isso funcionou. E de uma forma muito interessante, também. A Coreia do Sul era a protegida dos Estados Unidos e a Coreia do Norte era a protegida da China. Trump também conseguiu um certo entendimento com Xi Jinping, que fez mais pressão sobre a China. Moon, o presidente da Coreia do Sul, também parece não querer estar tão dependente de Trump. Esta aproximação das duas Coreias foi também uma forma de se libertarem dos seus anjos tutelares, é muito interessante esse fenómeno. Agora, se não fosse Trump a mexer aquilo tudo, nada tinha acontecido. E na semana passada lá foi Macron ao beija mão. Penso que é por isso que ele tem aquela popularidade toda junto da gente do sul, há mais pessoas assim do que como Hillary Clinton.
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