"Jean-Luc Godard recorreu à assistência jurídica na Suíça por morte voluntária, em consequência de 'múltiplas patologias incapacitantes' de acordo com os termos do relatório médico", explicou Patrick Jeanneret, confirmando uma informação publicada pelo jornal francês Libération.

A notícia é adiantada depois de confirmada a morte de Godard esta manhã, anunciada pela sua esposa, Anne-Marie Miéville, e pelos seus produtores. "Não haverá nenhuma cerimónia. Jean-Luc Godard faleceu de forma tranquila na sua residência, ao lado dos seus entes queridos. Será cremado", afirmou um comunicado assinado por Jeanneret a confirmar o óbito.

O conselheiro jurídico e fiscal da família explicou que o anúncio deveria ser feito dentro de dois dias, mas que foi necessário redigir o comunicado à pressa após a morte de Godard se ter sabido junto da imprensa.

"A cremação acontecerá em até dois dias, talvez na quarta-feira", acrescentou, antes de informar que as "cinzas permanecerão com a sua esposa". Godard morava há vários anos na cidade suíça de Rolle, nas margens do lago Leman, na companhia de Miéville.

Autor de obras influentes para várias gerações de realizadores, como “O Desprezo” (1963), com Brigitte Bardot, “Bando à Parte” (1964), “Pedro, o Louco” (1965) ou os mais recentes “Filme Socialismo” (2010) e “Adeus à Linguagem” (2014), Jean-Luc Godard ficou conhecido “pelo seu estilo de filmar iconoclasta, aparentemente improvisado, bem como pelo seu inflexível radicalismo”, como recorda o jornal The Guardian no obituário do cineasta.

Ele e François Truffaut lideraram a "Nouvelle Vague", movimento que revolucionou o cinema a partir dos anos 1950.

Em 1987 recebeu um César honorário pelo conjunto da sua carreira, seguindo-se um um Oscar honorário pela sua obra em 2010 — numa cerimónia à qual não compareceu — e uma Palma de Ouro especial concedida pelo Festival de Cannes em 2018.

Nascido em Paris, em 1930, Godard passou os primeiros anos da sua formação na Suíça, tendo estudado Etnologia na Sorbonne, em Paris, onde “conversas de café com estudantes e um trabalho manual numa barragem” constituíram grande parte da sua aprendizagem, que inspirou a primeira curta-metragem, “Opération Béton”, de 1954, lembra a biografia disponível na Enciclopédia Britânica.

Os estudos em Etnologia vieram a entroncar no trabalho de Jean Rouch, que estava precisamente a misturar a área da antropologia com o cinema num estilo designado ‘cinema vérite’. A sua formação cinematográfica passou também pelas funções assumidas como crítico de cinema na famosa revista "Cahiers du Cinéma".

Quando pegou na câmara, já tinha uma ideia clara do que queria fazer: acabar com o classicismo que mais uma vez inundara o cinema francês após a Segunda Guerra Mundial.

"O Acossado", o filme de 1960 que o consagrou, utilizou os travelling de câmara e a música de forma inovadora. Foi o seu primeiro trabalho e com ele ganhou logo um prémio de realização no Festival de Berlim.

Este foi apenas o início, junto com outros jovens diretores como François Truffaut. "Godard é o maior cineasta", assegurou este último. "Ele não é o único que filma como respira, mas é quem respira melhor", admitiu.

Realizadores como o norte-americano Quentin Tarantino, que chegou a ser cofundador de uma produtora intitulada “Bando à Parte”, referiram-se a Godard como um “libertador”: “Para mim, Godard fez aos filmes aquilo que Bob Dylan fez à música. Ambos revolucionaram as suas formas”, disse Tarantino, numa entrevista de 1994 com a Film Comment.

Até à sua morte "JLG" procurou sempre a provocação e experimentação, ignorando unanimidade e alternando filmes para especialistas com blockbusters.

Controverso em termos políticos e artísticos, a sua obra estava longe de consensual no meio: por exemplo, Paula Rego detestava o seu trabalho e Ingmar Bergman dizia-se incapaz de compreender os seus filmes, uma vez que os considerava “feitos para críticos”.

Foi autor de frases imortais, como "o cinema não escapa à passagem do tempo. O cinema é a passagem do tempo" e cenas fascinantes, como Brigitte Bardot a conversar nua na cama. Ou Jean-Paul Belmondo a caminhar com Jean Seberg nos Campos Elísios.

O texto do Libération sobre Godard abre com uma citação do português Manoel de Oliveira (1908-2015), com quem Godard dialogava em abundância, que dizia que o cinema do autor de “O Maoista” “é a saturação de signos magníficos que se banham à luz da sua falta de explicação”.

“Ele começou a escrever sobre os filmes que via na [revista] 'Cahiers du Cinema' e formou alianças com artistas que se tornariam no núcleo da Nova Vaga francesa. Embora moldada a partir dos filmes de ‘gangsters’ de Hollywood, a estreia de Godard, ‘O Acossado’, desafiou as convenções do cinema e espantou críticos, cineastas e públicos com o seu estilo de improviso, trabalho de câmara ‘handheld’ impulsivo e saltos intencionais”, pode ler-se na biografia disponível na página da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Godard esteve na criação de um coletivo intitulado Dziga Vertov, que, mais do que produzir “filmes políticos”, radicais em termos estéticos, tinha o propósito de “fazer filmes politicamente”, o que impunha a perspetiva em “todo o processo", da produção à rodagem, citava a Cinemateca Portuguesa, na apresentação de um ciclo sobre o grupo, em 2018.

A partir dos anos 1980, o hermetismo foi ganhando lugar, e os seus últimos trabalhos, como a monumental "Moments choisis des Histoire(s) du cinéma", apresentada em quatro volumes e um filme, eram mais como colagens de imagens e sons.

Godard foi um artista que se casava com as atrizes que dirigia e depois deixava-as, que conseguiu cancelar um festival (Cannes) para se juntar ao movimento nas ruas (o Maio de 1968), que filmou e depois editou sem seguir nenhum conselho.

Os seus compromissos políticos deixaram um pesado legado de mal-entendidos, como a sua adesão à Revolução Cultural Chinesa, que causou milhões de mortes na década de 1960.

Essa década, porém, foi a sua época mais fértil. Fez filmes de sucesso como "Pedro, o Louco", mas também curtas de três minutos que se resumiam a panfletos de propaganda.

Apoiador da causa palestiniana, fez, com Anne-Marie Miéville, "Aqui e em Qualquer Lugar" (1976), um documentário em que compara os judeus com os nazis, o que provocou escândalo. Em seguida, irritou o papa João Paulo II com "Je vous salue, Marie" (1984), em que a Virgem aparece nua na tela.

A partir da década de 1980, Godard isolou-se na Suíça. O contato com o mundo do cinema e das celebridades tornou-se mais esporádico.

Godard voltou assim às paisagens que viveu enquanto criança. Era proveniente de uma família rica, mas os seus pais divorciaram-se e ele teve uma adolescência difícil, em Lausanne.

As reações à morte de Godard não se fizeram esperar: o britânico Edgar Wright escreveu, no Twitter, que, apesar de iconoclasta, o realizador “reverenciava o sistema de Hollywood, já que, provavelmente, nenhum outro cineasta inspirou tantas pessoas a pegar numa câmara e começar a filmar”.

A Cinemateca Francesa lembrou Godard através de uma frase: “O cinema não está ao abrigo do tempo. Ele é o abrigo do tempo”.

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