João Carlos Espada, diretor do Centro de Estudos Internacionais da Universidade Católica de Lisboa, é um especialista nas ideias políticas que formaram a nossa cultura e acaba de publicar ”Liberdade como Tradição”, um livro que relata, através dos escritos de vários pensadores e das suas próprias ideias, os conceitos que sustentam a democracia e os seus contrários. É uma obra indispensável para quem quer saber como chegamos onde chegamos, e que deveria ser obrigatória em todos os estudos de Humanidades.
Falar com João Carlos Espada desafia-nos a percorrer uma espécie de corredor da História ocidental, interagindo com nomes que moldaram os nossos valores e as nossas ideias sobre a melhor forma de viver em sociedade.
Esta é uma entrevista sobre o seu livro, que vale não só pela clareza das suas ideias como pelo facto de ele ter conhecido e convivido com com pessoas que só conhecemos através dos livros que escreveram.
Este livro tem informação para um curso de um ano ...
De facto, o livro resulta de uma cadeira semestral que evoluiu ao longo dos anos. Na verdade, não consigo dar num semestre todos os autores cujas ideias abordo - Karl Popper, Raymond Aron, Friedrich Hayek, Michael Oakeshott, Edmund Burke, James Madisson, Jean-Jacques Rousseau, Alexis de Tocqueville, Isaiah Berlin, Leo Strauss Gertrude Himmelfard, Irving Kristol, Ralph Dahrendorf, Raymond Plant, Winston Churchill - .
É raro encontrar, pelo menos em português, livros como este, que colocam as ideias numa perspectiva tão abrangente do pensamento político ao longo da História. Podemos não concordar com todas, mas fazem-nos pensar - faz falta!
Como explico na introdução, o livro é o produto de uma longa evolução intelectual, reflexão, estudo, e também diálogo com alguns dos autores que estão tratados.
Teve a sorte de conhecer o Karl Popper. Deve ter sido uma experiência marcante.
Até tive oportunidade de trazer cá o Popper, que encheu o grande auditório da Gulbenkian.
Embora Portugal tenha sido uma cultura marítima, foi muito influenciada pela cultura francesa e pela referência à França e à Revolução Francesa
O essencial da sua tese é a diferença entre as democracias liberais marítimas e as continentais. Uma coisa que me chamou logo à atenção foi o facto de considerar que a democracia inglesa, que é a sua preferida, vive de um consenso - a consideração de que é imperfeita. Contudo, o Reino Unido não teve uma vida política pacata. E quando se diz que a Revolução Francesa foi sanguinária, isso é verdade no período do Terror, mas acabou por estabilizar um século depois, após deposição de Napoleão III.
De facto um dos temas centrais do livro é a comparação de duas culturas, a cultura política marítima e, não por contraste, mas por exclusão, a cultura política continental. Essa distinção vem da antiguidade; Karl Popper refere a Guerra do Peloponeso, o conflito entre a Atenas, marítima, democrática e uma cidade aberta, e Esparta, uma sociedade fechada, colectivista, autoritária. Popper é um dos vários, inúmeros, filósofos políticos que estabelece essa distinção importante entre culturas políticas marítimas e continentais.
Mas gostava de sublinhar que, quando me refiro ao Ocidente e à civilização euro-atlântica, não estou a dizer que seja apenas cultura marítima; é uma conjugação e um diálogo permanente. Embora Portugal tenha sido uma cultura marítima, foi muito influenciada pela cultura francesa e pela referência à França e à Revolução Francesa.
E o que eu faço é descobrir e perceber, ao longo do estudo e das conversas com estes autores, sobretudo Karl Popper e Ralph Dahrendorf, que eram ambos muito críticos da cultura política continental e da herança intelectual da Revolução Francesa, e defensores da importância da cultura política marítima, - sobretudo inglesa, mas que em termos mais gerais poderíamos dizer de língua inglesa, para usar a expressão de Winston Churchill naquele livro final, em quatro volumes, “The History of English Speaking People”. Levou quase 30 anos a escrevê-lo, claro que fez outras coisas pelo meio, nomeadamente ser Primeiro Ministro e organizar a resistência britânica e democrática desde o início da II Guerra Mundial. Como sabe, perdeu as eleições um mês depois do fim do conflito...
Famosamente, para os trabalhistas de Clement Atlee.
Pois, é uma coisa muito britânica. Depois ainda voltou a ser Primeiro Ministro (1951-55) e quando saiu retomou o trabalho no livro. Acho que isto é revelador da importância que ele atribuia à cultura política de língua inglesa.
Quanto às duas questões que me colocou: a Revolução Inglesa, tudo o que diz é verdade, estou de acordo, o período da guerra civil e depois da ditadura de Cromwell, a chamada República. Creio que foram onze anos de república (1649-60), que, como costuma dizer-se, serviu de vacina...
Uma república teocrática.
Totalmente teocrática, autoritária e persecutória, que sucedeu ao absolutismo monárquico de Carlos I e foi inspirada no modelo continental. Mas a revolução inglesa a que eu me refiro é a última, a Glorious Revolution, de 1688. Foi a mais recente e também podemos dizer que foi a última.
A revolução de 1688 é um acordo entre os dois partidos para excluir os extremos de cada lado
Daí que o Reino Unido se considere a primeira democracia ocidental, não é?
Exactamente. Ora, esse é um ponto muito importante, porque o que aprendíamos aqui em Portugal é que a revolução fundadora (da democracia) foi a Revolução Francesa. Ora, a francesa é de 1789. E ainda há a americana, de 1776. Um dos aspectos que achei curioso, ao longo da minha evolução, foi constatar que nós atribuimos aqui o modelo da democracia e da revolução democrática à Revolução Francesa, mas a inglesa e a americana são anteriores.
De certa maneira, a revolução de 1688 subscreve tudo o que acabou de dizer sobre o período anterior. Um dos aspetos importantes dessa revolução é que resulta de um acordo central, uma espécie de bloco central que não funde os partidos - mantiveram-se os dois partidos os Tories e os Whigs. Os Tories continuam a existir ainda hoje, são os Conservadores, os Wighs deram lugar aos modernos Liberais (Dem-Libs).
Então, a revolução de 1688 é um acordo entre os dois partidos para excluir os extremos de cada lado; os republicanos, calvinistas e protestantes, e os monárquicos absolutistas. Eles dizem explicitamente, e há vários trabalhos sobre isso, que estão a fazer uma revolução para tornar desnecessário revoluções posteriores e restaurar o sistema de regras que ascende pelo menos à Magna Carta de 1215. É o que tem a ver com esta ideia de liberdade como tradição, o título do livro; tiveram a preocupação de não dizer que estavam a inventar um sistema novo, mas a restaurar um sistema muito antigo.
Outro aspecto também muito curioso desse acordo entre Tories e Whigs é que eles declaram a soberania, nem do rei, como os Tories prefeririam , nem do parlamento, como os Whigs teriam decretado, mas a soberania “do rei no parlamento”. A ideia de um equilíbrio entre duas sensibilidades; têm uma monarquia constitucional, em que o rei é soberano mas tem de respeitar as leis do parlamento...
Deixa de mandar, praticamente.
Sim, gradualmente deixou de mandar. Mas tem um papel muito importante como figura acima dos partidos, respeitador das decisões do parlamento e defensor das regras do jogo. Portanto, quando eu me refiro a esta revolução de 1688 é como aquela em que se fundou exactamente a recusa da violência anterior que você descreveu. E também acabou com a guerra entre católicos e protestantes, sobretudo os protestantes mais extremistas, muitos deles foram depois para a América.
Também se poderia argumentar, em relação à diferenças entre o Reino Unido e as democracias continentais - não só especificamente da França, mas todas elas - que a Inglaterra hoje é o país de toda a Europa onde a diferença de classes é mais marcante.
Bom, esse tema é muito interessante, daria para uma longa conversa... Gostaria de dizer duas ou três coisas sobre isso; eu vivi em Inglaterra, estudei em Oxford quatro anos, lidei com todo o género de pessoas e nunca senti essa diferença em termos de agressividade ou de superioridade em relação a outrem. Quanto às regras de conduta, são iguais para todos e religiosamente seguidas por todos. O exemplo mais básico é o da fila; toda a gente segue rigorosamente o seu lugar na fila e é considerado absolutamente chocante alguém tentar o que eles chamam de “jump the queue”. Muitas vezes vi continentais a tentar fazer isso, mas não vou fazer considerações... Fui visitar várias universidades na Europa e em alguns países - não vou dizer quais porque não quero ser desagradável - chegava à paragem de autocarro e não havia fila. Havia imensa gente, mas amontoada e eu ficava perturbado sem saber qual era o meu lugar.
Há países continentais que são também assim - a Suécia, a Holanda, por exemplo, que são muito equalitários... Aliás a Holanda também se pode considerar uma democracia marítima.
Mas em relação a esse conceito aristocrático, não quer dizer estar acima da lei nem das regras de conduta, até pelo contrário; significa ter um dever acrescido de respeitar as normas e respeitar o outro.
Popper cita o “mistério inglês”, que assenta entre a defesa e o amor à liberdade e o sentido espontâneo de dever pessoal
Isso é o conceito de gentleman, que não é só de ter boas maneiras, mas também de respeitar as regras de fair play.
É o conceito em que Popper insistia e que, aliás, a primeira vez em que me falou nisso foi há uns trinta e tal anos e fiquei surpreendido, porque estava a estudar a obra dele e a ficar muito interessado e curioso sobre a cultura marítima britânica, por ser democrática e liberal e não revolucionária. Popper cita o “mistério inglês”, que assenta entre a defesa e o amor à liberdade e o sentido espontâneo de dever pessoal. Nunca tinha ouvido falar nessa ideia, que me surpreendeu e fascinou. Passei a estudar esse chamado “mistério inglês” que, como explico na introdução do livro, de certa maneira, começou nessa conversa com Popper. Também falamos sobre isso quando ele veio a Lisboa para uma conferência com a presença do Presidente Mário Soares.
Há uma direita liberal, democrática, e há uma direita iliberal. E à esquerda acontece o mesmo. Por isso eu evito essas expressões, porque considero que há duas direitas e duas esquerdas
Considera os americanos e os ingleses como fazendo parte da mesma cultura, mas custa-me identificá-los assim.
Tenho uma situação no livro, que aliás é do Raymond Aron, em que diz sobre os ingleses: eles não querem exportar a sua democracia para manterem a superioridade que ela lhes dá, mas porque acham que a democracia só é possível num país com cricket e um jogo parlamentar bem implantado! Mas realmente são cépticos sobre a possibilidade de exportar o seu modelo político.
Agora, quanto à diferença em relação aos americanos, há várias correntes de opinião em relação à América, mas não estou seguro se o que eles querem exportar seja a democracia. Há um grande consenso sobre a ideia de defender - e, nesse sentido, exportar - a ideia democrática. Mas isso é diferente de exportar o sistema democrático.
Mas deixe-me voltar à questão inicial da revolução americana. É muito interessante a opinião de Edmund Burke. Na cultura continental em geral, e sobretudo aqui em Portugal, Burke é visto como reacionário. Eu próprio pensava, há trinta ou quarenta anos, que ele era um conservador reaccionário. Até que vim a descobri-lo de forma diferente, numa conversa com o meu colega (também assessor político de Mário Soares) Guilherme de Oliveira Martins, com quem tenho uma longa amizade. Lá em Belém, isto em 1986-87, ele disse-me: “Não, não, o Burke não era um reacionário; era conservador, mas não era reacionário.”
E, realmente, para usar a classificação continental de direita e esquerda, há uma direita liberal, democrática, e há uma direita iliberal. E à esquerda acontece o mesmo. Por isso eu evito essas expressões, porque considero que há duas direitas e duas esquerdas.
Mas, voltando ao Burke, que era deputado Whig, liberal, (entre 1766 e 1794) quando começa o conflito com os colonos americanos, fez um discurso célebre, “On conciliation with the colonies of America” em que alerta que os colonos se estão a revoltar em nome dos ideais da liberdade inglesa, e que alguns até chegam a citar a Magna Carta. A famosa expressão “no taxation without representation” vem na Magna Carta, em 1215.
Depois, à medida que o conflito se vai agudizando e os colonos se apercebem que não têm a possibilidade de obter as suas reivindicações, começam a defender a sua independência. Mas, no início, o movimento não é pela independência, é pelo respeito dos direitos clássicos da tradição inglesa.
Aliás, houve muitos colonos que não aderiram à revolta e foram para o Canadá.
Exactamente. E quando começou mesmo a chamada Guerra Colonial, o Burke defende os americanos no parlamento, com base nas tradições inglesas. E, para acrescentar um ponto, atribui a responsabilidade pela radicalização do conflito ao rei Jorge V, que considera dogmático e intolerante.
Depois, é interessante esta situação, que refiro no livro: há uma guerra colonial, Burke está no parlamento da metrópole, mas nunca ninguém o ameaça de perseguição ou de prisão.
Contudo, quando chega a Revolução Francesa de 1789, quase todos os deputados Whig falam a seu favor. Burke mantém-se em silêncio nas primeiras semanas. As pessoas acham estranho que o chefe intelectual do partido se mantenha em silêncio, até que finalmente ele toma a palavra e diz que os colegas deviam ser mais prudentes a comentar os acontecimentos em França e que agora ele tem de falar para condenar a Revolução Francesa e considerá-la muito diferente da americana.
É que entretanto a Revolução Francesa transformou-se no Terror, não é?
E ele publica um livro “Reflections on the Revolution in France” e os colegas de bancada começam a dizer que ele está velho e a ficar senil. O Terror veio uns três anos antes dele morrer e os próprios Whigs reconhecem que afinal ele tinha razão.
O Burke é um dos seus exemplos, mas também cita o Raymond Aron que tem uma frase que me faz lembrar do Eduardo Lourenço. É que os exemplos de Aron poderiam ser considerados conservadores em geral, mas na verdade são mais heterodoxos dos que conservadores. Vou ler a definição do Eduardo Lourenço: “A heterodoxia não é o contrário da ortodoxia nem do niilismo, mas o movimento constante de os pensar a ambos. É o humilde propósito de não aceitar um só caminho pelo simples facto de ele se apresentar a si próprio como único caminho, nem de os recusar a todos só pelo único motivo de não sabermos em absoluto qual deles é, na realidade, o melhor de todos os caminhos.” Esta é a postura do Aron, não acha?
Concordo inteiramente com isso. Gostava de sublinhar que cito 14 autores, sete dos quais não são ingleses, muitos são europeus continentais. Sublinho mesmo, a certa altura, que os autores que eu trato são conservadores, liberais e trabalhistas. O Lorde Raymond Plant, por exemplo, que até conheci em Oxford, e a minha tese de doutoramento foi uma comparação entre Plant e Hayek.
Também gostava de falar disso, porque não acho que o Hayek seja o oposto do Keynes. O que o Keynes defendia era o pleno emprego como forma temporária de vencer a depressão, não como uma política estatal permanente.
Concordo inteiramente consigo, não estabeleço uma dicotomia. É interessante estar a dizer-me isso, porque acabamos de ter o Estoril Polítical Forum (organizado pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica) durante três dias, e numa das sessões, dada pelo nosso amigo italiano Angelo Petroni, falou de Luigi Enaudi (Presidente de Itália a seguir à II Guerra Mundial) e estabeleceu essa dicotomia entre Keynes e Hayek.
Ao agradecer a exposição dele, referi exactamente que não sou tão subscritor dessa dicotomia. E recordei que, quando o Hayek publica “The Road to Serfdom”, em 1944, faz uma crítica a Keynes, dizendo que as suas ideias podem levar à criação de um estado omnipotente, e Keynes manda-lhe uma carta pessoal, a dizer que apreciou muito o livro, que os princípios da liberdade que ele defende são muito importantes para todos nós, ainda que não subscreva todas as particularidades dos argumentos de Hayek. Durante a Guerra, quando Hayek era professor da London School of Economics, a escola fecha por causa dos bombardeamentos e ele é enviado para Cambridge. Keynes, que ensinava lá, convida-o a ficar no seu quarto no campus. Isto é só para dizer que sempre tiveram uma boa relação e, como disse, ambos eram defensores da democracia liberal e do convívio democrático.
Sobre Churchill, que é um herói para si, e a Aliança Inglesa. Houve agora as comemorações por ser a mais antiga da História, mas parece-me que tem sido completamente desfavorável para nós. Se formos ver através dos séculos, a Aliança serviu sempre, e muito bem, os interesses britânicos.
No caso concreto do Churchill, o que dizem é que decidiu manter o regime salazarista em Portugal, em 1946, porque achava que Salazar era o melhor antídoto contra o comunismo que no pós-guerra assolou o continente. Isto é verdade, ou não?
Bem, eu tenho opiniões bastante diferentes.
É um mistério, para os historiadores como é que um vizinho tão grande poderoso não conseguiu acabar com a nossa independência
É isso que eu gostava de ouvir.
Em relação à Aliança, eu queria apenas recordar duas coisas. Primeiro, é a aliança mais antiga ainda em vigor e fez agora 650 anos. Seria um pouco estranho e extraordinário que durante tantos séculos a aliança não tivesse sofrido tensões e perturbações e as diferenças de posição que houve. Agora, a verdade é que essa aliança perdurou e foi crucial para defender e proteger a independência de Portugal, primeiro em relação a a Espanha, uma força continental com quem temos as fronteiras mais antigas e estáveis da Europa. É um mistério, para os historiadores como é que um vizinho tão grande poderoso não conseguiu acabar com a nossa independência (quase sempre...) e isso em grande parte não se deve à Inglaterra, deve-se ao nosso sentimento de independência nacional, mas teve o apoio decisivo da Inglaterra em relação a Espanha e também, como sabemos, em reação às invasões napoleónicas.
Portanto, o que eu quero dizer não é que não tenha havido diferenças e tensões, umas mais sérias do que outras, mas a verdade é que a Aliança permaneceu durante 650 anos e foi decisiva para proteger a nossa independência, que nunca esteve em causa aos olhos dos ingleses.
Agora, em relação ao Churchill e ao Salazar. Devo começar por dizer que não sou, nem nunca fui. admirador do Salazar. Fui expulso do sétimo ano do Liceu por ordem da PIDE/DGS por estar a patrocinar a organização de uma associação de estudantes, o que eram proibido nos liceus. Essas associações eram sofrivelmente aceites apenas nas universidades. Organizei uma associação ilegal no liceu Pedro Nunes que chegou a ter o apoio de 400 alunos, 100 dos quais inscritos na associação, que defendia a liberdade de expressão. Nunca fui cliente das teses salazaristas.
Agora, sobre a questão que coloca, em relação ao Salazar na II Guerra Mundial, eu vim a saber mais tarde - não sabia na altura - e descobri em conversa com um dos biógrafos oficiais de Churchill, Sir Martin Gilbert, que convidei a vir à palestra anual da Católica, sobre Alexis de Tocqueville, em 2006. Conversei com ele ao longo dos dias em que esteve cá, e ele explicou-me que o Governo britânico, no início da II Guerra Mundial, envia um emissário especial, em nome da Aliança Luso-Britânica, para dizer ao Salazar que a Inglaterra não iria pedir a Portugal que entrasse no conflito. A neutralidade de Portugal era para convencer o Franco a ficar neutro. Nunca estudei isto por mim próprio, foi o Gilbert que me contou.
Faz todo o sentido.
E ele acrescentou que o Salazar, algum tempo depois, talvez dois meses, tem uma cimeira com Franco (Fevereiro de 1942) em Sevilha...
Foi a única vez que Salazar saiu de Portugal!
Exato, é isso mesmo! A única vez que Salazar saiu do continente. O que aliás é uma coisa extraordinária, para um homem que defendia o Império e nunca lá pôs os pés.
Então, dessa cimeira sai uma declaração de neutralidade dos dois países. E Churchill envia enfáticos agradecimentos e parabéns a Salazar.
Depois, durante a Guerra, há outro episódio que tem a ver com a base das Lajes nos Açores. Aí há um conflito sério.
Os americanos queriam invadir os Açores, porque precisavam de uma base aérea entre os Estados Unidos e a Europa.
Salazar recusa ceder a base porque, como se sabe, era muito anti-americano, e aí também há uma intervenção directa de Churchill, pressionando Portugal a aceitar a base em nome, mais uma vez, da Aliança Luso-Britânica. Salazar acabou por aceitar e os Açores tornaram-se uma base estratégica muito importante para os Aliados.
Ora bem, o que acontece a seguir à guerra, o novo governo inglês de Clement Atlee, aliás um governo muito interessante e muito inovador, que fundou a NATO e teve um papel fundamental na Aliança Euro-Atlântica - era um governo trabalhista mas ferozmente anti-comunista. (O Atlee tinha sido vice-primeiro ministro de Churchill durante o governo de coligação entre conservadores, trabalhistas e liberais, durante a guerra.) E aí, no parlamento, alguns trabalhistas começam a reclamar que se tomassem posições contra o Salazar. Acho que há mesmo uma intervenção de Churchill no parlamento em que ele diz que, de facto, o regime português não é uma democracia liberal parlamentar, mas que queria lembrar os dois episódios durante a guerra, que a maioria das pessoas não conhecia, em que Salazar, por causa da Aliança, ficou decisivamente ao lado dos ingleses. Era essa a razão para manter o Salazar, reconhecer que num momento crucial da guerra, apesar de não ser uma democracia, Portugal esteve ao lado dos Aliados.
É interessante, porque se pode dizer que a grande obra do Salazar foi ter conseguido manter a neutralidade durante a guerra, o que não foi nada fácil. Havia uma fação germanófila muito forte no Estado Novo, que ele conseguiu manter sob controle. E não gostava dos nazis porque eram ateus e eram “modernos”, socialistas de direita.
Essa distinção também é muito importante porque de facto ele suspeitava dos nazis por serem ateus e um movimento de massas.
Ela era anti-partidos, únicos ou não, tanto que a União Nacional nunca se assumiu como um partido.
Aliás, um dos grandes erros de Salazar foi não ter convocado eleições a seguir à guerra. Foi isso que nos manteve, Portugal e a Espanha, fora do clima geral de democratização da Europa toda.
Ele depois fez eleições em 1948 - a oposição teve como candidato o General Norton de Matos - mas completamente adulteradas, só para parecer que estava sincronizado com a democratização europeia. No seu caso, que conviveu com o Mário Soares, deve tê-lo ouvido dizer que nessa altura os democratas se sentiram traídos porque estavam à espera que o Reino Unido os apoiasse.
A expressão “o grande errro de Salazar” foi-me dita por Mário Soares numa conversa no jardim da casa dele, na praia do Vau. Fiquei surpreendido, porque achei que ele considerava tudo mau no Salazar, mas explicou-me que achava que durante a guerra a posição em relação aos ingleses tinha sido positiva.
Há mesmo quem ache que se o Salazar tivesse convocado eleições livres em 1945 era muito capaz de as ganhar, porque o povo estava-lhe agradecido por não termos entrado na guerra. Mas isto são especulações, evidentemente.
Deixe-me só enfatizar a minha preferência pelas culturas políticas marítimas, cuja característica mais interessante é o conceito de imperfeição. Uma das grandes vantagens da cultura política inglesa, o paradigma central, é a política de imperfeição. Popper, Dahrendorf, Aron e outros dizem a mesma coisa; a grande diferença da cultura política marítima é entender a democracia não como um regime perfeito, mas um regime que aceita e assume a sua imperfeição. Não é um sistema acabado e não se baseia em soluções finais.
É um trabalho em construção.
Exatamente. São as regras gerais que permitem, como dizia Popper, renovar o governo sem violência. Desde 2002 que debatemos isto no Instituto de Estudos Políticos e fizemos vários eventos internacionais onde estiveram, entre outros, o inglês Paul Langford, que veio falar da especificidade da Revolução de 1688, e o americano Seymour Martin Lipset, que veio falar sobre a Revolução Americana e o excecionalismo americano, porque é que não houve socialismo na América.
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