Há um aspeto que, do meu ponto de vista, que é muito importante para percebermos este livro. Tem a ver com o facto de todos nós termos uma ideia desagradável sobre o Poder. Quando falamos sobre o Poder só nos ocorrem os maus exemplos — e até a expressão que utilizamos mais é “abuso de poder”. Portanto nós, sociedade, temos sobre o Poder uma ideia negativa; mas nada se faz sem Poder.

Aliás, ocorreu-me que o título do livro podia ser ao contrário: “O Poder do domínio”…

Pois podia, mas “O Domínio do Poder” é uma espécie de réplica do programa que tenho na Rádio Observador, “O Domínio da Guerra”. Portanto, enquanto do domínio da guerra se fixa sobre os desenvolvimentos da conflitualidade internacional dos nossos tempos, o livro é sobre as razões disto tudo.

Mais abrangente.

Pretende que nós sejamos capazes de perceber a complexidade do mundo que temos, sem que essa complexidade esteja presente no livro. Quer dizer, é escrito para ser percebido; não procura refugiar-se no entendimento de que isto é tudo tão complexo que ninguém vai perceber nada! Procura identificar as grandes linhas. São dinâmicas que eu observo há muito: a dinâmica dos interesses e a dinâmica da causas.

Durante muitos anos observávamos a sociedade internacional apenas sobre o ponto de vista dos interesses, porque não havia instrumentos para que as causas se pudessem ver. É a evolução tecnológica que vai permitir trazer essa dinâmica para esta confrontação generalizada entre causas e interesses. O mundo dos interesses era o mundo dos Estados; o mundo das causas é o mundo das pessoas.

Os Estados falam sempre em “os nossos interesses”. Estou a lembrar-me da famosa afirmação do primeiro-ministro britânico, Lord Palmerston, em 1848: “Não temos aliados perpétuos, nem inimigos perpétuos. Os nossos interesses é que são eternos e perpétuos”.

Exatamente. Até aqui nós tínhamos três grandes atores clássicos: os Estados, que eram os príncipes do sistema e todas as tentativas na ordem internacional eram para dar valor aos Estados.

Mais do que os Estados, eram os príncipes propriamente ditos que eram os protagonistas. As dinastias reais.

Exatamente. E trabalharam o sistema para não dar espaço aos outros atores. Houve apenas um espaço onde nunca conseguiram afirmar-se como detentores da verdade: a relação com Deus.

Bem, Deus, como diria o Yuval Harari é uma convenção entre os homens. Vem da sua capacidade de terem conceitos abstratos coletivos.

Eu não entro no meu livro na discussão sobre a existência de Deus, mas reparo que a tentativa de organização do sistema internacional sempre teve este problema: nunca conseguiram incorporar Deus; é uma espécie de ator não controlável à solta no sistema.

Bem, Deus era representado, na Europa especificamente, pelo Papa. Daí que ele tivesse o poder de validar os dirigentes.

Pois, era isso que o Papa fazia com os soberanos. Era uma espécie de Nações Unidas, com o poder de reconhecer a legitimidade do Poder. Punha o seu carimbo: este fulano é de confiança, pode exercer as suas funções porque trabalha de acordo com a ordem divina.

Sem querer interromper o seu raciocínio, estou a lembrar-me de um caso específico, quando o Henrique VIII criou a Igreja Anglicana. Pediu ao Papa a anulação do casamento com a Catarina de Aragão. O problema do Papa não era anular um casamento, pois tinha poder para fazê-lo. O problema é que ela era filha de do Rei de Espanha e os espanhóis, os maiores contribuintes do Papa, não veriam essa anulação com bons olhos. Se aceitasse, punha os espanhóis contra ele; se não aceitasse, punha os ingleses. Isso levou ao caso original de uma Igreja que foi criada porque um tipo queria largar a mulher!

Então, os atores clássicos no sistema internacional são três: o Estado, a Igreja, e um terceiro, de natureza conjuntural, que são as alianças. Não há alianças eternas. Esta coisa da promessa duma amizade eterna é uma ficção.

É o mundo do Orwell, em “1984”: três estados, que se aliam dois contra um, conforme as circunstâncias.

Então, os atores clássicos dominaram o sistema internacional durante muito tempo. Mas a revolução tecnológica veio trazer as pessoas para a política internacional. As pessoas não existiam no sistema, eram os subditos. Alguém as representava e dava-lhes voz.

Então e a alteração da Revolução Francesa de 1789? Essa alteração é muito importante, porque o Poder deixou de ser considerado um desígnio de Deus e passou para a vontade dos cidadãos.

Sim, fez uma diferença, mas para mim o que os traz para atores emergentes do sistema internacional são os desenvolvimentos tecnológicos. As pessoas passam a poder publicar a sua opinião, goste-se ou não se goste. E atrás das opiniões das pessoas começam a aparecer as pessoas influentes…

Os influencers.

Exatamente. Aqueles cuja opinião conta. Hoje em dia, os programas de notícias de 24 horas são exatamente para que essas pessoas possam exprimir a sua opinião.

Vê isso como uma vantagem?

Eu gosto da diversidade de opiniões, é importante. Não pode haver um monopólio da opinião.

O que se diz é que a internet e as redes sociais prometiam um benefício, o facto de qualquer pessoa poder dizer publicamente o que quisesse, mas acabou por não ser o que se esperava, porque permitia divulgação exponencial da desinformação, das fake news. O que em teoria parecia muito bom, mas na prática não se tem mostrado tão bom assim.

Uma das coisas que eu falo no livro é exatamente esta confrontação entre os interesses e as causas. E, na verdade, como as causas são instrumentos muito poderosos naquilo que é a modelação do sistema internacional, os interesses perceberam que têm de se disfarçar de causas. Assim, podem chegar a um público mais vasto, expandir a sua influência.

Portanto passo um tempo a olhar para as causas. É importante ver o que são causas e o que são interesses. E defino isto de uma forma que me parece muito clara: os interesses procuram a vantagem de alguns ou de alguém em particular. As causas procuram o interesse de todos. Aplicam-se independetemente dos países, raças, religiões; têm de ser universais. Agora, o que se passa é que muitas das causas que deveriam ser universais, porque são aplicáveis ao cidadão independentemente do seu estatuto, passaram a servir apenas de arma de grupos que têm os seus interesses. Isto é a utilização de uma causa ao serviço de um interesse.

Mas há sempre interesses por trás das causas.

Sempre.Não se pode considerar como uma causa algo que pretenda estabelecer uma diferença entre as pessoas. Não posso aplicar uma causa, por exemplo, a um determinado grupo com uma determinada orientação sexual. Isto não é uma causa, é um interesse. As causas aplicam-se independentemente das orientações de cada um.

Então diga-me uma coisa em concreto: quando o Putin fala no Império Euroasiático, é uma causa, não é?  Mas o que está por detrás dessa causa é o interesse dele. É isso?

Os Estados não têm muitas causas, têm muitos interesses. Mas, para poderem chegar a uma população mais vasta têm de disfarçar esses interesses em causas. E há duas maneiras de o fazer: a primeira é criar, juntos das redes sociais, um conjunto de caixas de amplificação - podem não ser pessoas, podem ser instrumentos informáticos, bots - que difundem e amplifiquem uma determinada mensagem. Quando, por causa dos motores de busca, nós usamos uma determinada expressão ou afirmação que é repetida milhões de vezes em todo o lado, isso é utilizado pelos motores de busca. 

No fundo estamos a normalizar a mensagem; já foi vista por 30 milhões de pessoas, deve ser verdade. Hoje em dia, os Governos já não conseguem ser eficazes junto do seu público nacional e Internacional sem se socorrerem de causas. E estão disponíveis para as alterar ou criar novas causas. Sempre a esconder interesses.

E podemos enumerar os interesses, ou são tantos que se torna impossível? Há o interesse pecuniário, sem dúvida, o interesse do acessso a matérias primas com preços aceitáveis… São esses dois, ou há mais?

Os interesses são uma das dinâmicas que alimentam o poder internacional. Sejam Estados, sejam associações. Toda a dinâmica do Poder serve-se daquilo que eu chamo aqui no livro de os factores do poder. Todas as áreas onde possam ser eficaz. A área económica e financeira, certamente, a força militar, que agora ganhou uma relevância que nós pensávamos que estava em declínio, escondida pelas causas da paz e da harmonia, a diplomacia, através do isolamento dos países, reduzindo-lhes a voz no panorama internacional. Tudo isto são instrumentos que nós utilizamos para construir Poder. É uma ciência, não é um acaso. Requer continuidade de objetivos estratégicos, a afetação dos recursos necessários e a capacidade. O Poder não se reparte, e é o instrumento da comunidade internacional que permite a mudança. Os insastisfeitos criam instrumentos de Poder para operacionalizar a mudança.

Um exemplo prático: o caso da China. Quais são os interesses e as causas?

Muito bem. O livro tem um capítulo só dedicado à China que mostra que o país só passou a ser um ator do sistema internacional com a chegada dos ocidentais, nomeadamente os portugueses. Até aí vivia isolada, porque tinha uma visão do Estado que incluía o imperador, com um vínculo sagrado ao Céu, em torno dele um conjunto de funcionários que trabalhavam na Cidade Proibida, depois os súbditos e, fora do perímetro dos súbditos, um conjunto de estados-vassalos, um tampão que permitia à China viver isolada dos problemas do mundo.

Além disso era enorme, 9.600 milhões de Km2, o que também ajuda.

Aquele sistema funcionava porque a China tinha essa dimensão geográfica. Mas os europeus chegaram por mar.

Eu tenho uma impressão sobre as causas da arrogância atual da China: após o contacto com os ocidentais, os chineses foram humilhados durante muito tempo. Primeiro pelos ingleses, quando forçaram a abertura dos portos para lhes vender o ópio como moeda de troca pelo chá. Quando a imperatriz quis impedir a venda do ópio, fizeram-lhe uma guerra, junto com as outras potências ocidentais. Mais tarde, foram invadidos pelos japoneses. Muito da atitude da China atual tem a ver com essas humilhações. Sentem uma grande necessidade de mostrar que agora são fortes e independentes.

Faz sentido do ponto de vista da percepção do mundo e da necessidade de ter Poder para não ser humilhado. A China foi integrada à força no sistema internacional com a pressão política, económica e militar exercida pelas potências ocidentais. Porque, com todas as suas riquezas, era um gigante que não podia permanecer fora do sistema. 

Depois há um processo de empoderamento do país feito pelas mesmas potências - que descrevo no capítulo 8, fundamental para perceber tudo isto.

A globalização é um fenómeno muito antigo, em que os portugueses tiveram o seu papel. Mas deve-se sobretudo aos ingleses, com um império de natureza comercial, enquanto os anteriores eram de natureza militar. As grandes empresas que criaram, como a East India Company, a Hudson Bay Company e outras, tinham mais poder do que a coroa e até mais efectivos militares. 

O que se fez na globalização foi um entendimento de natureza exclusivamente economico-financeira sem uma intervenção política, e esse é que foi o “erro”, digamos, do ponto de vista ocidental. Pensamos que era melhor as nossas indústrias mudarem para países onde não houvesse greves, os salários fossem baixos, com uma garantia de continuidade da produção e onde se localizavam as matérias-primas. Antes disso, íamos buscar as matérias primas a esses países e industrializávamo-las na Europa. A lógica era esta: numa cadeia de valor-acrescentado, o que menos acrescenta valor é a produção. O que acrescenta valor é o transporte, a comercialização, a marca, o marketing, etc. Uma camisola de algodão é igual em todo o mundo, é feita de algodão, mas a marca que se coloca faz com que seja vendida a dois euros ou a duzentos euros.

Dos fatores de que falou, o menos percetível pelo consumidor é o transporte. A camisola custa dois euros a produzir e vinte a transportar.

Exatamente. Mas então, esta lógica levou a que parecesse compensador colocar o fabrico na Ásia. E não mandamos para lá só as fábricas; com as fábricas foram os engenheiros e com os engenheiros foi o conhecimento. Então, a certa altura, quem tinha as matérias primas, passou a ter o conhecimento para as transformar.

Nisso, os chineses foram os mais eficientes a absorver a tecnologia.

Os novos “tigres asiáticos” são um produto da globalização. Não resulta em nada daquilo que eles próprios possam ter feito. Provem desta escala de valor em que a produção não parecia suficientemente valiosa.O que vale é a marca. O produto, pode ser feito por empresas em todo o mundo.

Mas entretanto houve uma evolução estranha: a China tornou-se o maior mercado de consumo de alguns desses produtos. A Tesla vende mais carros na China do que nos Estados Unidos. De grandes produtores, eles passaram a ser também grandes consumidores.

Agora, acha que a causa - a ideologia deles - aqui faz diferença?

Também falo nisso no livro. A China, de repente, viu-se dotada de um conjunto de instrumentos de criação de poder que era inimaginável. A criação de riqueza passou por eles porque, além de fabricar, também transportam e comercializam. Eu acho que, a certa altura, deu-se um golpe genial no Partido Comunista Chinês. Já eram um sistema capitalista, com empresas cotadas em Bolsa, grande consumo como motor de crescimento, desigualdades tremendas. Como é que um país que afirma o socialismo, o comunismo liderado por um partido único, pode ser tão capitalista?

O golpe ´é o “socialismo à chinesa”?

Exatamente. Uma ideia extraordinária. O socialismo com características chinesas.

Quando caiu a União Soviética, o que os russos fizeram foi liberalizar a política e não liberalizar a economia - que passou da direção do partido para os oligarcas. Os chineses - na altura era o Deng Xiaoping - viram aquilo e decidiram fazer o contrário: liberalizar a economia e manter a política de partido único.

Há poderes essenciais e poderes derivados. O poder militar precisa de um determinado poder económico para se sustentar. Graças à globalização, a China ficou com estes instrumentos de Poder. Deng Xiaping, determinou vários objetivos. O primeiro era a unificação do país, absorvendo Taiwan, Hong-Kong e Macau. E lá vem novamente a genialidade chinesa: depois de inventar o “socialismo capitalista” cria a teoria de “um país, dois sistemas.” O Mao Tsetung deve dar voltas no túmulo a pensar que o Partido Comunista que ele criou alimenta a ideia de que talvez seja bom fazer prosperar um sistema capitalista!

Bem, Hong-Kong e Macau estão resolvidos. Taiwan é um problema diferente. A China pode invadir a ilha quando quiser; mas Taiwan é o maior produtor de chips do mundo. Para a conquistarem, os chineses vão ter de arrasar tudo, e lá se vai a produção de chips, que aliás eles próprios precisam e compram. Não será possível refazer a produção de Taiwan num ano ou dois. Acho que é por isso que eles não invadem.

A ideia inicial era que estes pedaços de território não tinham nada a perder com a reintegração. Mas o PCC quer ser a única expressão política do que é o sentimento dos cidadãos. Macau, não houve problemas porque é apenas um enorme casino e a influência portuguesa insignificante. Mas Hongkong, administrada pelos ingleses, tinha uma vivência política própria e era um grande mercado de capitais, absolutamente incompatíveis com a visão chinesa. A integração provocou um choque político e não económico. Ao suprimir todas as liberdades em Hongkong assustaram Taiwan.

O que acha que vai acontecer?

Bem, Taiwan não é a Ucrânia, onde há uma continuidade territorial com a Federação Russa. Taiwan é uma ilha, e isso faz toda a diferença. São precisos navios, cais de embarque, segurança durante a travessia. A capacidade de aplicar força diminui consideravelmente no caso das ilhas.

Foi isso que manteve a independência do Japão, há mil anos. A China, que era mais desenvolvida, tentou duas vezes invadir o Japão e não conseguiu.

Exatamente. É por isso que os impérios europeus conservaram ilhas um pouco por todo o mundo. Não há muitos países no mundo com capacidade de projetar poder naval. A China ainda não dispõe desse poder, mas está a construi-lo. Portanto, se Taiwan não se integrar a bem, um dia vai-se integrar a mal.

Bem, para terminar, e sempre dentro do tema do domínio do poder, vamos falar do Trump. Eu acho que ele vai ganhar.

Ele vai ganhar. Tenho uma grande tristeza. Sou um homem das democracias liberais. Pode ser uma ideia ultrapassada… As democracias liberais custaram tempo a vingar e até custaram muitas cabeças na guilhotina, mas devíamos estar orgulhosos do que se conseguiu. Mas deixámos que a questão dos direitos (dos cidadãos) se sobrepusesse à questão dos deveres. Ora, este sistema só funciona se houver uma equidistância entre os dois.

Eu diria que os deveres já existiam no ancien regime. O que as democracias liberais trouxeram foi os direitos.

Mas agora estamos a retirar deveres da lista. Portanto qual é a minha grande preocupação? É que os norte-americanos não sejam capazes de eleger uma pessoa razoável para a liderança dos Estados Unidos da América. Que a escolha seja entre alguém que veremos brevemente cair das escadas do avião e alguém que não seja capaz de nos dar previsibilidade.

O problema é que o sistema deles acaba por ser pouco democrático. A Hilary Clinton teve mais votos do que o Trump. Mas na Constituição não se pode mexer.

Em termos mais universais, a democracia já provou que não resolve uma série de problemas; criou uma classe de políticos profissionais que se vendem aos interesses. Chegou-se a um ponto em que as pessoas honestas não querem entrar para a política. Temos de re-inventar os mecanismos democráticos.

Só para terminar o meu raciocínio sobre Trump e sobre as consequências da sua vitória, que parece inevitável. O Trump é um “case study”. As suas últimas declarações são merecedoras de todo o nosso repúdio, mas devemos focar-nos menos no que ele diz e ver a concepção que ele tem do mundo. Ele pensa como Putin: as instituições multilaterais não servem para nada. A única coisa que vale é a aplicação do poder. Isto de deixar que alguém reunido numa Assembleia Geral venha criticar-me, a mim? Incumbir-me de fazer isto? Insultar-me na comunidade internacional? Não faz sentido nenhum.

Aliás, há uma frase no seu livro que eu gostaria que me esclarecesse: porque é que sem o poder de veto não existiram as Nações Unidas?

As Nações Unidas procuraram ser um instrumento democrático à semelhança das democracias liberais. Mas para ser possível a igualdade democrática na Assembleia Geral, tinha de ser criado um órgão onde se perpetuassem as diferenças de Poder. Os países maiores e mais poderosos não iam aceitar perder o seu poder e ter um voto igual ao voto dos outros. Tiveram de criar o Conselho de Segurança para mostrar que o Poder não é igual para todos. Sem isso não haveria Nações Unidas.