Manuel Pizarro é eurodeputado há menos de um ano. Com a pandemia do novo coronavírus, trocou o Bruxelas pelo Porto, e o hemiciclo do Parlamento Europeu pelo Hospital de São João, onde voltou a exercer medicina desde março.
Desde 2005 que não tinha funções clínicas num hospital, mas quando tomou consciência da crise não teve dúvidas e voluntariou-se para a linha da frente do combate à COVID-19: "Era minha obrigação oferecer-me para aquilo que fosse necessário, ainda por cima tenho treino e experiência em cuidados intensivos e em cuidados intermédios", disse.
Quando chegou, o que viu foi um misto de tensão e de solidariedade. Hoje garante que está tudo mais calmo, mas alerta para outro perigo: com medo do contágio, as pessoas que sofrem de outras patologias não estão a ir ao hospital e é possível que a mortalidade aumente e que a taxa de recuperações diminua por este motivo.
Foi deputado à Assembleia da República pelo Partido Socialista, várias vezes candidato à presidência da Câmara Municipal do Porto, onde é vereador sem pelouro, e secretário de Estado da Saúde no governo Sócrates, quando a tutela esteve entregue a Ana Jorge.
Ao SAPO24, por telefone e vídeo-chamada, garante que não podemos voltar a ficar nesta situação e temos de nos preparar para o futuro. Já.
há umas semanas não sabíamos onde isto poderia acabar e entendi que tinha obrigação de me oferecer para regressar: peguei no telefone e fui até ao hospital
É médico de formação, mas nos últimos anos a sua carreira tem sido na política. Voltar à prática médica foi um ato de voluntarismo ou foi recrutado?
Voluntariei-me. Nem sei se do ponto de vista oficial poderia ser chamado, não pensei nessa questão. Mas, a partir do momento em que todos tomámos consciência da crise que enfrentávamos, entendi que era minha obrigação oferecer-me para aquilo que fosse necessário, ainda por cima tenho treino e experiência em cuidados intensivos e em cuidados intermédios, uma área onde podia haver especial necessidade. Felizmente, e aparentemente, isso não vai acontecer; não podemos ainda descansar completamente, mas diria que estamos hoje menos preocupados do que há três ou quatro semanas, do estrito ponto de vista do sistema de saúde, e até parece que na atual dimensão a epidemia terá atingido o nosso país e estaremos capazes de dar resposta no serviço de saúde. Mas há umas semanas não sabíamos onde isto poderia acabar e entendi que tinha obrigação de me oferecer para regressar: peguei no telefone e fui até ao hospital.
Há quanto tempo não exercia?
Vamos lá a ver, no hospital já não exercia como médico há muito tempo mesmo, desde 2005. Continuei sempre a exercer medicina tendo um consultório privado, mas desde que fui eleito para o Parlamento - fui eleito a primeira vez em 2005 para a Assembleia da República - nunca mais exerci no hospital. Voltei ao hospital dois anos, entre meados de 2017 e 2019, até ser eleito para o Parlamento Europeu, mas não tinha funções clínicas, só tinha funções no setor da gestão. Exercer funções clínicas num hospital não acontecia desde fevereiro de 2005.
No Hospital de São João estão hoje internados mais de 50 doentes nos cuidados intensivos, 150 doentes nas enfermarias - estou a falar de doentes com infeção COVID-19 (...) É o hospital onde há mais tensão relacionada com esta epidemia
Quando telefonou a oferecer-se, qual foi a resposta?
"Em que dia é podes vir?" O que encontrei no hospital foi, por um lado, muito gratificante, porque as pessoas estão muito empenhadas, muito motivadas, muito dedicadas, mas também encontrei, e isso também se tem esbatido nos últimos dias, um ambiente de muita tensão e de muita preocupação. Ainda por cima, o Hospital de São João não é um hospital qualquer, é não apenas o maior hospital do norte, mas também é o maior hospital do norte no centro de uma epidemia em que mais de metade dos doentes estão no norte. No Hospital de São João estão hoje internados mais de 50 doentes nos cuidados intensivos, 150 doentes nas enfermarias - estou a falar de doentes com infeção COVID-19, não estou a falar dos doentes todos. É o hospital onde há mais tensão relacionada com esta epidemia.
Por que motivo há mais casos no norte, tem ideia?
Penso que vamos ter de perceber isso no futuro, porque normalmente só se consegue saber com estudos científicos a posteriori. Provavelmente, juntamos duas caraterísticas: a de sermos uma sociedade muito aberta, temos uma fortíssima ligação económica do ponto de vista industrial, nomeadamente com países europeus onde a epidemia atingiu grande violência, como é o caso da Itália e da Espanha, e a de termos populações que vivem com grande proximidade geográfica. A combinação da sociedade muito aberta com a proximidade geográfica, e não estou a referir-me à área metropolitana do Porto, mas a tudo o que está à volta, a região do Tâmega e Sousa, teve essa consequência. Imagino que possa ter sido isso, mas é muito cedo para saber porque é que aconteceu assim, ainda temos muito a aprender sobre este vírus e sobre a epidemia que ele causou.
Os números são divulgados diariamente e sem uma comparação, por exemplo, com o que aconteceu noutros anos ao nível de mortos e de outras patologias. Faz sentido?
O facto de haver muita gente infetada com COVID-19 e de haver mortalidade importante associada ao COVID-19 não nos permite tirar conclusões gerais, é preciso esperar mais tempo para fazer comparações. Li trabalhos que dizem que em março houve um aumento da mortalidade no nosso país em relação àquilo que seria expectável e que esse aumento foi bastante além da mortalidade atribuível ao COVID-19. Mas não se pode comparar isto mês a mês, porque, aparentemente, a mortalidade no país foi inferior à expectável. Os números têm de ser analisados em séries um pouco mais longas, basta o surto de gripe normal ter chegado mais cedo ou mais tarde, haver mais frio ou mais calor para alterar as coisas. Só podemos avaliar a mortalidade uns meses depois disto, fazendo as contas bem feitas.
os meus colegas dizem que o afluxo de doentes com acidentes vasculares-cerebrais se reduziu em cerca de um terço. Isto não é muito normal e é um péssimo sinal: significa que as pessoas, provavelmente com medo de que seja um espaço de transmissão de COVID-19, atrasam a sua ida ao hospital
Nem tudo é COVID-19. As outras doenças estão a ser esquecidas?
Há um motivo de preocupação no serviço de saúde, e penso que esta é uma oportunidade para fazer este alerta: é evidente que o serviço de saúde está muito pressionado pela pandemia COVID-19, mas não podemos esquecer-nos de que existem outras doenças e de que as principais causas de mortalidade em Portugal são as doenças vasculares (cardio ou cerebrovasculares) e as doenças oncológicas. Não pode haver nenhuma diminuição da atenção a estas doenças, quer por parte dos doentes que sofrem delas, quer por parte do sistema de saúde. É uma coisa muito preocupante; no Hospital de São João, os meus colegas dizem que o afluxo de doentes com acidentes vasculares-cerebrais se reduziu em cerca de um terço. Isto não é muito normal e é um péssimo sinal: significa que as pessoas, provavelmente com medo de que seja um espaço de transmissão de COVID-19, atrasam a sua ida ao hospital ou não vão lá e todo. Isto terá duas consequências: primeiro, mortalidade, porque algumas destas pessoas podem morrer por causa disso, segundo, menos recuperações, porque para recuperar quanto mais cedo chegar ao hospital, melhor. Aliás, é por isso que as pessoas devem ligar para o 112 em vez de ir pelos seus meios.
Isso se as linhas de saúde não estiverem congestionadas...
Bem, então têm de encontrar meios alternativos para ir para o hospital: família, bombeiros da terra, seja quem for, mas não podem deixar de ir ao hospital. E também acho que o sistema de saúde tem de começar a passar a mensagem que os hospitais são espaços, no essencial, seguros. Repare, o Hospital de São João é o hospital que mais doentes com COVID-19 tem no país, mas, ainda assim, os circuitos dos doentes infetados e dos doentes não infetados são relativamente estanques. Digo relativamente porque, como é evidente, um hospital também é uma comunidade, mas não é internado nenhum doente numa enfermaria que não seja testado antes e que o resultado dê negativo, quer seja doentes que vêm para consultas programadas, quer sejam doentes que são internados a partir da urgência. Claro que nada disto dá garantias absolutas, mas estamos a falar de medidas de prevenção muito cuidadosas, como separação das equipas que tratam doentes com COVID-19 das equipas profissionais que estão noutras tarefas. O sistema está organizado para dar uma resposta segura às necessidades dos doentes com outras doenças sérias e que não podem deixar de recorrer ao hospital. Agora, é preciso, passadas estas primeiras semanas, em que o próprio sistema de saúde foi muito interpelado e questionado, que o sistema de saúde se volte para uma organização melhor, porque há uma coisa da qual podemos ter a certeza: até ser descoberta uma vacina, isto é, ao longo dos próximos meses, com toda a certeza, vamos ter de viver num mundo com COVID-19, e não podemos abrandar o tratamento das outras doenças todas, sob pena de conseguirmos ter menos mortalidade por COVID-19 e arranjarmos uma situação gravíssima do ponto de vista da progressão de outras doenças - estou a pensar especialmente no cancro, porque os doentes estão fragilizados e o tratamento deve ser o mais precoce possível para ter êxito.
Há muitos exames, muitos tratamentos suspensos?
Pelas mensagens que tenho recebido na última semana, penso que já se começou a recuperar tempo perdido. Isto é, finalmente, ao fim de quatro ou cinco semanas de quase paragem, os hospitais e os serviços de saúde em geral estão a recuperar a sua capacidade de chamar esses doentes. Há casos de doentes que me foram pedindo ajuda e que hoje me fizeram chegar mensagens a dizer que receberam a convocatória para uma consulta ou que já lhes remarcaram exames. O Ministério da Saúde tomou precocemente a decisão, muito positiva, de considerar os três IPO [Instituto Português de Oncologia] hospitais livres de COVID-19, ou seja, se aparecer lá um doente infetado é imediatamente transferido para outro sítio. Mas é preciso a outra parte, que é informar as pessoas sobre isto e agilizar acessos, porque a decisão só é útil se as pessoas com suspeita ou doença oncológica tiverem acesso fácil ao IPO, sem a via-sacra da burocracia a exigir papéis e a querer saber "porque é que o senhor veio aqui se antes estava a ir a outro hospital", etc.
Voltando atrás, recorda-se do dia em que regressou ao São João?
Lembro-me perfeitamente, foi uma terça-feira, dia 17 de março. Só não fui na segunda porque havia reunião de câmara.
fiquei absolutamente impressionado, foi quase comovente, por ver que era uma coisa generalizada: jovens médicos, jovens enfermeiros, auxiliares de todas as idades, as pessoas mobilizaram-se completamente, apesar do risco aumentado
Um dia depois de se ter registado a primeira morte por COVID-19 em Portugal. Como encontrou o hospital, o que viu?
Primeiro, não me deixaram entrar pela porta de acesso normal, porque não tinha máscara e já só se podia entrar no hospital, profissionais ou qualquer pessoa, com máscara. Como o local onde forneciam máscaras era na porta da frente, tive de dar a volta toda ao hospital para poder entrar. Depois, à entrada, o ambiente era muito diferente do normal, separou-se a entrada dos profissionais da entrada dos familiares ou outros visitantes, ficou tudo muito restringido, mas há sempre um mínimo de pessoas. Além da máscara, todos recebem desinfetante e, uma coisa que dantes não existia, qualquer produto alimentar, uma garrafa de água - presume-se que as pessoas estão mais em sofrimento, passam mais tempo no hospital e há este apoio. Depois, já chegado ao serviço - e eu não tinha nenhuma dúvida em relação aos médicos da minha geração, sei como formos formados, sabia o que ia acontecer, sabia que as pessoas estariam lá, era impensável não estarem - mas fiquei absolutamente impressionado, foi quase comovente, por ver que era uma coisa generalizada: jovens médicos, jovens enfermeiros, auxiliares de todas as idades, as pessoas mobilizaram-se completamente, apesar do risco aumentado para todos os que ali estão - e de haver colegas internados e até que estiveram nos cuidados intensivos. As pessoas não têm nenhuma dúvida sobre qual é a sua obrigação e o que devem fazer, é quase comovente ver jovens profissionais com menos de 30 anos com uma determinação em relação àquilo que é a necessidade que os portugueses têm deles.
Portugal tem aí um problema: há um gap muito grande entre a geração dos recém licenciados e os médicos com mais de 60. Como se resolve?
Pois, pode ser que no meio disto aprendamos com esta epidemia que temos de acarinhar o Serviço Nacional de Saúde. Não se pode olhar para o Serviço Nacional de Saúde, como às vezes parece que se olha, como se fosse apenas um problema na conta de despesa pública. Porque isso, depois, faz a diferença. É evidente que, porventura, o problema da falta de médicos com capacidade formativa faz-se sentir menos num grande hospital central universitário, como é o caso do Hospital de São João, mas por toda a parte há um problema: cedo de mais criámos más condições de trabalho para os profissionais e muitos com mais anos abandonaram o serviço mais cedo do que teriam feito em condições normais. Penso que essas pessoas têm de ser cuidadosamente acarinhadas, porque nas profissões da área da saúde, não sei como é nas outras áreas, uma grande parte da aprendizagem é feita lado a lado. Os médicos são profissionais que estudam muito para entrar na faculdade, estudam muito na faculdade e estudam muito toda a vida, mas isso não dispensa a aprendizagem pelo modelo, ao lado do profissional mais experiente, a experiência marca muito a formação profissional, e isso é essencial por todas as razões, mas, sobretudo, para segurança dos doentes. Esta é uma área em que é mesmo preciso que a expertise permita diminuir ao mínimo o erro, que tem uma consequência, um dano irreparável para o ser humano.
É especialista em Medicina Interna. Pode explicar o que distingue esta das restantes especialidades?
A Medicina Interna trata de todos os problemas médicos das pessoas nas diferentes especialidades - cardiologia, nefrologia, pneumologia - sem a abordagem dos exames complementares. Fazemos a cardiologia sem fazer o ecocardiograma ou o cateterismo, fazemos a nefrologia sem a hemodiálise, abordamos o doente como um todo e propomos integrar as diferentes especialidades médicas, por isso somos, por exemplo, a especialidade mais relevante para tratar as pessoas idosas. A infecção pelo COVID-19 atinge sobretudo o aparelho respiratório, mas estamos a falar de pessoas que, em função da idade, ficam mais doentes, muitas vezes têm comorbilidade: doença cardíaca, diabetes, problemas renais. Juntamente com os profissionais que vieram da área da anestesiologia, os internistas são de longe a especialidade que fornece mais médicos para os cuidados intensivos.
Quantas pessoas já viu sair do São João curadas de COVID-19?
[Ri] Como os circuitos são muito separados, não as vejo. Claro que vamos tendo notícias, algumas que nos vão animando. Há duas semanas um doente que esteve no serviço de doenças infeciosas e celebrou os seus 100 anos no bloco de internamento teve alta. Há muitos momentos de felicidade, o que é muito importante para as equipas, até porque isso também compensa os casos que correm pior, que correm mal. Julgo que, em geral, os hospitais, e o Hospital de São João em particular, têm tido uma taxa de letalidade relativamente baixa e a esmagadora maioria dos doentes que têm morrido são já muito idosos e com muita doença concomitante. Mas, mesmo assim, há sempre qualquer coisa que nos entristece quando morre uma pessoa.
a retoma de uma vida normal vai ter de ser feita para um novo normal, isto é, enquanto não houver vacina para esta doença vai ter de haver um período em que os nossos comportamentos sociais vão ter de ser mais prudentes
O isolamento é um pau de dois bicos? Por lado protegemo-nos, por outro não ganhamos imunidade. O que vai acontecer quando formos regressando à normalidade?
Não tenho nenhuma dúvida de que nesta fase tomámos as medidas adequadas, os resultados falam por nós, até na comparação internacional. Temos razões para estar moderadamente contentes ou bastante contentes com os resultados que estamos a conseguir no país. Claro que isto nos coloca problemas para o futuro, é a tal aprendizagem que todos teremos de fazer. Penso que a retoma de uma vida normal vai ter de ser feita para um novo normal, isto é, enquanto não houver vacina para esta doença vai ter de haver um período em que os nossos comportamentos sociais vão ter de ser mais prudentes, vamos ter de manter comportamentos de higiene mais cuidadosos - esta coisa de lavar a mãos que se tornou um vício.
Aconteceu o mesmo quando foi do H1N1, depois passou.
Sim, mas com esse surto sempre aprendi a espirrar para a parte de dentro do cotovelo, nunca mais mudei de hábitos. Vamos ter de ter estratégias mais cuidadosas para proteger as pessoas com mais idade, com doença crónica, e, sobretudo, abordar a situação muito difícil dos espaços onde estão institucionalizadas pessoas mais idosas, quer sejam lares ou unidades e cuidados continuados. São espaços onde vão ter de permanecer em funcionamento normas de protecção muito rigorosas, sob pena de podermos ter aí um problema muito sério. Sem esquecer que este isolamento físico também causa os seus problemas, porque os seres humanos precisam de contacto, precisam de proximidade, e os mais velhos precisam ainda mais. Quer dizer, o isolamento também é causador de muito sofrimento, temos de ir balanceando isto. Penso que é uma daquelas áreas em que vamos ter de ir tomando medidas e medindo as consequências dessa medidas, ir aprendendo. Ninguém tem um manual para tratar isto, temos de pôr uma enorme esperança na ciência, porque a rápida descoberta da vacina é a nossa salvação.
É um vírus muito contagioso e, num mundo hiper-globalizado como aquele em que vivemos teve uma propagação gigantesca e espantosa: temos hoje 200 países com casos reportados, quatro meses depois dos primeiros casos terem aparecido na China,
A ciência ficou no centro das atenções do mundo. Acredita que as pessoas estão agora mais confiantes ou mais desconfiadas da ciência?
Ainda é cedo para fazer um balanço desta epidemia, mas parece-me que, apesar de tudo, há alguns elementos que podemos utilizar numa reflexão. O primeiro deles é este: tínhamos um vírus que, independentemente da sua agressividade - não era especialmente agressivo, mas era bastante mais agressivo do que o vírus da gripe normal, ontem a OMS disse que é dez vezes mais letal do que a gripe normal, embora não se compare com o Marburgo ou o Ébola - é muito distinto do ponto de vista imunológico. É um vírus muito contagioso e, num mundo hiper-globalizado como aquele em que vivemos teve uma propagação gigantesca e espantosa: temos hoje 200 países com casos reportados, quatro meses depois dos primeiros casos terem aparecido na China, em Wuhan, em dezembro. Isto é muito impressionante. Avaliando isto, vamos concluir que, se não fosse a ciência, se não fosse o conhecimento, se não fosse o sistema de saúde que temos no mundo moderno, teríamos tido uma verdadeira catástrofe do ponto de vista da saúde pública.
Precisamos à escala da União Europeia de ter uma política de fornecimento de instrumentos e equipamentos absolutamente segura e sustentável de todos os pontos de vista, o que quer dizer que tem de haver produção local
Ainda assim, cerca de 80% da indústria farmacêutica está dependente da China e da Índia. Queremos manter esta dependência?
Essa é mais uma das lições desta epidemia: isto não pode voltar a acontecer. Não pode continuar a acontecer. Precisamos, neste caso à escala da União Europeia, de ter uma política de fornecimento de instrumentos e equipamentos absolutamente segura e sustentável de todos os pontos de vista, o que quer dizer que tem de haver produção local. Isto não nos pode voltar a acontecer, não podemos ser apanhados completamente desprevenidos numa circunstância como esta, até porque há boas razões para acreditarmos que coisas como esta se podem repetir. Pode não nos acontecer mais no espaço de uma geração, mas pode voltar a acontecer e temos de estar preparados. Não há dúvida de que sempre que aparecer um micro-organismo, um vírus muito diferente, vai demorar algum tempo a criar-se uma vacina segura. Isso é inevitável. A ciência será sempre capaz de a criar, mas demorará algum tempo até que isso aconteça. Agora, também temos de aproveitar os muitos sinais positivos que podemos ver.
Que sinais positivos são esses?
Como foi possível em Portugal, tão rapidamente, os institutos científicos, mesmo os universitários, que estão muito longe disto, criarem condições para fazer testes? O que aconteceu com o IMM [Instituto de Medicina Molecular] da faculdade de Medicina de Lisboa foi espantoso [criou um novo kit de diagnóstico], ou com o CEIA [Centro de Engenharia da Indústria Automóvel], que desenvolveu o protótipo de um ventilador susceptível de ser industrializado. Temos de ter uma política clara, nacional e europeia, que valorize a indústria na área da saúde, porque não podemos, nesta matéria, estar dependentes de relações com terceiros. Temos de ter capacidade de auto-abastecimento em quantidades razoáveis, não podemos repetir uma situação como esta.
Esta pandemia é um risco gigantesco para a União Europeia e uma oportunidade enorme para a União Europeia
Esta pandemia serve mais como cola para a União Europeia ou vai acabar por a quebrar ainda mais?
Esta pandemia é um risco gigantesco para a União Europeia e uma oportunidade enorme para a União Europeia, veremos o que os responsáveis máximos da UE aos diferentes níveis - Comissão Europeia, Parlamento Europeu e Conselho Europeu - escolhem. Eu diria que não há nenhuma dúvida, e que a Comissão Europeia, depois de uma hesitação nas primeiras semanas, se colocou do lado de uma Europa solidária. A senhora Von der Leyen, na intervenção desta semana na sessão plenária do Parlamento Europeu, não deixou de pedir desculpa por, nas primeiras semanas, não ter havido a solidariedade adequada, nomeadamente em relação à situação de Itália, o país mais violentamente fustigado. Mas a Comissão tem feito o que está ao seu alcance. Quanto ao Parlamento Europeu, não há nenhuma dúvida: preparámo-nos para aprovar na quinta-feira um pacote muito importante de medidas com uma profunda marca solidária. No Conselho Europeu, é sabido, há divisões profundas entre os Estados. Tenho a expectativa de que, finalmente, alguns dos Estados mais renitentes a uma intervenção mais coesa e mais solidária da UE percebam que, se depois de uma crise como esta a resposta não for dada, haverá milhões de europeus que desacreditarão na ideia do projecto europeu. Porque, desta vez, o que está em causa são as terríveis consequências económicas e sociais da actual crise de saúde pública, mas na memória das pessoas estará o cortejo de mortos que em alguns países da Europa é impressionante e que todos os dias vemos com a mesma consternação, pelo menos em Itália e Espanha. As pessoas não se esquecerão disso e farão um duríssimo julgamento moral sobre a coerência de quem prega a UE e depois não pratica a solidariedade europeia.
Como olha para o papel da Organização Mundial de Saúde em todo este processo?
Penso que também a OMS se atrasou um pouco nesta resposta. Claro que é sempre mais fácil fazer julgamentos a posteriori, mas acho que a OMS devia ter sido mais assertiva nas primeiras semanas, devia ter sido capaz de perceber, porque tem estrutura e técnicos para isso, que aquela nova infecção respiratória causada por um vírus da família do coronavírus que apareceu na China tinha um potencial de propagação que obrigava a tomar medidas mais atempadamente. A verdade é que, quando declarou o estado de pandemia, já todos tínhamos percebido que estávamos no meio de uma pandemia. Ainda assim, penso que não nos podemos dar ao luxo de prescindir de organismos de colaboração internacional com tanto conhecimento sedimentado como a OMS. Se a OMS também precisa de algumas reformas, pois façam-se essas reformas, mas não caiamos na asneira de prescindir de uma estrutura como a OMS.
Há pouco, a propósito dos hospitais, falou em burocracia. Esse também é um problema da Europa, que se faz sentir ainda mais em épocas de crise, em que é preciso agir rapidamente. Como contrariar isso?
É muito difícil conseguir que uma união de Estados independentes, que mantêm uma larguíssima margem de soberania, tome decisões sem respeitar os tempos próprios do consenso que é preciso procurar. Não podemos ter a ilusão de que vamos ter uma UE com uma capacidade executiva muito rápida, isso será muito difícil de acontecer. Coisa diferente é haver áreas em que estejam estabelecidas com rigor decisões, planos e ações que a Comissão, em nome da UE, pode assumir desde logo. Eu diria que na área da resposta a crises internacionais de saúde pública temos não apenas de dar resposta à crise que estamos a viver, mas também a obrigação clara de deixar pronto nos próximos meses um plano de resposta automático ao que possa vir a acontecer. A UE fez as coisas sérias: a Comissão comprou uma reserva estratégica de equipamentos de protecção individual, ventiladores e outro equipamento hospitalar, agilizou os corredores de transporte entre os países, de forma a garantir que os hospitais em dificuldade são abastecidos rapidamente... Já viu a dificuldade disto? É que foi feito tardiamente, quando as possibilidades de material no mercado internacional já eram muito escassas. Tudo isto devia estar previsto, para ter o impacto necessário. Temos de deixar isto resolvido.
Para uma resposta rápida: médico ou deputado?
[Ri] São coisas diferentes, são coisas diferentes e complementares. Um medico alemão chamado Rudolf Virchow, que viveu na transição do século XIX para o século XX, disse uma frase de que gosto muito: "A política é a medicina em larga escala". Eu faço política com o mesmo estado de espírito com que faço medicina, que é tentar ajudar as pessoas a viver melhor.
Qual a prática mais difícil, a de hospital ou a de larga escala?
São também duas áreas muito distintas, cada uma com a sua dificuldade. Penso que na medicina somos, felizmente, muitas vezes mais compensados pelo resultado do que estamos a fazer, que é mais visível, mas também somos às vezes duramente castigados por esse resultado Na política, apesar de tudo, a maior parte das coisas que se consegue fazer tem uma escala temporal mais longínqua, é preciso mais residência porque demoramos mais tempo a obter resultados. Mas não podemos desistir, tenho a certeza que temos razão, quanto mais não seja porque a UE já nos deu 70 anos de quase paz na Europa, coisa que em mais nenhum século tinha acontecido.
E quem merece ser melhor remunerado: o eurodeputado ou o médico? Porque o eurodeputado recebe melhor do que o médico, não é verdade?
O eurodeputado recebe melhor do que uma grande parte dos médicos, mas há médicos que têm remunerações superiores às de um eurodeputado. Na profissão médica há especialidades com realidades muito distintas.
Não no SNS...
Uma grande parte dos médicos merecia ser melhor remunerado. Coisa diferente é saber se o país tem condições para os remunerar melhor. Tenho visto no debate público muita reclamação a favor e se impor aos profissionais de saúde, nomeadamente aos médicos, um regime de exclusividade, mas não tenho dúvida nenhuma, e devo dizer que tenho a firme convicção, de que não há nenhuma possibilidade de isso ser bem sucedido se não houver uma completa revisão do regime remuneratório.
um jovem médico que more em Gondomar não vai trabalhar para um hospital na região de Lisboa, quanto mais não seja porque aquilo que o Estado lhe vai pagar não chega para alugar uma casa e ter uma vida decente em Lisboa
Por que motivo é tão difícil alterar o atual modelo de contratação dos médicos?
Até nessa matéria a situação é muito diferente nos cuidados de saúde primários, onde hoje temos nas unidades de saúde familiar um modelo de remuneração associado ao desempenho, que deu origem a muito maior satisfação dos profissionais e a cuidados de saúde primários de muito melhor qualidade do que há 15 ou 20 anos, embora tenhamos ainda o vergonhoso problema de ter utentes sem médico de família (número que se tem vindo a reduzir). Nos hospitais vejo hoje mais burocracia e até regras mais cegas do que aquelas que existiam anteriormente, porque quando entrei para o quadro do Hospital de São João os concursos eram feitos de hospital em hospital e correspondiam muito melhor à capacidade de selecionar os profissionais de que cada hospital necessita, ao contrário do modelo de concurso nacional, que acaba por conduzir à distribuição de recursos um bocadinho ao acaso e que até origina o desânimo de muitos profissionais. Porque, de facto, um jovem médico que more em Gondomar não vai trabalhar para um hospital na região de Lisboa, quanto mais não seja porque aquilo que o Estado lhe vai pagar não chega para alugar uma casa e ter uma vida decente em Lisboa. Os concursos nacionais são um quisto burocrático - que pode ser que seja estirado com esta crise.
Como médico, como comenta as cerimónias de celebração do 25 de Abril na Assembleia da República, com mais de 300 pessoas?
[Ri] Vamos lá ver, espero que sejam cumpridas as regras de distanciamento. Eu, por um lado, fico satisfeito por se celebrar o 25 de Abril, acho que é muito importante que a sociedade portuguesa compreenda que o estado de emergência não suspende nem anula a democracia. É um estado de exceção, que dá poderes reforçados às autoridades, mas devemos preservar muito a nossa democracia e é muito importante celebrar o 25 de Abril. Se isso poderia ser feito de outras maneiras que não através de uma cerimónia na Assembleia da República; eu quero acreditar que quem organiza a cerimónia está absolutamente consciente da necessidade de respeitar as regras de distanciamento físico que garantem segurança a quem vai participar na cerimónia, mas garantem, sobretudo, uma coisa muito importante, que é os responsáveis políticos darem um bom exemplo aos portugueses. Tenho a certeza de que, como eu, muitas centenas de milhar de portugueses vão estar atentos à forma como essa cerimónia é organizada.
A questão do exemplo é fundamental. Como se diz a uma população inteira para ficar em casa e depois se juntam potencialmente mais de 300 pessoas num único espaço?
Vamos ver. Conheço muito bem o plenário da Assembleia da República, fui deputado durante muitos anos, é um espaço muito grande. Admito que seja possível realizar essa cerimónia com a dignidade que a data merece e respeitando todas as regras de segurança. Não quero acreditar que isso não está na cabeça dos responsáveis pela iniciativa. Por um lado, também me parece muito significativo para todos e muito tocante que a Assembleia tenha decidido assinalar uma data que está no coração da maioria dos portugueses. Sei que hoje há muitos, cada vez mais, portugueses que nasceram com liberdade e não terão a mesma noção do que os que nasceram ainda com o testemunho direto de um período em que não havia liberdade. Eu tinha dez anos no 25 de Abril, não tenho propriamente recordações significativas da ausência da liberdade, mas tenho testemunhos familiares do que era um país onde não se podia falar. E, desse ponto de vista, também será seguramente muito emocionante para todos que se comemore o 25 de Abril. E vamos estar vigilantes às condições de respeito pela saúde pública.
o sistema de saúde inglês nem sequer sobrevive sem os profissionais que não são ingleses e que lá trabalham; só europeus há 22 mil médicos e mais de 60 mil enfermeiros a trabalhar no Reino Unido
Como vê o pedido de ajuda de Boris Johnson [primeiro-ministro britânico] à União Europeia depois de ter lutado pela saída do Reino Unido?
Eu achei sempre que o Brexit era um disparate, que a ideia de separar a Inglaterra do continente europeu não é uma ideia muito ajustada. Então, quando cada vez mais o mundo precisa de cooperação a ideia de alguns responsáveis políticos ingleses era promover mais separação? Devo dizer-lhe: o sistema de saúde inglês nem sequer sobrevive sem os profissionais que não são ingleses e que lá trabalham; só europeus há 22 mil médicos e mais de 60 mil enfermeiros a trabalhar no Reino Unido. Acho que pode ser que no meio da desgraça que esta pandemia representa para todos do ponto de vista da saúde pública, da economia e dos aspectos sociais, surjam algumas coisas positivas, uma delas é essa de o senhor Boris Johnson perceber que, afinal, talvez faça sentido o Reino Unido manter-se ligado à Europa, embora separado por aquela faixazinha do oceano Atlântico.
Falámos de Portugal, a Europa e o mundo estarem ou não preparados para a pandemia. E se, em vez disso, se tratasse de uma guerra biológica, com a qual, acreditam os especialistas, seremos confrontados mais cedo ou mais tarde?
Não sou nada catastrofista. Acho que temos de reagir com alguma serenidade e com alguma tranquilidade. Mas é evidente que o mundo não estava preparado para uma crise como esta e continua a não estar. Acho que é muito importante que, depois de um acontecimento tão dramático como este, sejamos claros a recolher lições para preparar o futuro.
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