Questionado sobre se Portugal está mais próximo do retrato que faz o primeiro-ministro ou das críticas da oposição, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que falaria da sua visão sobre o "Estado português".

Desta forma, fazendo a análise ao nível sanitário, Marcelo referiu que "a vacinação tem avançado muitíssimo bem". "A realidade tem acompanhado a vacinação, sem grande pressão sobre o SNS, com uma estabilização tendencial do número de mortos", afirmou, explicando que considera que há "condições de o Governo poder — amanhã e depois — abrir caminho para um discurso de que todos necessitamos, que é um discurso de transição da pandemia para o pós-pandemia. Não é só na economia, na sociedade, na saúde mental... em tudo".

Já no que toca ao âmbito social, o presidente da República referiu que admite que "as medidas tomadas pelo Governo e algumas tomadas pelo Parlamento aguentaram o tecido social, mas são medidas transitórias e provisórias".

Lembrando que numa crise social há "aumento de pobreza, aumento de desigualdades", Marcelo fez a ponte para a vertente económica, frisando posteriormente que para resolver a crise "precisamos de crescer mais do que temos crescido, como mais do que crescerão economias que ou nos ultrapassaram ou nos estão a ultrapassar", sendo que "esse é um desafio pesado para todos e difícil".

Apesar de alguns setores se terem mantido — como a construção civil e a indústria exportadora —, o presidente da República admitiu que há outros que "têm sofrido imenso", como é o caso do turismo, da restauração, do comércio e dos serviços.

"Os grandes desafios que se colocam são, por um lado, pegar no PRR que existe e no Plano Financeiro Plurianual e executar o mais próximo de 100%, privilegiando aquilo que é estruturante, com transparência e com controlo adequado na execução", apontou.

Ao nível político, Marcelo disse que "para ser possível sair da crise social e para ser possível crescimento com mais produtividade — leia-se, mais inovação, conhecimento, mais qualificação de recursos humanos —, isso implica que o sistema político não conheça situações similares a outros sistemas políticos que nos rodeiam, em termos de ingovernabilidade ou em termos de falta de espectro e de estímulo de esperança e de aproximação dos portugueses à realidade política", tudo isto "depois de uma pandemia que significou para as pessoas descompensação e para as instituições, em muitos casos, degradação".

Assim, o presidente da República frisa que "quem está no Governo olha para o que foi possível realizar no quadro da pandemia e valoriza isso" e que quem está nas oposições "deve chamar a atenção para horizontes de médio e longo prazo" e para "a crise social que supõe a resolução de problemas económicos".

O que preocupa Marcelo?

Elencando a sua “lista de preocupações”, Marcelo começou por referir uma que já vem repetindo há alguns meses, o “problema da coerência do discurso” no que diz respeito à gestão da pandemia.

Apesar de admitir não gostar do termo, o Presidente da República disse que o Governo vai “definir uma nova ‘narrativa explicativa’, um novo discurso, que não pode ser já o do receio, do medo legítimo durante um longo período, e que tem de ser pela positiva e a esperança”.

Este discurso, todavia, terá de “ser acompanhado da parte das autoridades sanitárias de uma consistência e coerência nas decisões tomadas”, alertou o chefe de Estado. “Os portugueses têm de perceber que quando se diz que no domínio da restauração ‘é assim’, isso tem de jogar com o que se diz no domínio do desporto ou das pessoas e dos aglomerados”, adiantou.

“É um ponto muito importante para abreviar um caminho que é sempre muito difícil, da conversão de uma pandemia em endemia, de convivermos com haver contágio mas não haver uma concentração quase exclusiva de meios, de recursos e de preocupações — para alguns, de obsessões — com uma determinada epidemia”, concluiu.

De mãos dadas com esta preocupação vem a da matéria social, temendo que “não se perceba” que a sociedade, as pessoas, são “a finalidade cimeira”. “A economia não é um fim por si, essa é uma visão tecnocrática. Isso vale para a esquerda e para o centro direita e parte da direita. É preciso perceber que [a Economia] está ao serviço de pessoas e tem de ter noção exata do agravamento da situação social, de um país envelhecido e que vai continuar envelhecido por décadas”, avisou Marcelo.

Lembrando que “os especialistas em demografia dizem que não é uma inversão fácil”, Marcelo Rebelo de Sousa disse que não só “os cuidadores informais são cruciais”, como também “é fundamental toda a estrutura da saúde e da segurança social”, sendo que o modelo desta segunda “tem de ser repensado”.

O Presidente da República referiu-se ainda ao Plano de Recuperação e Resiliência, considerando ser importante se tenha “a taxa máxima possível de utilização”, especialmente para tratar de uma administração pública “muito debilitada com a pandemia”.

“Já vinha com questões estruturais do passado que se agravaram com o período da crise da “Troika” e agora se agravou com a pandemia”, disse Marcelo, considerando especialmente grave a falta de recursos humanos, enumerando o envelhecimento populacional e a competição do privado como causas.

“Não vai ser muito fácil esta tarefa não só do Governo, mas do país, da utilização dos fundos europeus. Não como panaceia, mas nas condições melhores possíveis para deles obter o melhor que se pretende”, disse o chefe de Estado,

“É preciso pensar que não há fórmulas milagrosas. Não se arranca numa situação em velocidade cruzeiro para usar os fundos comunitários. Arranca-se numa situação em que as pessoas estão exaustas, até há oito dias ou três semanas não sabiam quanto tempo a pandemia ia durar, se podiam sequer programar férias. Isto foi um reformular dos projetos pessoais, mas também dos institucionais”, comentou ainda.

O Presidente da República, instado a comentar a educação, disse ainda que "a telescola foi excecional na sua primeira encarnação", mas "já teve muitas dificuldades na segunda, porque estava preparado o ano letivo para arrancar normalmente". "Uma coisa é fazê-lo no fim do ano letivo e encontrar uma solução para x meses, outra é programar um ano letivo que abra normalmente e de repente tem de prever um modelo híbrido, tem estar preparado para mudar para o digital sem saber se não acaba no não digital. Isto, da parte dos professores, dos diretores das escolas, dos pais e dos alunos, foi um esforço monumental", admitiu.

Marcelo não comenta situação do Governo e pede alternativa forte

Instado a comentar a atualidade política, Marcelo Rebelo de Sousa recusou-se tanto a falar sobre a situação de fragilidade que o Governo atravessa como o trabalho da oposição. "Não cabe ao Presidente da República fazer essa análise política. Pode fazê-la para si, pode utilizá-la e pensar nela quando ouve os partidos políticos", atirou Marcelo.

Ao invés, o chefe de Estado, disse apenas que quer, da parte do Governo, "uma área de poder forte em termos de projeto, de consonância e de visão de médio prazo", e da oposição, que se "afirme como alternativa e vá também ganhando força e capacidade de entrada no espírito dos portugueses".

Tal, para si, é "fundamental" porque a ausência tanto de o Governo como de uma oposição fortes criam "vazios" propiciadores de "fenómenos inorgânicos", como "sindicatos independentes que não reportavam a nenhuma central sindical" ou "movimentos inorgânicos sociais e movimentos políticos novos que tentaram canalizar aquilo que resultou dos vazios existentes", disse, numa alusão ao Chega.

Quanto a esse partido, aliás, Marcelo escusou-se também a considerar se considerava o partido de extrema-direita essencial para construir a alternativa política, dizendo não comentar "opções ou intervenções partidárias relativamente à formação de Governos ou acordos".

O chefe de Estado defendeu ainda que a atual crise social só se resolve se Portugal crescer "muito mais" do que tem crescido e com isso adquirir "capacidade competitiva em termos de recursos humanos com outras economias e sociedades".

"Isto implica, no sistema político, de facto, uma capacidade de renovação dos atores políticos e dos parceiros económicos e sociais para desafios mais fortes", sustentou, referindo que "os parceiros e os protagonistas também foram desgastados pela pandemia".

Marcelo foi ainda questionado quanto à necessidade do Governo de sofrer uma remodelação. A resposta? "Aí está uma coisa que o Presidente nunca deve assumir com clareza. Pode assumi-lo em conversa com o primeiro-ministro, não deve fazê-lo em público".

"Como imagina, em conversa com o primeiro-ministro – e a conversa é uma vez por semana longuíssima e praticamente todos os dias de diversa duração – vai-se examinando os problemas que se colocam. Mas quem tem de tomar a iniciava é o primeiro-ministro, que melhor do que ninguém poderá julgar", prosseguiu.

"O primeiro-ministro sabe muito melhor aquilo que se passa ou não se passa em termos de Governo, e portanto deve ser ele o juiz nesse domínio", reforçou.