“Eu acho mesmo que ainda é muito cedo para perceber o que aconteceu no Natal. Assumindo obviamente as responsabilidades por tudo o que possa ter sido decidido incorretamente, ou imprevidentemente (…), não tenho ainda uma perceção exata de alguns factos”, afirmou Marta Temido, em entrevista à agência Lusa a propósito do anúncio dos dois primeiros casos relacionados com a pandemia de covid-19 em Portugal, em 2 de março do ano passado.

A governante considerou que, para perceber as consequências no aumento de casos em janeiro das decisões tomadas pelo Governo no Natal, é preciso entender o contributo de alguns factos, como o frio, a época de festas e as novas variantes.

“Nós entrámos no mês de dezembro com um nível com o qual todos nos sentimos confortáveis, na relação à pandemia, em termos de pressão sobre os cuidados de saúde. E acho que temos ali três efeitos conjugados”, afirmou.

A ministra sublinhou o papel da variante detetada no Reino Unido, que, sabe-se hoje, já estava em circulação: “O Reino Unido só alertou a Organização Mundial de Saúde no dia 14 de dezembro, mas também sabemos (..) que nós sequenciámos os primeiros casos já em janeiro e (…) que hoje conseguimos olhar para trás, com o espelho retrovisor, e antecipar que já tínhamos a variante em circulação”.

O frio – “que às vezes é ridicularizado” – e a “menor disponibilidade para adesão às medidas de proteção” contra a convid-19 são outros dos fatores determinantes apontados pela governante.

“Seria uma ilusão pensar que controlamos tudo, que podemos voltar a partir, por exemplo, para um desconfinamento com níveis tão elevados de casos como os que temos hoje”, acrescentou Marta Temido, frisando que, hoje, “todos estamos mais previdentes, mais cautelosos, mais preocupados, mais angustiados e com a preocupação de atingir níveis mais baixos”.

“Não podemos esquecer que a variante inglesa é mais transmissível e que (…) vemos países que tinham a variante inglesa já com prevalência muito elevada a dizerem que as medidas básicas de confinamento não chegam, que têm de ser mais elevadas, para combater o efeito desta maior transmissibilidade”, afirmou a ministra, acrescentando: “Estamos totalmente protegidos? Aprendemos já que não estamos”.

Questionada se conseguia eleger, nos 12 meses de combate à pandemia, um momento mais difícil, Marta Temido apontou vários: o primeiro caso, a primeira morte, as intervenções do Ministério da Saúde para ajudar a articular os serviços hospitalares em situações de maior pressão e a decisão de encerrar as escolas.

“Para quem acredita no poder da educação, da educação pública, da escola, voltar a ter de encerrar as escolas foi uma decisão particularmente difícil para todos os membros do Governo”, afirmou.

Disse ter uma sensação de “esmagamento” quando olha para as listas de espera e para o que ficou por fazer no SNS e, quando questionada se alguma vez pensou em deixar o cargo, respondeu: “Estes lugares são de duas entidades: dos portugueses, que elegem o Governo, e do primeiro-ministro, que escolhe os seus ministros”.

“Depois, a partir do momento em que decidimos integrar um Governo, estamos cá para servir os portugueses e o Governo e, portanto, são uns e outros que têm este lugar sempre à disposição”, afirmou.

Disse ainda que “há circunstâncias muito difíceis para ser Governo”, que esta “é uma delas”, mas “não será a única”.

“Estar no Governo é estar ao serviço dos outros e, portanto, isso tem de ser realizado sempre com muita humildade, perseverança, para continuar a fazer aquilo em que se acredita, mas também disponibilidade para entender que há momentos para ser governo, há momentos para trabalhar noutras coisas. É com essa tranquilidade que, por agora, circunstancialmente, estou ministra da Saúde”, afirmou.

“Se as pessoas precisam de mim, quem somos nós para lhes falhar? Quando penso nisso vejo fotografias que colegas vossos fizeram, de profissionais de saúde em dias maus, e lembro-me dos relatos de muitos deles, alguns que me são próximos, e penso que vão sair de casa para mais um dia terrível, como foram muitos dias. Quem sou eu para me queixar?”, concluiu.

Entrevista: Marta Temido
Entrevista: Marta Temido A ministra da Saúde, Marta Temido, durante uma entrevista à Agência Lusa, no Ministério da Saúde, em Lisboa, 26 de fevereiro de 2021. (ACOMPANHA TEXTO DO DIA 1 DE MARÇO DE 2021) MÁRIO CRUZ/LUSA créditos: Lusa

"Não faltaram meios financeiros ao SNS [Serviço Nacional de Saúde] em 2020, em nenhum momento do ano"

A ministra da Saúde admite que o Governo “podia sempre ter feito mais” quanto à execução orçamental e aos recursos humanos, mas lembra os incentivos criados para os médicos e sublinha que nunca faltaram meios financeiros ao SNS.

“Por outro lado, não faltaram meios financeiros ao SNS [Serviço Nacional de Saúde] em 2020, em nenhum momento do ano. Em nenhum momento do ano 2020 houve regatear de meios financeiros. Nem em 2020, nem daquilo que já vamos em 2021”, sublinhou.

A este nível, a ministra lembrou os incentivos criados para compensar o esforço médicos que estiveram na linha da frente no combate à pandemia, sublinhando que se tratou de um sistema de compensação “muito exigente”.

“Apenas visava melhorar a gestão das unidades hospitalares e, de alguma forma, atenuar o esforço dos profissionais de saúde. É um sistema de compensação muito exigente. Nós estamos a elevar o valor do pagamento do trabalho extraordinário em 50% face às majorações que ele já tem”, afirmou.

E exemplificou ainda: “Estamos a permitir que regimes de trabalho que já tinham sido suprimidos há mais de uma década, como o regime de horário acrescido das 42 horas, sejam reintroduzidos. Isso significa que um profissional de saúde que esteja nesse regime que em lugar das 35 horas faça 42 horas, recebe mais 37 por cento”.

“Isto são apenas dois sinais da parte mais visível, mais significativa, que são os recursos humanos, daquilo que tem sido o esforço que o país tem feito… a gestão orçamental não é do dinheiro do Governo. É do dinheiro dos portugueses no sentido de garantir os melhores cuidados”, afirmou.

Sublinhou as dificuldades de coordenação enfrentadas, afirmando que “é mais fácil gerir um hospital do que gerir um sistema”.

“Coordenar apenas o bem-estar de uma instituição ou coordenar o bem-estar de todo um sistema exige que todos prescindam de algo, e isso nem sempre é fácil”, acrescentou.

Sobre os recursos humanos, sobretudo na área médica, que segundo o Portal da Transparência do Ministério da Saúde caíram entre janeiro e dezembro, sendo que desde o início da pandemia até final do ano o SNS perdeu quase 800 médicos (incluindo internos), a ministra justificou os dados com os diferentes momentos do ciclo de gestão de recursos humanos.

“O ciclo de gestão de recursos humanos médicos no Serviço Nacional de Saúde tem vários momentos. Todos os anos em janeiro iniciam a formação centenas de novos médicos que integram o internato geral da formação médica. Esse número produz em cada mês de janeiro de cada ano um artifício naquilo que é a forma como contamos os recursos humanos médicos”, explicou a ministra, acrescentando: “Se compararmos o dezembro de cada ano com janeiro verificamos o efeito desse resultado”.

“Se depois compararmos o janeiro com os outros meses do ano, à medida que alguns médicos se aposentam, à medida que alguns médicos deixam o Serviço Nacional de Saúde, à medida que alguns médicos enveredaram por outras carreiras que não a prática clínica, verificamos alguma redução, mas no ano a seguir verificamos a mesma tendência”, explicou, considerando que “é mais exato” comparar períodos homólogos.

Questionada se podia ter feito mais para manter os médicos que acabaram por sair do SNS, a ministra respondeu: “Podíamos sempre ter feito melhor. Podemos sempre fazer mais para motivar as pessoas, sobretudo num contexto tão agressivo do ponto de vista da exigência como é esta pandemia”.

Reconhecendo que as profissões do setor da saúde “são muito exigentes”, Marta Temido diz que, apesar de o ano de 2020 não estar fechado, é perfeitamente natural que a pandemia – por ‘burnout’ ou doença – tenha tido efeito nas ausências ao trabalho destes profissionais.

Contudo, sublinha que já se nota uma recuperação, seja por efeito de uma menor incidência populacional de novos casos de covid-19, seja por efeitos da vacinação.

“O ano 2020 foi de facto um ano atípico e o ano 2021, pelo menos até este momento, mantém uma tendência de recuperação”, disse.