Como tudo começou?
A Frente de Libertação de Moçambique, mais conhecida por Frelimo, ganhou as eleições legislativas a 9 de outubro de 2024, tendo, por isso, eleito Daniel Chapo para Presidente da República e mantido a maioria parlamentar. A Frelimo é também a organização armada que combateu Portugal durante a guerra colonial, tendo estado no poder desde a independência de Moçambique.
Em entrevista ao SAPO24, Jessemusse Cacinda, investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, introduziu o partido como o “construtor do Estado Moçambicano”. E, por isso, responsável por “controlar todas as instituições, desde a polícia, ao exército, à justiça, tudo no país é controlado pela Frelimo”.
Venâncio Mondlane, um candidato presidencial independente, surge novamente como um dos principais rostos da oposição. Mondlane apareceu pela primeira vez no cenário político de Moçambique em 2013, como candidato a presidente do município de Maputo. A sua personagem foi principalmente desenvolvida online, desde 2008, quando começa a aparecer no espaço público “em blogoesferas, nas redes sociais, nas rádios, televisão, até chegar à política”.
Em 2023, em representação da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), Mondlane perde as eleições e inicia um processo de resistência que vem influenciar o formato de resposta adotado no ano seguinte. De acordo com o especialista, foram três meses de marchas pacíficas, em que “não houve violência porque a polícia não respondeu”.
Na campanha para as eleições em 2024, Mondlane era apoiado pelo Partido Otimista pelo Desenvolvimento de Moçambique, com a sigla Podemos, composto por dissidentes da Frelimo. A Renamo, o segundo maior partido no país, não quis voltar a apoiar Mondlane, mas acabou por perder o poder para o candidato. Ao contrário do que se previa, o Podemos, um partido pequeno sem assento parlamentar, conquistou o povo moçambicano e ficou à frente na corrida à presidência.
Afinal, quem ganhou as eleições?
De acordo com o Conselho Constitucional, Venâncio Mondlane obteve apenas 24% dos votos, mas reclamou a vitória. Além de recusar a eleição de Daniel Chapo, acusou o adversário de manipular as eleições e lançou uma onda de revolta na população.
Segundo Jessemusse Cacinda, não é a primeira vez que a Frelimo é acusada de corrupção, mas nunca foi anulado um processo eleitoral, “quando devia ter sido”, tendo em conta as irregularidades encontradas. Face aos múltiplos casos de fraude eleitoral, a oposição foi crescendo e ganhou espaço nas redes sociais, onde começou a “escancarar” a realidade.
O povo de Moçambique começou, então, a organizar-se nas ruas, em manifestação contra o processo eleitoral. A resposta violenta das autoridades moçambicanas fez aumentar os protestos, cada vez mais agressivos. Para o investigador, o desespero que se gerou dentro do Estado, pela perda de popularidade da Frelimo, foi o principal motivo para a escalada de tensão.
No dia 23 de dezembro, dois meses depois do início dos protesto, a presidente do Conselho Constitucional, Lúcia Ribeiro, leu um acórdão que estabelecia que: "as irregularidades verificadas no decurso do processo eleitoral não influenciaram substancialmente os resultados das eleições gerais, presidenciais, legislativas e das assembleias provinciais". Assim, Daniel Francisco Chapo é oficialmente proclamado eleito Presidente da República de Moçambique.
Venâncio Mondlane recorreu da decisão e anunciou uma greve para segunda-feira, dia 21 de outubro, para “paralisar Moçambique” e contestar o resultado das eleições. Ainda assim, o Conselho Constitucional confirmou a vitória de Daniel Chapo, baixou a percentagem de votos da Frelimo e subiu a do Podemos, mantendo o resultado final. E, por isso, o povo moçambicano continuou a fazer-se ouvir nas ruas.
O Podemos tomou, esta segunda-feira, posse no Parlamento, reconhecendo os resultados das eleições. A par disso, durante os últimos meses “não aderiu a uma série de iniciativas de sinalização de descontentamento” e, neste momento, “já começa a desenhar um caminho diferente” do de Venâncio Mondlane, constata o investigador.
Quem tem organizado a revolta?
Jessemusse Cacinda explica que desde 9 de novembro a atuação de Mondlane em Moçambique teve três fases: na primeira, organizaram-se marchas semelhantes a 2023, na segunda, foi feita uma “reedição do modelo”, com comícios, cartazes e manifestações contra os resultados eleitorais. A última, e atual, começou no momento em que “a polícia respondeu com violência, e a situação escalou a um nível de violência jamais visto”.
A denúncia de fraude eleitoral veio acompanhada de relatos de enchimento de urnas, de acordo com o jornal Público, “com gente apanhada em flagrante pelos populares e que chegou a gerar episódios de violência”, boletins de votos pré-preenchidos, delegados dos partidos impedidos de aceder às mesas de voto, assembleias às escuras na altura da contagem, entre outras formas de corrupção.
Segundo Centro de Integridade Pública (CIP), que acompanha os processos eleitorais em Moçambique desde 2005, foram vistos membros da Frelimo “a aliciar delegados da oposição com dinheiro, empregos e promoções para os funcionários públicos”. Alguns destes militantes foram presos.
A este ambiente de suspeita somaram-se dois casos de homicídio, o de Elvino Dias, advogado do candidato presidencial Venâncio Mondlane, e o de Paulo Guambe, mandatário do Podemos, partido que o apoia, no dia 18 de outubro. O crime não foi explicado, ainda que a oposição e os ativistas tenham entendido que não era um crime passional, mas um ataque da Frelimo, uma vez que foram usadas armas automáticas que apenas as forças oficiais podem ter.
Apesar da perda, a convocação da greve para segunda-feira manteve-se e, quatro dias depois, no dia 21 de outubro, durante uma conferência de imprensa convocada por Venâncio Mondlane, a polícia moçambicana voltou a atacar. As autoridades lançaram gás lacrimogéneo e atingiram jornalistas nacionais e internacionais e civis. Mondlane foi sujeito a várias tentativas de assassinato, mas conseguiu fugir.
Como se passou de uma greve "pacífica" para confrontos violentos?
Face à reação violenta da polícia, os manifestantes começaram a organizar-se em ataques às forças de autoridade. Dezenas de pessoas concentraram-se na manhã da morte dos dois apoiantes e responderam, com raiva, com o lançamento de pedras e de foguetes.
Mondlane continuou a defender que a greve deveria ser “pacífica”, no entanto, passou a desejar que o sangue das vítimas fosse "vingado”. Jessemusse Cacinda não acredita “que seja justo acusar o opositor de promover a violência, porque já fez este tipo de manifestações antes e não houve violência”.
Além disso, o investigador reforça que “o que aconteceu desta vez foi que a resposta violenta da polícia obrigou os manifestantes a responder. E numa situação de muita desigualdade, de muita raiva, enfim, quando há violência, e principalmente quando a violência acontece desta forma, não é possível não se gerar mais violência”.
“O próprio Venâncio fez um discurso em que puxava para esse nível de resposta ao dizer que se a polícia responde com violência, os moçambicanos também o devem fazer, mas nos últimos tempos alterou esta abordagem porque percebeu que estava a chegar a níveis que acredito que o próprio Mondlane não previa”, acrescenta.
Já fora do país, Mondlane utilizou as redes sociais, no dia 7 de novembro, para convocar uma marcha sobre Maputo, que marca a terceira fase dos protestos: “O Dia da Libertação”, contra o "colono preto". O povo ia tomar o poder, avançando com convicção contra a polícia que ataca sem critério. A manifestação não teve tanta adesão como se esperava e o golpe acabou por falhar. Ainda assim, o candidato usou a oportunidade para mostrar a vontade do povo moçambicano de iniciar a revolução.
A nova fase da greve decorreu durante uma semana, de 4 a 11 de dezembro, e paralisou a circulação de automóveis das 08h00 às 16h00 em todos os bairros de Moçambique. A estratégia passou a ser descentralizar o protesto pelo país, nos próprios bairros, com carros parados na estrada, com cartazes e a cantarem o hino nacional. Apesar de ser aparentemente pacífico, este momento tornou-se simbólico e teve impacto na comunidade internacional: durante os protestos um carro blindado atropelou uma manifestante a alta velocidade.
A polícia é novamente a primeira a usar a violência e a população, que tentava atuar de forma pacífica, revoltou-se e iniciou uma guerra contra as autoridades. Jessemusse Cacinda consegue encontrar uma justificação para estas reações, e mostra-se sensibilizado com a indignação dos civis: “quando se vê polícia a entrar no quintal de uma residência e de repente a disparar para alguém que está sentado na sua varanda, é mesmo para provocar raiva nas pessoas, para gerar uma revolta popular”.
A atual realidade social de Moçambique
Na rua, os manifestantes vêm de “estratos da sociedade” diferentes. Jessemusse Cacinda faz um retrato da realidade social: uns são de “zonas periféricas, que vivem em condições precárias”, e procuram alguma “dignidade de vida”, outros da “classe média, inclusive comunidades com alguma influência na área económica, como a comunidade maometana, que é formada na sua maioria por empresários, proprietários de lojas, supermercados, e ainda funcionários públicos, professores, médicos, entraram nas manifestações”.
Aqueles que não subscrevem a manifestação estão inseridos no Estado Moçambicano e têm uma vida "estável": "têm o seu prato com comida, e estão nem aí para quem não tem". No entanto, todos são afetados pelo medo.
A repressão e o horror tem tomado conta das ruas de Moçambique. Alguns investigadores acreditam que o Estado Moçambicano tem adotado a estratégia soviética de criar o medo para justificar o uso de força sobre a população. Um exemplo utilizado é a fuga de 1500 mil reclusos de quatro prisões de alta segurança. Entre os milhares de detidos nesta fuga, muitos são manifestantes que foram cercados e mortos.
Os terroristas à solta têm aterrorizado a população com ataques, roubos, sequestros, violações. Espera-se que a população, que agora está contra as autoridades, queira a intervenção da polícia e dos militares no controlo do terror. Quando regressou ao país, Mondlane acusou o Governo de realizar um “genocidio silencioso” e quis "provar" quem foram os "verdadeiros culpados" das centenas de mortes.
Depois da comunicação da decisão do Conselho Constitucional, em dezembro, morreram 134 pessoas, a somar às 127 que tinham morrido nos dois meses anteriores. Estes dados são sintomáticos do aumento da repressão do Governo sobre quem questiona a autoridade da mais alta instância judicial de Moçambique ou, por outras palavras, quem questiona o poder da Frelimo.
Para o investigador, “o nível de desespero aumentou de tal forma que também a própria violência que é usada pela polícia ou pelo Estado para [a Frelimo] se manter no poder também aumentou”. Moçambique tem um histórico de repressão policial em movimentos populares, contudo, Jessemusse Cacinda lê os últimos ataques como “as lições mais violentas da história”.
O papel da comunidade internacional na definição do futuro de Moçambique.
Três meses depois, no dia 9 de janeiro, Venâncio Mondlane voltou a Moçambique e disponibilizou-se para dialogar. Jessemusse Cacinda acredita que, apesar das tomadas de posse que estão a acontecer durante estes dias, “enquanto não se envolver Venâncio Mondlane” na discussão, o desempenho dos deputados e do presidente eleito “não vai ter um resultado satisfatório e vai colocar os próximos cinco anos do país numa situação de permanente tensão”.
De acordo com o investigador, os representantes moçambicanos “tomam posse numa situação de impopularidade, de descrença nas instituições, as pessoas não valorizam as pessoas e o Estado tem o grande desafio de devolver a confiança aos cidadãos”. Outro problema evidente tem a ver com a resposta da comunidade internacional em relação ao resultado das eleições.
Jessemusse Cacinda crê que o reconhecimento da África do Sul é muito importante para a definição do futuro do país, por ser uma potência “de quem Moçambique depende economicamente”. Até ao momento, Cyril Ramaphosa, presidente da África do Sul, ainda não tomou uma posição, mostrou-se apenas disponível para “apoiar Moçambique com o que precisar para navegar os desafios políticos que enfrenta”.
“Estamos atentos ao que está a acontecer em Moçambique, sendo obviamente um vizinho tão próximo de nós, um bom parceiro de negócios, e um dos membros da Comunidade de Desenvolvimento Sul Africana”, relata Ramaphosa em entrevista.
Qual a resposta de Portugal?
Jessemusse Cacinda considera também que, por ser o país de “língua portuguesa na União Europeia”, Portugal é indispensável no processo de comunicação entre Maputo e o resto do mundo: “se Portugal reconhecer o resultado, a possibilidade dos outros países da União Europeia também reconhecerem é maior”.
E foi isso que aconteceu. Esta segunda-feira, Paulo Rangel, ministro dos Negócios Estrangeiros, anunciou a sua presença na tomada de posse de Daniel Chapo, e, assim, oficializou o resultado das eleições. Em entrevista à RTP, o ministro justificou esta decisão, referindo que Portugal quer ajudar Moçambique a “caminhar para uma situação de estabilidade, em que existe a possibilidade de resolver os dissidensos fortíssimos que entretanto apareceram”.
E, para isso, considera que a posição do país deve ser “muito moderada e muito equilibrada”. Assim, “visa essencialmente que as forças políticas em Moçambique possam dialogar e possam criar uma situação de estabilidade, de normalidade, que leve a que seja possível trazer de novo a prosperidade ao povo moçambicano”, diz à Rádio Renascença.
Nas redes sociais, o candidato presidencial Venâncio Mondlane desmentiu as declarações do ministro português, acusando-o de “manipular” a opinião pública: “não há trabalho feito da sua parte em relação ao diálogo em Moçambique. Pelo contrário, o senhor sempre foi parcial, foi tendo posições totalmente tristes, sempre foi de adjetivos contra a minha pessoa”.
Jessemusse Cacinda relaciona esta decisão com “interesses estratégicos” de natureza económica e geopolítica. Mas, acima de tudo, com o facto de “Moçambique, neste momento, ser um aliado que não se quer perder, uma vez que se vai tornar no maior destino de gás natural do mundo”.
Paulo Rangel acrescenta que “os cidadãos portugueses em Moçambique têm de ser a primeira preocupação”, e, por isso, não o Governo português “não pode tomar posições que os deixam completamente abandonados. Temos de ter sentido de responsabilidade e sentido de moderação”.
As justificações do governo português são bem recebidas pelo investigador moçambicano, que não se mostra surpreendido com a ideia de Portugal estar predisposto para o diálogo, nem com a posição moderada que a especificidade do caso de Moçambique exige. Vê também como uma vantagem o facto de Portugal preferir proteger Moçambique, não o expondo à comunidade internacional. “Acredito que não é apenas reconhecer, mas também criar condições para que esse país não fique ingovernável”.
E o futuro?
Ao mesmo tempo que se espera que a introdução no cenário internacional traga progresso ao país, o investigador lembra que o crescimento também pode ser ruinoso: quando “o governo de Moçambique e as autoridades notaram que têm recursos naturais, aumentaram um pouco a arrogância, como quem diz ‘ok, quem quer cooperar connosco coopera, e quem não quer que fique no seu canto’”.
Em relação ao resto da Europa, tal como já fez o Reino Unido, não tem dúvidas que a tendência será reconhecer a vitória da Frelimo. “Portugal já reconheceu, então, pronto, não tenho dúvidas que quase toda a União Europeia vai reconhecer”.
Ainda que defenda que não foram eleições isentas, Jessemusse Cacinda não olha para a maneira como as coisas se desenrolaram de uma forma totalmente negativa. “É um reconhecimento que tem alguma vantagem para a forma como Moçambique é visto no próprio espaço internacional”, sendo que “aqueles que não acreditavam na possibilidade de Moçambique ser um país em que fosse possível governar, agora vão perceber que afinal é possível”. Além disso, caso não se aceitasse a presidência de Daniel Chapo, Moçambique seria colocado “numa situação de isolamento em relação ao resto do mundo”.
A divulgação pública de um processo não transparente da comissão eleitoral fez gerar muitas dúvidas dentro da comunidade internacional e da União Europeia, mas o caso continua em aberto. Neste momento, a única coisa que é certa é que Daniel Chapo vai tomar posse e a Frelimo continuará no poder.
Jessemusse Cacinda ressalta que “vários países do mundo preferem fechar os olhos a algumas coisas para poder cooperar”, deixando o país numa dinâmica de tensão sem previsão de acabar. Para o investigador, a solução passa por “encontrar, localmente, outras formas de abordar a situação”, que não a violência. Por agora, prefere aguardar: “vamos ver o que vai acontecer”, termina, com alguma reticência sobre o futuro do país onde nasceu.
*Texto escrito pela jornalista estagiária Ana Filipa Paz e editado pela jornalista Ana Maria Pimentel
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