Quem chega à Casa dos Bicos nota imediatamente que alguma coisa se passa. Polícia e baias de segurança criam um perímetro à porta da Fundação Saramago. Um pouco mais ao lado, uma dezena de manifestantes empunha cartazes e vários exemplares do livro que não querem que outros comprem. O livro que pretende ser uma história de inclusão para crianças, é interpretado pelos manifestantes como uma lavagem cerebral.

Ao SAPO24, em tom alto para se fazer ouvir e chamar à atenção daqueles que entravam na Fundação Saramago, um dos manifestantes diz não poder aceitar que as crianças tenham acesso aquele manifesto e não admite que tenha sido patrocinado pela Comissão pela Cidadaniae Igualdade de Género. À volta, entre as bandeiras de Portugal, há vários cartazes, “eu digo não à ideologia de género” sendo a frase mais comum. Mais tarde, durante a apresentação, a autora haveria de explicar que, ao contrário do que os manifestantes dizem, o livro não foi financiado pela CIG, apenas patrocinado o seu conteúdo.

Para entrar na casa do prémio Nobel português a segurança é apertada. Durante a verificação de identificação os pedidos de desculpa são vários, mas explicam não querer correr riscos. O clima é tenso, parece ser palpável que a frase ou o movimento errados podem fazer com que a história que se conta esta noite seja diferente.

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Lançamento Lançamento "No meu bairro" créditos: 24

É impossível que quem está habituado a eventos e apresentações de livros na Fundação Saramago não note que hoje o clima é diferente. À medida que se aproxima a hora da apresentação a tensão aumenta e o tema além do livro “No meu Bairro”, é, claro, a tentativa de o censurar.

Antes de começar a apresentação, Sérgio Machado Letria, diretor da Fundação, não se desvia do elefante na sala. “Cá estamos em paz e liberdade para apresentar este livro.” Depois do que aconteceu na livraria Almedina, “tivemos que tomar uma posição”, a Fundação José Saramago não podia ficar indiferente. Explica que em causa está a defesa pela liberdade de uma pessoa poder publicar um livro, vê-lo à venda e a liberdade de quem o quer ler. “Gostar ou não do livro é da competência dos leitores. A análise técnica será da competência dos peritos em literatura”. Termina resumindo, “queremos que todos os bairros sejam plurais, livres, e democráticos”.

Ironicamente, o protesto acabou por trazer mais visibilidade ao livro, e a editora Célia Louro reflete isso mesmo, “No meu bairro teve mais visitantes numa semana do que nós esperávamos no ano inteiro”. Mas continua, “não podemos esquecer o mote deste livro. Só se fala do Rodrigo e do Magalhães, mas há muitas outras crianças.” Diz referindo-se aos dois exemplos usados pelos manifestantes, de uma criança não binária, e do filho de um casal gay. Contudo, o livro tem muitos outros exemplos de crianças que pretendem ser um espelho das minorias que existem no mundo, como por exemplo a história uma criança de cadeira de rodas que tem super poderes. Termina assegurando que “este bairro continua a ser um bairro feliz. Nunca esquecer que vivemos num país democrático”. E, neste país, a primeira edição deste livro já está esgotada.

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No fim da apresentação, a editora diz ao SAPO24 que só quer agradecer a onda de solidariedade. Mas que continuará a defender que “é tudo uma questão de liberdade de expressão”. Volta a frisar que Portugal é um país democrático “onde todos temos direito a uma opinião. Mas mais importante não é haver um consenso geral, mas sim haver debate. E esse foi o objetivo primordial deste livro, gerar debate, trazer assuntos sobre os quais é importante conversarmos. Não nos devemos esquecer que não é um livro de leitura obrigatória, quem não se identifica com o conteúdo pode optar por não comprar.” E lembra a quem ainda não o leu que “o mote não é falar apenas de duas personagens, mas também outras representações. Falamos de religião, de saúde, de imigração, falamos de muitos outros temas que são importantes trazer ao debate e que fazem parte da realidade das crianças”.

Durante a apresentação, enquanto a autora explica que uma das maiores inspirações para o livro foi a sua professora do primeiro ciclo, a professora Helena, que a ensinou a olhar para o mundo sem achar que ninguém é superior, vão-se ouvindo no exterior gritos que ecoam “Portugal” e o hino nacional. Na sala cheia, todos parecem indiferentes ao som abafado que vem da rua. Antes de falar na professora Helena, Lúcia começou por dizer que escreve este livro porque “tem a sorte de ter uma filha” e com a sua filha descobriu que “as crianças não são patetas”, embora o mundo as tente fazer assim. Numa nota de otimismo, em vez de se focar nos protestos, Lúcia olha com esperança para solidariedade que viveu esta semana.

Pilar del Rio, Presidente da Fundação Saramago, não faltou à apresentação. O SAPO24 questiona se hoje sente mais ansiedade que nas outras apresentações, afasta de imediato essa ideia. “Ansiedade não, respeito. Nós nascemos para a liberdade e para que as pessoas se possam expressar livremente. Nesta ocasião em especial, se haviam sido impedidos de manifestar-se e expressar-se que o possam fazer nesta sala com uma firme convicção.” E acrescenta que a Fundação servirá sempre “para defender a liberdade de expressão e os valores que nos fazem humanos. Os valores que estão consagrados na Constituição e na Declaração Universal de Direitos Humanos. O que este livro conta são também expressões humanas e formas de desenvolvimento a que os seres humanos têm direito”.

O ilustrador do livro Tiago M também prefere referir mensagens positivas que recebeu durante esta semana, até porque nunca pensou que “desenhar bonecada” trouxesse tanta celeuma. Lembra um personagem do livro que conheceu na vida real. Na plateia o autor dessa mensagem, Rodrigo, explica que a identificação com o personagem com o seu nome, que que usa vestidos, foi automática. “Foi muito emocionante, consegui transportar-me para essa altura e curar-me dessa dor que senti durante muito tempo.” Também a mãe de um filho trans pediu o microfone para dizer que este livro é importante porque provou o poder da literatura, mesmo em tempo de liberdade.

No fim, um aviso: a saída terá que ser feita pelas traseiras da Fundação Saramago porque os manifestantes prometem bolas de fogo a cair dos céus. Dentro de portas e debaixo do teto da Fundação só abraços e livros a serem assinados.

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