A 6 de março de 1921, na sede da Associação dos Empregados de Escritório, em Lisboa, nascia o Partido Comunista Português, concebido no caldo contestatário do movimento operário e sindical que crescia no Portugal do pós-Guerra. 100 anos depois, o prédio da Rua da Madalena onde uma assembleia elegeu a direção inaugural do partido mantém-se de pé, tal como o PCP que celebra um centenário de existência.
O partido chega aos seus 100 anos depois de aguentar décadas de adversidade enquanto oposição clandestina à ditadura do Estado Novo, de assumir um papel fulcral na Revolução do 25 de Abril e de sobreviver à derrocada do comunismo com a desagregação da União Soviética e a queda dos regimes de leste no início dos anos 90. Ao contrário de grande parte dos seus partidos congéneres na Europa, que se transformaram noutro tipo de partidos ou perderam influência nos destinos dos países, o PCP não só mantém representação política assinalável como tem uma palavra a dizer nos mandos e desmandos da governação do país, como a votação do Orçamento do Estado para este ano comprovou.
Dada a situação pandémica do país, os comunistas não vão poder celebrar a data como gostariam, com um comício no Campo Pequeno, local de história para o partido. Ao invés, irão assinalar o marco com 100 iniciativas diferentes espalhadas pelo país, sob o lema da “Liberdade, Democracia, Socialismo”, a principal das quais a decorrer na praça do Rossio, em Lisboa, com a presença do secretário-geral Jerónimo de Sousa.
Há, no entanto, outro mote a nortear as ações dos comunistas, que se afirmam “mais projecto que memória” e defendem que “o futuro tem Partido”. Projetar os tempos vindouros parece ser tão ou mais importante para o PCP do que celebrar o seu passado, querendo defender as conquistas sociais da Revolução do 25 de abril e prosseguir as transformações políticas e económicas que considera não terem sido concluídas.
Esse futuro, porém, parece incerto. Afetado por um redução eleitoral que se acentuou nos últimos anos e com a sua base de militância em aparente refluxo, o PCP enfrenta desafios inéditos na sua história centenária. O próximo é já nestas eleições autárquicas, já que é no poder local que os comunistas mantém uma das suas grandes forças, mas que sofreu um forte abalo em 2017.
O PCP, todavia, não só rejeita qualquer ideia de declínio, como mantém a aposta na mesma estratégia, conforme ficou plasmado na sua Resolução Política do seu XXI Congresso, organizado em novembro do ano passado. Mas no dia de aniversário do mais antigo partido português em atividade, não saltemos para o seu fim. Comecemos antes pelo início.
Do caldo revolucionário ao "grande partido nacional"
Para se perceber como surgiu o PCP, há que compreender o que era o Portugal da I República, principalmente nos anos da Primeira Guerra Mundial (1914-18) e os que se lhe sucederam: um país marcado por uma contínua instabilidade política, flagelado pela carência de géneros e uma enorme inflação e perante um movimento operário e sindical cada vez mais combativo e reivindicativo dos seus direitos. Ao mesmo tempo, de leste vinham os ecos da Revolução Russa de Outubro de 1917 e das conquistas que prometia para a classe trabalhadora.
É neste contexto que as bases para um partido comunista se começam a formar em Portugal. A sua criação, contudo, não seria fácil, dado que a corrente dominante no movimento operário era anarquista, ou seja, “visceralmente anti-poder”, havendo a conceção de que “o sindicalismo era rigorosamente apolítico, ou seja, centrava-se apenas em lutas de natureza económica”, como explica ao SAPO24 João Madeira, historiador e investigador do Instituto de História Contemporânea (IHC) e autor do livro “História do PCP: Das origens ao 25 de Abril (1921-1974)”.
Por isso mesmo, à falta de uma organização política comunista, foi criada em 1919 a Federação Maximalista Portuguesa, uma “organização não-sindical” bolchevista, liderada pelo escritor Manuel Ribeiro e que “estava muito entusiasmada com os efeitos da Revolução Russa, mas que ainda não se tinha conseguido libertar de toda a tradição anarquista” e que, por isso, era “muito contraditória na sua prática”, conta João Madeira.
No entanto, apesar de ir juntando apoios de sindicalistas revolucionários, de contar com imprensa própria e concelhos pelo país, esta estrutura precursora do PCP não consegue impôr-se no movimento operário e não resiste às investidas do Governo nem à prisão do líder, acabando por desaparecer. Os seus membros, todavia, não desanimaram, e em 6 de março de 1921 formaram o Partido Comunista Português.
Quando [o PCP] nasce, é um partido que vai procurar aderir à Internacional Comunista mas que não reúne as condições que são definidas pelo próprio centro do movimento comunista internacional para ser um partido bolchevizado João Madeira, historiador
O I congresso aconteceu ainda esse ano, num ambiente de desentendimentos e rivalidades, a ponto de ter sido o enviado de Moscovo, da Internacional Comunista, a evitar mais divisões no partido, a pôr ordem e a apoiar a liderança de José Carlos Rates, o primeiro secretário-geral do PCP. “Quando nasce é isto, é um partido que vai procurar aderir à Internacional Comunista mas que não reúne as condições que são definidas pelo próprio centro do movimento comunista internacional para ser um partido bolchevizado”, afirma João Madeira.
O PCP, já legalizado, não teria, contudo, muito tempo para se estabelecer. Nas vésperas do seu II Congresso, marcado para 29 de maio de 1926, dá-se o golpe de estado que instaura a Ditadura Militar que mais tarde irá desembocar no Estado Novo. Com a mudança de regime, segue-se a repressão passando o partido a uma clandestinidade que apenas abandonaria a 25 de Abril de 1974.
Ao SAPO24, José Neves, professor e também investigador no IHC, explica que no resto dos anos 20 ainda houve “uma tentativa de reorganização relativamente bem sucedida após uma certa desmobilização após o golpe militar”, sendo também o período em que surge Bento Gonçalves, o segundo secretário-geral do partido e “uma das grandes figuras individualmente associadas à história do PCP”. No entanto, os anos 30 são muito duros para os comunistas, porque culminam com a derrota republicana na Guerra Civil Espanhola e é quando o Estado Novo começa a aumentar e a refinar o aparelho repressivo, havendo “um desmoronamento de parte do núcleo dirigente do partido com as prisões”, incluindo a de Bento Gonçalves, que foi dos primeiros presos políticos a serem enviados para o campo de concentração do Tarrafal, onde acaba por morrer em 1942.
É apenas nos anos 40 que o PCP vai conhecer uma nova vida, com a chamada reorganização. “É um movimento refundacional, na verdade, não é uma reorganização ligeira. É como se tratasse da refundação de um partido que é operada a partir de dirigentes que estavam presos no Tarrafal e que, com a amnistia dos centenários em 1940, vêm depois de um intenso debate travado naquelas condições duríssimas e violentissimas procurar criar qualquer coisa como um partido novo, mas com a mesma designação”, indica João Madeira.
Este “novo” PCP cerra fileiras e, mesmo sem um secretário-geral, torna-se um partido mais eficiente e com códigos de conduta apertados na clandestinidade, mantendo a sua atividade mesmo com a prisão e tortura (ou mesmo a morte) dos seus membros e garantindo que o seu jornal, o “Avante”, sai sempre, mesmo quando as suas tipografias ilegais são fechadas pelas autoridades.
Álvaro Cunhal inaugura o PCP como o conhecemos ainda hoje José Neves, historiador
A liderar este processo passa a estar aquela que ainda hoje é figura maior do partido, Álvaro Cunhal, tornando-o mais leninista e, portanto, mais próximo de Moscovo sendo o que “talvez inaugura o PCP como o conhecemos ainda hoje”, sugere José Neves, isto depois de uma disputa pela liderança com outra das grandes figuras do partido, Júlio Fogaça [ver caixa]. O dirigente, de resto, não só será eleito secretário-geral em 1961 (exercendo funções no exílio), como protagonizará uma fuga temerária da prisão de Peniche um ano antes, onde estivera preso desde 1949.
Ao mesmo tempo, os comunistas passam a ser a face mais visível da luta contra o Estado Novo, sendo particularmente beneficiados com o final da Segunda Guerra Mundial e com o papel do Exército Vermelho na vitória aliada. Isso “projeta fortemente a imagem da URSS, de que o partido acaba por ser o representante em Portugal”, sublinha João Madeira. “O seu sistema de procedimentos internos, de regras de segurança, está a ser afinado, e por outro lado tem uma intervenção social muito importante, o que o torna um partido hegemónico, quer no movimento operário, quer no movimento antifascista”, completa o historiador.
Encabeçando os grandes protestos contra o Estado Novo, o PCP vai arrogar-se ao estatuto do "grande partido nacional", pautando-se também por movimentos de unidade contra o regime — apoiando Norton de Matos nas presidenciais de 1949 e Humberto Delgado nas de 1958 ao lado de outros setores da oposição.
Para além disso, os comunistas, com o início da Guerra Colonial em 1961, assumem também uma postura anti-colonial. A Ação Revolucionária Armada (ARA), estrutura armada do partido, é formada em 1964, mas só seis anos depois, em 1970, lança a primeira ação, em Lisboa, contra um navio que ia transportar armas para África
À medida que o regime ia caminhando para o seu fim, também o PCP deixou de ser o único partido organizado a opôr-se ao Estado Novo. À sua esquerda, as ruturas com militantes de tendências maoístas levam à criação de partidos como o Comité Marxista-Leninista Português ou o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado. À sua direita, surge o PS, fundado por Mário Soares.
Por esses dias, já um grupo de oficiais se organizava no Movimento das Forças Armadas (MFA) para derrubar a ditadura, o que acontece em 25 de abril de 1974. A “Revolução dos Cravos” ocupou as ruas de um país que recebeu Cunhal seis dias depois do golpe, em 30 de abril. O discurso de Cunhal, ao lado de Soares, ainda longe das divisões que os iriam afastar durante os meses seguintes, foi feito rodeado de militares e em cima de um blindado.
Os comunistas participam nos sucessivos governos provisórios e vão apoiando as “conquistas de Abril”, umas mais revolucionárias do que outras, como a Reforma Agrária e a ocupação de terras no Alentejo. O resto da história é bem conhecido: o chamado Processo Revolucionário em Curso teria fim com a tentativa de golpe militar a 25 de novembro de 1975, com enfrentamento entre o chamado “grupo moderado” e a “esquerda militar”. O apoio do PCP ao lado revolucionário ainda hoje alimenta polémicas, mas o partido acabaria por fazer a transição para o modelo político de democracia representativa sem mais solavancos, sendo uma das formações políticas a redigir e aprovar a Constituição de 1976 que vigora até hoje.
As razões da longevidade
Vivo e ativo no sistema político nacional, o PCP não só tem a particularidade de ser o mais antigo partido português em atividade, como é dos poucos partidos comunistas na Europa a manter a sua influência. Tudo isto, tendo em conta era um partido próximo da URSS e dos países do Bloco de Leste, que começam a desmoronar com a queda do Muro de Berlim, em 1989, vivendo o PCP momentos delicados no final da década de 1980 e anos 90, com as dissidências várias — como a expulsão de Zita Seabra, ou ainda nos anos 2000 com a expulsão dos “renovadores” João Amaral, Edgar Correia e Carlos Luís Figueira — e com a passagem forçada de testemunho de Álvaro Cunhal para Carlos Carvalhas em 1992 por motivos de saúde.
O que explica esta longevidade? No entender de António Costa Pinto, é exactamente por ter continuado a ser por “opção estratégica” um partido comunista ortodoxo, sem ceder a reformas. Assim, foi mantendo “a sua ação política com uma assinalável continuidade” quando a maioria dos seus companheiros de luta na Europa ocidental “perderam a identidade, alteraram-na como no caso do Partido Comunista Italiano [que se veio a tornar no Partido Democrata], ou tornaram-se irrelevantes”, como nos casos francês e espanhol, hoje pequenos partidos integrados em frentes de esquerda.
Convém não esquecer que a consolidação da democracia portuguesa é feita por uma frente dirigida pelo PS com os partidos de centro-direita que vai, no fundamental, isolar o PCP, que é o derrotado do 25 de Novembro de 1975 António Costa Pinto, politólogo
De acordo com o politólogo e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o facto do PCP ter sido isolado pelo restante sistema político também o ajudou de certa forma, não deixando a sua mensagem diluir-se com a de outros partidos. “Convém não esquecer que a consolidação da democracia portuguesa é feita por uma frente dirigida pelo PS com os partidos de centro-direita que vai, no fundamental, isolar o PCP, que é o derrotado do 25 de Novembro de 1975, mesmo que quem o tenha desencadeado tenham sido as forças de extrema-esquerda”, recorda.
O seu papel na Revolução de 25 de Abril de 1974, no entanto, também serve para explicar a sua longevidade e José Neves sugere uma comparação com o caso italiano, cujo Dia da Libertação do regime fascista também aconteceu na mesma data. “O deles foi em meados dos anos 40, o nosso aconteceu em 74. O facto da revolução portuguesa ter ocorrido mais recentemente teve por certo um impacto importante na capacidade do PCP reivindicar uma tradição histórica autónoma da Revolução de Outubro”, explica o investigador, que coordenou a antologia “Partido Comunista Português, 1921-2021”, a sair pela Tinta-da-China ainda este mês.
Para além de fazer uso da memória do 25 de Abril como que “de uma revolução inacabada” que urge terminar, o partido também mantem esforços para defender as conquistas conseguidas na transição para a democracia contra o que considera ser um esforço contra-revolucionário da direita. Desta forma, o PCP “pode hoje em dia, politicamente conciliar uma posição e uma atitude revolucionária e, ao mesmo tempo, uma posição defensiva: a defesa da constituição, a defesa dos valores de Abril, a defesa da Revolução”, sugere o historiador, lembrando como a campanha presidencial de João Ferreira se centrou particularmente nesse ponto.
É por esse historial de militância que o PCP atualmente defende que nos últimos 100 anos “nenhuma transformação social, nenhum avanço ou conquista dos trabalhadores e do povo português a que não esteja directa ou indirectamente associada a iniciativa, a luta, a acção e a intervenção do PCP”.
Mas para além do seu legado na construção do Portugal democrático, a mera resiliência adquirida durante os tempos da ditadura também explica em parte a sua perenidade. Para Paula do Espírito Santo, investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, persiste a ideia de que "o partido vai permanecendo contra ventos e marés" e que se baseia na mobilização, num ”trabalho que não é visível, que parte de todos os militantes”.
Há aqui uma lógica de ‘nós’ e os ‘outros’. Nós, os resistentes, os que queremos lutar pelo povo, pelo proletariado, pelos direitos que não estão ainda plenamente salvaguardados; e os outros, o capital, o poder instituído que não favorece os direitos dos trabalhadores Paula do Espírito Santo, politóloga
A politóloga dá o exemplo da Festa do Avante, não só como demonstração desse trabalho coletivo “de como os seus militantes se entregam a uma causa, colocando até o partido à frente da sua própria vida pessoal”, como também para dar visibilidade e “passar simbolicamente a mensagem de que o partido continua a resistir”. Por isso é que, apesar da polémica que se gerou no ano passado com os riscos sanitários da pandemia, o PCP organizou a edição do Avante à mesma, não obstante as críticas. “Há aqui uma lógica de ‘nós’ e os ‘outros’. Nós, os resistentes, os que queremos lutar pelo povo, pelo proletariado, pelos direitos que não estão ainda plenamente salvaguardados; e os outros, o capital, o poder instituído que não favorece os direitos dos trabalhadores”, diz Paula do Espírito Santo.
A investigadora indica também que a própria coerência do discurso do PCP é um fator de continuidade. “Há uma mensagem constante. Mesmo quando todas as reivindicações vão sendo atendidas, há sempre uma nova. A mensagem é muito consistente e é renovada porque o sentido é este: enquanto houver esta clivagem entre patrões e empregados, o PCP tem sempre sentido de existir, tem sempre motivos para continuar a lutar”, afirma, considerando haver "um ideário definido e uma história que o estrutura que vai transmitindo também os valores de força do partido". "Por isso é que, mesmo quando perde ou quando perde poder eleitoral, o PCP continua a sua mensagem, que é quase autoimune a tudo o que é polémica, a tudo o que é contestação na praça pública. Isto não vemos tanto em outros partidos", acrescenta.
O partido do "passado infinito” que não se deixa examinar
Se, por um lado, o PCP tem o intuito de divulgar a sua mensagem para o grande público — quer através da Festa do Avante, quer através do jornal do mesmo nome —, por outro, mantém um certo espírito dos tempos da clandestinidade no que diz respeito à sua estrutura e à sua história. “O partido só deixa conhecer aquilo que quer que se conheça”, admite Paula do Espírito Santo, citando a dificuldade em obter dados do partido para estudos de análise política.
É por isso que, por exemplo, apenas é possível saber quantos militantes se encontram filiados no PCP quando o partido publica as suas Teses, de quatro em quatro anos, coincidindo os seus Congressos.
O que temos é uma conceção de um partido que se quer permanentemente legitimar como o grande partido histórico do sistema democrático, com um passado à prova de bala João Madeira, historiador
O mesmo se passa com os seus arquivos, que apesar da riqueza documental, não têm uma função pública, encontrando-se fechados. Para João Madeira, o PCP “não tem nem quer ter uma história” contada por outrem. “Não estou a dizer que o seu passado lhe seja indiferente, muito pelo contrário, nos últimos isso até se acentuou muito. O que temos é uma conceção de um partido que se quer permanentemente legitimar como o grande partido histórico do sistema democrático, com um passado à prova de bala”, justifica, caracterizando-o de “uma espécie de partido do passado infinito, do passado projetado no futuro de modo infinito.
No entender do historiador, “o PCP tem toda a legitimidade para manter os seus arquivos fechados porque são privados”, mas tal “gera uma contradição”. “Então se se reclama como o principal partido a derrubar a ditadura, que se manteve em funcionamento permanente ao longo de meio século de fascismo, tendo esse acervo riquíssimo, não quer abrir os arquivos?”, questiona.
Para José Neves, este “é um conflito interessante e não improdutivo, que tem que ver com lógicas diferentes”, a dos historiadores e investigadores que querem “ter acesso a arquivos, a fontes, e que o partido facilite esse trabalho”, e do partido, que resiste a ser “objeto de investigação”, o que “tem que ver em parte com uma desconfiança em relação às narrativas que sobre ele são ou podem ser produzidas”.
Para o PCP, o seu passado é o seu presente. É um partido que tem 100 anos, mas que está vivo José Neves, historiador
O investigador explica, porém, o porquê desta atitude. “Para o PCP, o seu passado é o seu presente. É um partido que tem 100 anos, mas que está vivo. Há uma certa tendência para manter uma certa privacidade, um certo resguardo”, considera.
Em conjunto com esta resistência há a noção do “centralismo democrático”, a ideia de que é “um partido que funciona democraticamente, mas que a partir do momento em que há uma decisão produzida por esse coletivo, essa deve ser comunicada centralmente”, indica José Neves.
Paula do Espírito Santo vai mais longe, caracterizando o PCP como um partido “muito estruturado, quase militarizado, em que para uma patente mais baixa poder comunicar publicamente tem de ter autorização das patentes mais elevadas” e que “ sobrevive porque há um coletivo fortemente estruturado, muito dependente de uma cadeia de comando que não dá autonomia e que internamente — às vezes de forma muito crítica e extremada — controla tudo aquilo que são palavras e atitudes dissidentes”.
No entender de António Costa Pinto, porém, este é um não problema, pois apenas se deve exigir aos partidos que sejam democráticos na sua “participação política, a submissão à legislação democrática, mas não na estrutura interna, pois isso seria um limite à liberdade de associação”. “Tem sido muito falado o centralismo democrático que não é democrático, foram 40 anos de debate em Portugal sobre isso. E depois? Vamos obrigar os partidos políticos a ter estruturas internas como nós desejamos que tenham? Não”, defende.
PCP e a “ficção” do comunismo internacional
De mãos dadas com as críticas ao PCP por uma suposta opacidade das suas atividades e vida interna costumam estar tanto as acusações do partido apoiar regimes ditatoriais como, por vezes, do próprio ter tendências totalitárias com base no passado histórico do comunismo.
Há eleições para Presidente da República? Lá vem Cuba e a Venezuela; uma determinada proposta ameaça direitos e liberdades? Logo alguém jogará a cartada chinesa; os EUA agridem países soberanos? E a União Soviética?, haverá sempre quem pergunte Gustavo Carneiro, membro do Comité Central do PCP
O próprio PCP tem consciência do que designa como o “imenso arsenal ideológico diariamente mobilizado” contra si, lamentando que se tente “afastar os comunistas de qualquer debate sobre as perspectivas de desenvolvimento do País, tentando colocá-los na defensiva”, como refere um artigo de opinião assinado por Gustavo Carneiro, membro do Comité Central do partido. “Há eleições para Presidente da República? Lá vem Cuba e a Venezuela; uma determinada proposta ameaça direitos e liberdades? Logo alguém jogará a cartada chinesa; os EUA agridem países soberanos? E a União Soviética?, haverá sempre quem pergunte”, lamenta no texto.
A verdade é que o PCP se tem vindo a distanciar das referências a alguns países que geram incómodo na opinião pública. Para António Costa Pinto, o tema “é evidentemente uma limitação para a penetração dos segmentos mais educados, mais conscientes da política internacional”, considerando, porém, que tal assunto não tem “muita importância para a ligação entre o PCP e os grupos sociais populares, que se estão nas tintas para a Coreia do Norte enquanto membro da família internacional”.
Além disso, na opinião do investigador, a necessidade de manter uma ortodoxia onde se reconhece outros regimes comunistas “deriva do PCP ainda repousar internamente no marxismo-leninismo e, portanto, no movimento comunista internacional, o que é uma ficção”. A título de exemplo, António Costa Pinto aponta para a artificialidade dos laços de fraternidade com a China, “um país capitalista dominado internamente por um sistema capitalista de Estado, o Partido Comunista Chinês é um partido único que forma os melhores quadros tecnocratas, quer no setor privado, quer no setor político”, caracteriza.
“Eu acho que é difícil encontrar esse fundamento para a praxis da política, não para a doutrina, porque uma coisa é aquilo que é interpretado em cada contexto que é extremado no plano da interpretação da ideologia comunista, outra é a prática da política”, sublinha Paula do Espírito Santo.
O PCP, de certa forma, também adianta não lhe interessar seguir outros modelos comunistas, considerando que há “caminhos da revolução” diversificados e que seguem “fases e etapas diferenciadas de país para país”. “Tendo em conta a experiência do movimento comunista e revolucionário internacional e as experiências da construção do socialismo, é a partir da realidade concreta portuguesa e da própria experiência dos comunistas portugueses que o PCP aponta o caminho para o socialismo e as características fundamentais da sociedade socialista em Portugal”, refere o partido nas suas teses.
Para António Costa Pinto, contudo, “é natural que nos debates televisivos, sobretudo a partir da direita do espetro político, se aponte ainda essa característica ao PCP, mesmo que o movimento comunista internacional já não exista e não seja uma ameaça para ninguém”.
Essa estigmatização, de resto, também acontece para ligar o PCP ao período do Estalinismo da União Soviética e de identificá-lo com os seus crimes, isto apesar do partido rejeitar esse passado. “O estalinismo como ideologia, como ação política, como organização do Estado, como organização do partido, como intervenção antidemocrática interna ou externa do partido. Naturalmente que rejeitamos", disse Álvaro Cunhal numa entrevista ao jornal Independente.
De resto, António Costa Pinto sinaliza também que o PCP, apesar da sua retórica, perde “qualquer estratégia revolucionária” depois de 1975, assumindo-se “sempre um partido respeitador da democracia representativa” e que, “não abdicando do seu programa”, se transforma “no partido guardião da Constituição democrática portuguesa de 1976, mas mais evidentemente dos seus princípios socialistas, votando sistematicamente contra revisões”.
Pode o “cimento ideológico” construir um futuro?
Chegado aos 100 anos de existência, o PCP já passou por muitos desafios, mas os que se seguem podem ser de particular importância para o partido. Em todas as eleições em que participou desde 2016, tem vindo a somar derrotas, com resultados muito abaixo das expectativas.
Se nas presidenciais de 2016, Edgar Silva teve apenas 3,95% da votação, nas deste ano a percentagem subiu para 4,32%, mas o número de votos no candidato, João Ferreira, desceu. Nas legislativas de 2019, teve 6,33% quando quatro anos antes tinha obtido 8,25%, perdendo cinco deputados. Já nas Europeias de 2019 obteve o seu pior resultado de sempre, 6,88% e perdeu também representação.
Mas foi nas Autárquicas de 2017 onde o rombo foi maior para o PCP, tendo perdido 10 câmaras, algumas delas bastiões: nove para o PS (Alandroal, Alcochete, Almada, Barrancos, Barreiro, Beja, Castro Verde, Constância, Moura) e uma para uma candidatura independente (Peniche). Apesar do PCP alertar para as "manipulações" dos resultados, é inegável a queda: segundo o Expresso, os comunistas encolheram em 166 dos 308 concelhos portugueses
Não é de prever que do ponto de vista legislativo, o PCP tenha uma grande capacidade de recuperação do seu eleitorado António Costa Pinto, politólogo
É para as eleições autárquicas que o partido tem de se preparar este ano, na opinião de António Costa Pinto, já que considera que “não é de prever que do ponto de vista legislativo, o PCP tenha uma grande capacidade de recuperação do seu eleitorado”. Para o investigador, o PCP é um “partido eleitoralmente estagnado”, cuja dúvida não é se estará em declínio — que tem sido “constante, com a exceção da crise de 2012/2013” — mas sim “qual será o ritmo desse declínio”.
“O PCP ganha muito pelo trabalho feito, principalmente no plano autárquico. É a questão da obra feita, creio que neste momento é o que pode ser mais visível na ação política do partido comunista. Têm uma grande capacidade de trabalho nas câmaras e até já tiveram mais, porque há autarquias alentejanas a passar para o PS”, reforça Paula do Espírito Santo.
No entanto, a mesma adianta que “não há nada neste momento que motive dizer que o PCP poderá vir a crescer no plano autárquico”. “Acho que é manter ou diminuir a força que tem, mas também tudo depende das dinâmicas locais e das alianças que se estabelecerem”, avisa.
As opiniões dividem-se quanto às causas deste derrapar. Para a investigadora, o partido está ainda a ser punido pelos acordos de governação assinados com o PS em 2015. “Parece que houve essa descaracterização, essa quase perda de credibilidade histórica”, salienta Paula do Espírito Santo, concebendo que “nos pequenos momentos em que o partido de certa forma vai contra a sua ortodoxia — aquelas alianças que não são tão naturais historicamente, porque correram mal no passado — muitas vezes acabam por ter um efeito inesperado ou desconhecido face à dinâmica do partido”.
A esse respeito, a investigadora considera que o PCP teve de fazer a “quadratura do círculo”, tal como em nas presidenciais de 1986 onde, para evitar uma vitória de Freitas de Amaral (apoiado por PSD e CDS) à segunda volta, deu a mão a Mário Soares, que venceu, considerando-o um “mal menor”. Tal decisão ficou eternizada pelo apelo de Álvaro Cunhal aos comunistas, pedindo-lhes para taparem a cara de Soares com uma mão e votarem com a outra.
Para António Costa Pinto, no entanto, essa tese não colhe com a realidade, dizendo que se “trata de uma vaga de fundo relativamente lenta mas que não se prende com a Geringonça”. “E, até ver, também não tem a ver com o Chega”, adianta, lembrando as questões quanto à suposta perda de eleitorado para a direita radical no Alentejo nestas últimas eleições presidenciais.
O investigador defende antes que o declínio do PCP já vinha de trás com a perda de eleitorado tanto para o Bloco de Esquerda “nos segmentos mais da classe média em profissões científicas e técnicas” como pelo facto de depender do sindicalismo clássico, também ele em declínio “em termos de representatividade social”, e da própria dinâmica da sociedade portuguesa se ter alterado com a entrada na União Europeia.
O problema, contudo, não passa apenas pela perda de eleitorado, mas também a de militância. Segundo os dados do último congresso do PCP, os efectivos do partido integram 49,960 membros; em 2016 eram 54.280 e em 2012 60.484. Ao todo, o partido perdeu 10.524 militantes em oito anos, concedendo que “número de recrutamentos” não compensou “o número de camaradas que deixaram de contar como membros do Partido, principalmente em consequência de falecimentos”. Tal dado também não surpreende, atendendo que quase metade (49%) da militância do partido tem mais de 65 anos.
É um desafio permanente porque é um partido envelhecido nas suas bases Paula do Espírito Santo, politóloga
“É um desafio permanente porque é um partido envelhecido nas suas bases”, identifica Paula do Espírito Santo, adiantando que a solução passaria por apelar aos jovens, mas que todo o sistema político em geral tem dificuldade em fazê-lo porque “os jovens não são aculturados para a política” atualmente.
“A renovação pode não se colocar de forma crítica, mas temos de pensar para os próximos 10, 20, 30 anos, em que uma parte importante do PCP, que são os filiados idosos, e que acabou por ser sempre uma população muito ligada a uma resistência mas também a uma nova dinamização após o 25 de abril: o partido em 1980 atinge o maior número de filiados até hoje, tem mais de 200 mil filiados, nunca nenhum partido até hoje teve esse número”, explica.
Para além disso, de acordo com António Costa Pinto, parte do problema está também no “património genético” do PCP, que dificulta a adaptação àquilo que são os atuais temas da esquerda, para lá da dialética em que assenta a luta de classes. “É um partido muito associado à análise marxista da relação entre um partido e as classes trabalhadoras, fundamentalmente da classe operária” e que “tem limitações em relação àquilo a que pudemos chamar das dimensões identitárias, pós-materialistas, muito mais representadas no Bloco de Esquerda”, identifica.
Apesar de ter como bandeiras os direitos das mulheres, a luta antiimperialista ou as alterações climáticas, João Madeira vê o PCP a ter “dificuldades em se adaptar às novas realidades económicas e sociais que esta sociedade contemporânea tem a um ritmo e a uma voracidade tremendas''. O historiador dá como exemplos “o enquadramento do movimento sindical dos precários" ou as "dificuldades em relação a alguns temas mais fraturantes de natureza social: vejam-se as posições em relação às questões da eutanásia, ao casamento homossexual, enfim”.
Esta dificuldade de adaptação, acrescenta, é causada pela mesma característica que permitiu ao partido manter o seu percurso até agora, um “cimento ideológico” tão duradouro quanto inflexível: veja-se que o PCP, apesar dos maus resultados, não pretende mudar de estratégia, quer a avaliar pelas declarações proferidas por membros do Comité Central na noite das presidenciais, quer a julgar pela Resolução Política aprovada no Congresso do ano passado.
Na pior das hipóteses, porém, o historiador não acredita que o PCP vá acabar tão cedo, podendo apenas “ficar reduzido a expressões eleitorais muito mais modestas e perder grandes apoios ao nível das autarquias”. “Um partido assim não acaba”, conclui.
*com recurso a informação do arquivo da Lusa
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