“É para que ninguém se esqueça do São João”, legenda uma mulher as fotografias que vamos fazendo às suas sardinhas. Estamos na Sé, mesmo colados ao terreiro. Subindo a rampa, não se vê ninguém. O topo deste morro é um dos miradouros mais concorridos do centro do Porto. Hoje, como desde o início da pandemia, está completamente vazio. Aqui ao canto, dois homens, uma mulher. “Tira aí uma”, oferecem. “Não tenho a broa, mas posso ir buscar”, insistem, abanando ar sobre o bojo do peixe, que reluz ao pôr-do-sol.

Por toda a parte há indícios da festa — só não vê é festa. O cheiro no ar é o das sardinhas e o das fêveras. Ouve-se música nalguns recantos. E vão estalando os fogos de artifício, com maior frequência quanto mais baixo o sol andar.

A câmara cancelou os festejos da noite mais longa da Invicta. O Porto recebe sempre o verão com muita estima, dedicando ao respetivo solstício a principal festa da cidade. Agora, pela primeira vez desde que a memória guarda o tempo, a festa foi fechada em casa — mas nem por isso cancelada. Porque o povo daqui é elástico, capaz de se adaptar aos tempos anormais, sem normalidade possível. E se a festa do grupo não se pode fazer, faça-se dela um natal de verão, juntando a família ao grelhador em vez de à lareira.

“É a primeira vez que vejo esta zona assim”, confessa Esmeraldina Ferreira, 73 anos, que vive nas Fontainhas. Está à espera dos filhos, que vêm para “assarem as sardinhas”. Ao lado, António Costa, proprietário do café La Fontaine, também “não tem memória de dia igual”. A poucos minutos das 19:00, hora de encerrar o estabelecimento, ia arrumando o espaço para “cumprir as regras” e ir jantar a casa.

Se pelo Passeio das Fontainhas poucos eram os que passavam, nas casas localizadas na escarpa, os vizinhos iam-se juntando debaixo de fitas festivas em forma de manjerico. No espaço comum, que une as pequenas habitações, as brasas começavam a acender-se. Do Passeio das Fontainhas aos Guindais, manjericos iam aparecendo, entre janelas e varandas, como se preces se fizessem ao santo padroeiro para que, no próximo ano, a festa possa ser celebrada a dobrar.

“Roubaram-nos o São João, mas para o ano festejamos, desde que tenhamos saúde”, ouvia-se ao passar entre as pequenas casas, onde ainda resistem moradores nos Guindais.

Se as Fontainhas são o palco mais emblemático, e as escadas do Guindalense o mais castiço, é nos Aliados que a festa habitualmente junta mais gente.

Passa pouco das 21:30. Uma ambulância vem a descer da Trindade aos gritos. Quando desaparece, a avenida volta à sua calma semanal. Há mendigos à cata de esmolas na esplanada do McDonald’s (a única montada na avenida, para além da do vizinho Estambul, onde se junta gente também), autocarros a recolher as filas de pouca gente que para aqui anda, seguramente distanciada, como pérolas de um colar rebentado.

Descendo, já a estação de São Bento está fechada. A rua das Flores, uma das artérias que liga a zona dos Aliados ao rio, é toda feita de sombras. Estão só três mesas ocupadas nas poucas esplanadas montadas nesta rua pedonal. Vamos descendo, sozinhos, passa em casa: um rapaz vai explicando para o outro, estrangeiro, o pimba que não se ouve. Nesta zona de habitual turismo, faltam as luzes nas janelas dos hotéis e alojamentos. E eles metem nos auriculares a banda sonora para o caminho.

Em baixo, o lar de São Domingos é outra ausência. Um casal de turistas ocupa-o todo, sentado apenas num banco de jardim. Neste lugar imenso, só uma mesa tem um grupo, que ri enquanto janta — têm apenas até às 23h para o fazer.

No cais da Estiva, não há nada. Passam pessoas a caminhar, pequenos grupos a ver a noite. Uma rapariga come uma sandes à beira do rio, sem companhia mais que o vento e chuva que ameaça cair miúda. Rebentam, ao longe, foguetes, mas o céu está fechado e não revela localizações precisas. Até as gaivotas andam camufladas no meio das nuvens, rugindo escondidas.

Os foguetes estalam lá para Gaia e aqui para os lados de Miragaia. Ao longo da noite, de Ramalde até à Ribeira, ouvir-se-ão sempre.

A chegar à Ribeira, volta a ouvir-se música. Há arraiais escondidos nas congostas. O Porto é feito dessa malha apertada, de caminhos estreitos que desaguam em pequenos vãos. E neles está o fogareiro, a música e a festa possível. Voam uns poucos balões.

Os restaurantes têm algumas mesas compostas. Mas o São João não é de trajos compostos; é de moles compactas de gente, encaixada em todo o lado, a gritar e a fazer apitar os martelos. Este de hoje não é um dia normal — porém, esses também já não existem. Mas é São João na mesma.

José Maria Dias, sócio-gerente dos restaurantes Terra Nova e Taberna Rio, afirmou à Lusa ter “faturado mais ao almoço do que ao jantar”, descrevendo esta como uma noite “atípica”. “Nem éramos para abrir nesta noite, mas começámos a ter algumas reservas”, contou, acrescentando que pelo seu restaurante não passaram mais de duas dezenas de pessoas.

Olhar para trás é olhar para o contraste. O Porto de 23 de junho de 2019 não é o mesmo Porto de 23 de junho de 2020. Afinal, nem sequer o mundo é hoje o mesmo, levada que foi essa suposta normalidade em que todos viviam. Hoje não, hoje o mundo mudou-se. E também a cidade, que se resguardou, se escondeu de si mesma, à cata de não ser comida pelo bicho.

O comércio fechou todo logo às 19. Os restaurantes podiam ficar até às 23. Mas já mais de meia hora depois disso, nos Guindais, Maria senta-se nas escadas com umas poucas dezenas de pessoas. “Tínhamos de sair de casa”, confessa. “É triste ver isto assim. Normalmente não se pode andar aqui”, vai comparando, a pensar noutros anos.

Normalmente, chegada a meia-noite, o rio rebenta em chamas: o fogo de artifício salta de todos os lados, berrando e ecoando que é dia do São João, padroeiro popular da cidade (porque a padroeira oficial é a Senhora da Vandoma). E há os concertos nos Aliados, os abraços na ponte de filigrana, os martelinhos e o alho porro nas cabeças, a cidreira nas mulheres, os balões no céu.

Agora, nem as rusgas. Há um martelo rebelde aqui e ali. Há também alguns balões a furar o nevoeiro. Mas falta a gente. Nem dois minutos de conversa nas escadas dos Guindais, e o proprietário do único estabelecimento ainda aberto já vem avisar que têm mesmo de fechar. O dia de São João ainda nem tinha sequer chegado.

*Com Lusa