A expressão saiu repetidamente da boca de Joe Biden, presidente dos Estados Unidos da América, que acusou mais do que uma vez a Rússia de ter cometido crimes de guerra na Ucrânia, país que os russos invadiram a 24 de fevereiro deste ano. A primeira foi a 16 de março, quando disse que Vladimir Putin “é um criminoso de guerra”. Sem mais detalhes. Depois, tomou a palavra Antony Blinken, secretário de Estado norte-americano, para explicar que os ataques russos contra civis na Ucrânia constituíam “crimes de guerra”.

Na Europa, Josep Borrell, chefe da diplomacia europeia, viria a juntar-se à condenação. A cidade de Mariupol foi a razão.

“A Rússia está a cometer muitos crimes de guerra, é esse o termo, tenho de o dizer. O que se está a passar em Mariupol é um crime de guerra em massa. Estão a destruir tudo, a bombardear e a matar todos, de uma forma indiscriminada. Isto é algo horrível que temos de condenar nos termos mais fortes. É um crime de guerra em massa”, afirmou, à entrada para uma reunião de ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia, em Bruxelas.

As imagens que chegam da guerra na Ucrânia foram transferindo a expressão dos discursos de condenação para a constatação dos olhares mais comuns, num choque brutal que culminou nas imagens de Bucha, cidade a 60 quilómetros de Kiev, onde centenas de civis mortos foram encontrados espalhados na rua, nalguns casos com as mãos amarradas nas costas e atirados em valas comuns, tendo as autoridades ucranianas e os seus aliados acusado os soldados russos de terem cometido esses crimes.

Agora, parece óbvio para os líderes ocidentais que foram cometidos crimes de guerra, mesmo que Moscovo o negue, por exemplo, rejeitando em absoluto qualquer responsabilidade pelos acontecimentos em Bucha, afirmando mesmo que tal foi uma encenação de Kiev.

Pode parecer paradoxal, mas até as guerras têm regras. Quais são, quem as julga e o que coloca a Rússia no centro de tudo isto?

O que é um crime de guerra?

Aquilo que define o que é um crime de guerra está inscrito num conjunto de tratados que constituem as chamadas Convenções de Genebra, mas os contornos estendem-se a outros documentos conhecidos como Leis e Costumes de Guerra. O Estatuto de Roma, que em 1998 instituiu o Tribunal Penal Internacional, é outro documento fundamental.

A IV Convenção de Genebra — as três primeiras Convenções de Genebra protegem combatentes e prisioneiros de guerra, enquanto a quarta, adotada depois da II Guerra Mundial, em 1949, protege os civis —, assinada por todos os Estados-membros da Organização das Nações Unidas, o que inclui a Rússia, enumera o que são considerados crimes de guerra:

  • Homicídio doloso;
  • Tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas;
  • O ato de causar intencionalmente grande sofrimento ou ofensas graves à integridade física ou à saúde;
  • Destruição ou apropriação de bens em larga escala, quando não justificadas por quaisquer necessidades militares e executadas de forma ilegal e arbitrária;
  • O ato de compelir um prisioneiro de guerra ou outra pessoa sob proteção a servir nas forças armadas de uma potência inimiga;
  • Privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento justo e imparcial;
  • Deportação ou transferência, ou a privação de liberdade ilegais;
  •  Tomada de reféns;

Já o Estatuto de Roma, de 1998, no artigo 8.º, define os crimes de guerra que o Tribunal Penal Internacional "terá competência para julgar". Essa lista inclui, para além das ações já sinalizadas nas Convenções de Genebra, atos como:

  • Atacar intencionalmente a população civil em geral ou civis que não participem diretamente nas hostilidades;
  • Atacar intencionalmente pessoal, instalações, material, unidades ou veículos que participem numa missão de manutenção da paz ou de assistência humanitária, de acordo com a Carta das Nações Unidas, sempre que estes tenham direito à proteção conferida aos civis ou aos bens civis pelo direito internacional aplicável aos conflitos armados;
  • Lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa;
  • Provocar a morte ou ferimentos a um combatente que tenha deposto armas ou que, não tendo meios para se defender, se tenha incondicionalmente rendido;
  • Saquear uma cidade ou uma localidade, mesmo quando tomada de assalto;
  •  Utilizar veneno ou armas envenenadas;
  • Utilizar gases asfixiantes, tóxicos ou similares, ou qualquer líquido, material ou dispositivo análogo;

Quem julga os crimes de guerra?

Os crimes de guerra podem ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), localizado em Haia, nos Países Baixos. É um tribunal que nasce do já citado Estatuto de Roma, adotado a 17 de julho de 1998, criado com o objetivo de julgar sujeitos individuais pela prática dos mais graves crimes internacionais: genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra.

Em 2012, o senhor da guerra congolês Thomas Lubanga foi a primeira pessoa a ser condenada pelo TPI, considerado culpado de recrutar e usar crianças como soldados no seu exército rebelde entre 2002 e 2003.

É uma organização independente, apesar da estreita ligação à ONU, só pode exercer jurisdição num dos seus 123 Estados-membros. O tribunal não tem força policial própria e depende da cooperação do Estado para prender os suspeitos. As condenações podem incluir penas de prisão e multas.

A Rússia e a Ucrânia, no entanto, não pertencem ao TPI — atenção, não são casos únicos, também os Estados Unidos da América e a China não são membros do tribunal que funciona desde 2002. No entanto, a Ucrânia, mesmo não sendo signatária do Estatuto de Roma, aceitou por duas vezes a autoridade deste tribunal. A primeira foi, através de uma declaração formal, para que fosse permitida uma investigação formal aos confrontos com as forças separatistas russas entre novembro de 2013 e fevereiro de 2014. A segunda, de "duração indefinida",  autoriza o Tribunal de Haia a “identificar, processar e julgar os perpetradores e cúmplices de atos [criminosos] cometidos em território ucraniano a partir de 20 de fevereiro de 2014”.

É importante salientar que o TPI não é o único meio para julgar este tipo de crimes. A ONU pode, por exemplo, entregar um inquérito aos crimes cometidos na Ucrânia a um tribunal internacional híbrido, criado especificamente para este conflito, como aconteceu em relação à antiga Jugoslávia, ou ainda criar um tribunal para julgar Vladimir Putin e todos aqueles que sejam responsáveis pelos crimes perpetuados, como, no passado, se fez em relação ao tribunal militar de Nuremberga para julgar líderes nazis.

Por último, também é possível entregar o inquérito a um país em que os tribunais nacionais reconheçam o princípio da jurisdição universal para crimes de guerra, como é o caso da Alemanha.

Putin pode ser julgado em Haia?

É um cenário que, na antevisão, parece extremamente difícil. Teresa Violante, especialista em direito constitucional, explicou à CNN Portugal, que tendo em conta que o TPI não realiza julgamentos sem a presença do réu e que a Rússia não reconhece a autoridade desta instituição, a única forma de eventualmente capturar Putin é através de um mandado de detenção que seria colocado em prática quando o presidente russo entrasse num país signatário do Estatuto de Roma.

Como Presidente, o russo Vladimir Putin tem imunidade estatal e não pode ser processado por outros países, mesmo que seja por crimes de guerra, possibilidade reservada ao tribunal internacional e só no caso hipotético de Putin ser preso e enviado para Haia quando a investigação avance, se as acusações forem confirmadas e caso seja emitido um mandado de detenção internacional.

Que crimes de guerra ocorreram na Ucrânia?

A primeira vez que o termo crimes de guerra começou a ser discutido na praça pública, na sequência da guerra na Ucrânia, aconteceu no início do mês de março quando começou a circular nas redes sociais um vídeo de um tanque russo a, deliberadamente e sem qualquer justificação plausível, atropelar uma viatura civil.

No entanto, foi a 19 de março que vimos o termo ser utilizado pela primeira vez pela União Europeia que denunciou “um grande crime de guerra” em Mariupol: dezenas de milhar de habitantes, carentes de tudo, estão retidos na cidade devastada, onde uma maternidade e um teatro, que serviam de refúgio a mulheres e crianças, foram bombardeados.

Este terá sido a primeira vez que se utilizou oficialmente, pelas instituições, a denominação de crime de guerra.

Até agora, têm sido vários os relatos de casos que encaixariam nos critérios acima citados, mas aquele que terá sido mais chocante, pelos relatos e impacto visual das imagens dos fotojornalistas publicadas nos meios de comunicação social, foi o que aconteceu em Bucha, cidade a 60 quilómetros de Kiev, onde, no domingo, pelo menos, 410 civis foram mortos e encontrados espalhados na rua, nalguns casos com as mãos amarradas nas costas e atirados em valas comuns. Um rasto que foi testemunhado tanto por ucranianos como pela imprensa internacional depois de as tropas russas terem abandonado a região.

A Rússia já está a ser investigada?

Sim. Desde cedo, no dia um de março, que o TPI anunciou que ia investigar o conflito, pela voz de Karim Khan, procurador-geral do tribunal.

A investigação já feita pelo TPI aos conflitos que alastraram no país em 2013 e 2014 levam os observadores do TPI a considerarem que “existe uma base razoável” para se acreditar nas alegações de “crimes de guerra e crimes contra a humanidade” na Ucrânia,.

Khan pediu que os países membros fornecessem meios para a investigação e que todos os que tivessem conhecimento de crimes de guerra que fizessem a informação chegar ao seu gabinete.

No dia 24 de março, dezenas de países reuniram-se para prometer apoio à ação do TPI na Ucrânia, oferecendo dinheiro, tecnologia e experiência para a investigação às ações russas na invasão iniciada há um mês.

Numa reunião de representantes de 38 nações, em Haia, o procurador-chefe do TPI pediu que os países apoiassem a ordem internacional.

“Se não colocarmos o nosso dinheiro onde está o nosso discurso coletivo, se não dermos apoio real, mas nos limitarmos a lamentar, as coisas podem piorar. E a História não nos vai julgar bem”, disse o procurador Karim Khan, durante uma reunião de representantes de mais de 20 países na residência do embaixador britânico em Haia.

Antes do encontro, o Reino Unido já tinha prometido aumentar o apoio à investigação do TPI sobre a Ucrânia e a França, que é o terceiro maior contribuinte para este tribunal internacional, anunciou que vai fornecer magistrados, investigadores e especialistas, para além de 500 mil euros em financiamento.

Já no final do mês, a Polónia, Lituânia e Ucrânia avançaram com a criação de uma equipa para pesquisar alegados crimes de guerra e contra a humanidade cometidos em território ucraniano, um trabalho para apoiar a agência de coordenação judicial Eurojust, a partir de Haia.

Os três países tinham assinado sexta-feira um acordo para permitir o intercâmbio de informações e facilitar as investigações, revelou hoje a agência espanhola EFE, mas o grupo pode ser alargado a outros Estados da União Europeia e a países terceiros que queiram participar.

O principal objetivo é a recolha de provas e informações, o seu intercâmbio "rápido e seguro" entre parceiros, e facilitar e apoiar a cooperação desses países com o Tribunal Penal Internacional (TPI), cujo procurador está a investigar crimes de guerra e crimes contra a humanidade no contexto da invasão russa da Ucrânia.

Também o Departamento de Defesa dos Estados Unidos está a recolher provas de crimes de guerra cometidos pelas forças russas durante a invasão da Ucrânia, para eventuais processos contra os responsáveis na justiça,

Um dia antes dos acontecimentos em Bucha, a ex-procuradora internacional Carla Del Ponte pediu ao Tribunal Penal Internacional um mandado de prisão para o Presidente russo, Vladimir Putin, após a invasão à Ucrânia.

“Putin é um criminoso de guerra”, afirmou Del Ponte, em declarações ao diário suíço Le Temps, notando que a emissão de um mandado de detenção é necessária para responsabilizar Putin e outros dirigentes pelos crimes cometidos desde a invasão da Ucrânia.

Para Carla Del Ponte, a antiga procuradora que se tornou conhecida após lidar com casos como o genocídio no Ruanda, esta é a única forma de prender um “autor de um crime de guerra” e colocá-lo perante a justiça internacional.

No entanto, ressalvou que a emissão do mandado não garante a prisão de Putin, caso este continue na Rússia. Contudo, o Presidente russo ficará impossibilitado de deixar o país, o que constitui “um sinal de que muitos Estados estão contra ele”.

Por outro lado, defendeu ser preciso encontrar provas que incriminem altos funcionários políticos e militares. "A dificuldade é justamente chegar ao topo da cadeia de comando para identificar quem planeou, ordenou e executou esses crimes de guerra”, concluiu.