O que esperar de Donald Trump como presidente dos EUA? Foi o que perguntámos a Tiago Moreira de Sá, que deu uma entrevista ao SAPO24, onde assinalou, também, alguns dos principais desafios do cargo que o republicano ocupará no próximo dia 20 de janeiro. 

“Até agora, daquilo que sabemos, é mau. As propostas dele [Trump], do ponto de vista interno são um desastre”, diz o investigador, assinalando a intenção do republicano de reduzir os impostos para a classe mais rica, desregular o sistema financeiro, acabar com o Obamacare - um sistema que permitiu a milhões ter acesso a cuidados de saúde”. Acresce a isto, “a sua postura protecionista quando os EUA são os grandes beneficiários do sistema internacional de livre comércio. 

“Do ponto de vista interno [antecipo] uma nova recessão nos EUA e um aumento das desigualdades. Do ponto de vista externo, podia levar ao colapso da ordem internacional liberal”, resumiu. 

“As pessoas estão muito zangadas e têm razões para estar zangadas. E quando estão zangadas pensam que não têm nada a perder, o problema é que têm”, disse o investigador quando questionado sobre o percurso - e sucesso - de Trump, que culminou com a eleição para o cargo de presidente dos EUA, contrariando todas as expectativas.

E de onde vem essa zanga? Há várias razões, mas um “momento simbólico é o colapso financeiro de 2007/2008, que na perceção das pessoas foi responsabilidade das instituições financeiras feitas pelas elites políticas, e que levou a que os contribuintes tivessem de resgatar o sistema financeiro, grande responsável pela crise que se seguiu. Embora a questão seja mais complicada do que isto, na perspetiva das pessoas foi o que se passou. E se as pessoas pensam que foi isto que aconteceu, passa a ser o que aconteceu, porque em política o que parece é”, explica. 

Os desafios da presidência

Agora eleito, Donald Trump tem pela frente vários desafios a nível interno e externo. Para Tiago Moreira de Sá, a prioridade é arrumar a casa.

Aqui, é preciso enfrentar “a grande polarização que existe ao nível político e que faz com que tenha desaparecido o centro moderado, de republicanos e democratas moderados, aqueles que negociavam os grandes acordos do regime”. Outro aspeto importante, diz, “é o divórcio litigioso, a rutura emocional, que existe entre elites e eleitores”, e que se traduz “numa enorme desconfiança” do sistema político, algo de Trump soube capitalizar a seu favor durante a campanha, apresentando-se como um candidato fora do sistema. De somar, ainda, um crescimento económico insuficiente, níveis de desemprego alarmantes, sobretudo na cintura industrial, e as crescentes desigualdades.

“O crescimento económico, apesar de existir, é insuficiente. Nomeadamente comparado com o grande rival económico que é a China”, diz. “A China cresce a 7%, 8 % [ao ano] e os EUA se crescerem a 2% já não é nada mau. Se isto continuar, daqui a 10 ou 15 anos a China passa os EUA como a maior economia do mundo”, explica.

No que toca à taxa de desemprego, Tiago Moreira de Sá refere que os números a nível nacional escondem uma dura realidade. Apesar de o valor se situar perto dos 5%, o facto e que em estados e cidades da antiga cintura industrial a realidade é outra. “Algumas comunidades foram simplesmente arrasadas porque as fábricas, sobretudo na área do carvão, do ferro e do aço, fecharam. Seja porque as empresas se deslocaram para a Ásia-Pacífico, seja porque a China mete no mercado produto muito mais barato que os americanos”, refere. 

Por fim, “as desigualdades nos Estados Unidos têm vindo a aumentar” e estamos “quase” perante “o fim da mobilidade social”. “Os EUA sempre aceitaram níveis de desigualdade muito superiores à Europa. Para os americanos, a desigualdade não é vista da mesma forma porque acreditavam no sonho americano. Hoje em dia, os números dizem que a mobilidade social nos EUA é muito reduzida. 90 e tal por cento dos que nascem ricos morrem ricos, e 90 e tal por cento dos que nascem pobres morrem pobres”, conclui.

E fora de casa?

“Primeiro, uma das grandes questões é inverter o declínio relativo da distribuição do poder norte-americano no sistema internacional”, diz Tiago Moreira de Sá. A par, é preciso, neste contexto, “lidar com a questão da China, que é a grande ameaça de longo prazo aos EUA”. Contas feitas, o desafio está em “manter a ordem internacional liberal, que é a ordem internacional norte-americana, e que reflete em larga medida os seus interesses e dos seus aliados”. Isto pode ser difícil com “as fortes pressões internas, nomeadamente ao nível da opinião pública, para que os EUA se retraiam externamente”, ou “algumas tendências neo-isolacionistas a que Trump deu eco”.

E é neste campo que, mais uma vez, a incerteza em torno da atuação de Donald Trump assume especial relevância. O que o candidato propôs ao longo da sua campanha foi “a destruição da ordem internacional norte-americana, em todos os seus pilares”, refere Tiago Moreira de Sá, e exemplifica. 

“A ordem internacional americana é multilateral, ele defende uma conceção unilateral da política externa norte-americana. A política externa norte-americana é feita na base das alianças institucionais e permanentes, e Donald Trump é contra a NATO. A ordem internacional americana é de comércio livre, Trump é contra os acordos de livre comércio e defende o protecionismo. A ordem internacional americana é uma ordem que valoriza as organizações internacionais, como as Nações Unidas, e Donald Trump é muito crítico das Nações Unidas e organizações afins. A ordem internacional norte-americana valoriza o direito internacional para regular as relações entre estados e Donald Trump considera que o direito internacional é uma limitação à liberdade de ação dos EUA”, numera. 

A América pós-Trump? “Luís de Camões tinha uma expressão que dizia: ‘o fraco rei faz fraca a forte gente’. Neste caso, o mau chefe faz má a boa gente”, diz, salientando todos os “fantasmas” que o republicano colocou à solta na campanha, como “xenofobia, racismo, sexismo, machismo, intolerância, ignorância…”.

Está tudo em aberto, é um facto. Agora, é esperar para ver.