De acordo com dados do Rhodium Group, um grupo de análise económica independente, o investimento chinês nos Estados Unidos caiu para cinco mil milhões de dólares (cerca de 4,4 mil milhões de euros), em 2019, o valor mais baixo da última década, refletindo o clima de desconfiança política entre os dois países.
A guerra comercial que separa Estados Unidos e a China já dura há mais de dois anos, com uma escalada de sanções económicas que parecia ter abrandado, no início deste ano, com a assinatura da primeira fase de um novo acordo e com declarações pacificadoras do Presidente norte-americano Donald Trump e do seu homólogo chinês, Xi Jinping.
Mas com o eclodir da pandemia de covid-19, regressaram as críticas mútuas, com Trump a denunciar o que chamou de silenciamento inicial dos riscos da propagação do novo coronavírus por parte de Pequim e com o Governo chinês a deixar a entender que o início da crise sanitária pode ter acontecido como consequência de uma viagem de um equipa desportiva do exército norte-americano a Wuahn, origem da pandemia, em outubro do ano passado.
Os analistas olham para o endurecimento da retórica diplomática entre os dois países como um pretexto para amplificarem divergências e revelarem feridas que são profundas e que não cicatrizam com crises globais, bem pelo contrário.
Em declarações à Lusa, José Pedro Teixeira Fernandes, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-Nova), reconhece que a pandemia constitui uma forte ameaça para a posição da China, no momento em que está a lançar o seu programa de expansão económica, sobretudo perante os Estados Unidos, com quem mantém várias frentes de conflito.
Teixeira Fernandes percebe que essa fragilidade da posição chinesa pode ser uma boa alavanca para o Presidente norte-americano, em ano eleitoral, que pode intensificar o grau de animosidade com Pequim, para agradar a uma parte importante da sua base de apoio.
“Mas uma crise sanitária desta dimensão nunca é uma situação fácil de gerir, para nenhuma das partes”, disse à Lusa o investigador do IPRI-Nova, referindo-se aos riscos de manipulação da informação que uma pandemia permite.
Em maio, numa conferência de imprensa que a Lusa acompanhou, Michael Kozak, secretário adjunto interino do escritório de assuntos do hemisfério ocidental do Departamento de Estado norte-americano, acusou a China de usar países aliados para disseminarem desinformação sobre a pandemia.
Michael Kozak disse saber que Rússia, China e Irão estão a usar os regimes de Cuba e da Venezuela para produzirem e disseminarem elevada quantidade de informação distorcida sobre o combate à pandemia, com o fim de realçar a forma desastrosa como as democracias ocidentais, em particular a dos Estados Unidos, estão a falhar no combate à propagação do novo coronavírus.
“Não podemos competir com eles. Nem queremos competir com eles nessa estratégia. A nossa opção é a transparência”, disse Kozak, mencionando o investimento bilionário que está a ser feito pela China e pela Rússia em empresas que produzem perfis falsos nas redes sociais ou programas de informação com conteúdos distorcidos para serem difundidos em ‘media’ da América Latina, com a colaboração e apoio dos regimes de Cuba e da Venezuela de Nicolas Maduro.
O resultado da desconfiança entre os dois países fez-se notar, ainda numa fase ainda embrionária da pandemia no Ocidente, no início de março, quando o Governo dos EUA anunciou a imposição de um limite ao número de funcionários de nacionalidade chinesa que quatro meios de comunicação social podiam empregar naquele país.
As novas restrições eram uma resposta à decisão tomada em meados de fevereiro pelo Governo chinês de revogar a licença para trabalhar no país a três jornalistas credenciados do jornal americano The Wall Street Journal, alegando que eles estavam a reproduzir falsas informações sobre o papel de Pequim no alastrar da pandemia.
Era a primeira vez, em décadas que os dois países expulsavam jornalistas mutuamente, num evidente sinal de antagonismo, pouco depois de terem trocado promessas de cooperação económica, com a assinatura da Fase Um do novo acordo comercial.
“Há um ciclo vicioso envolvendo três patamares: a situação devastadora da pandemia nos Estados Unidos; as divisões partidárias nos EUA, em ano eleitoral; a deterioração das relações com a China”, explica Cheng Li, diretor do Centro Chinês do Instituo Brookings, realçando que o novo coronavírus está a servir de pretexto para amplificar feridas profundas e duradouras que separam os dois países.
A expulsão dos jornalistas do Wall Street Journal de Pequim teve como origem a publicação de um artigo intitulado “China, o verdadeiro doente da Ásia”, em que se colocava em questão a eficácia da resposta do Governo chinês à epidemia de coronavírus.
A expressão “doente da Ásia” foi usada de maneira depreciativa no final do século XIX e início do século XX, para se referir à China, quando o país estava dividido internamente e pelas tentativas de colonização de potências ocidentais, forçando os seus líderes a assinarem uma série de tratados para obter concessões comerciais.
A diplomacia norte-americana retoma agora o conceito para denegrir a imagem da China, muito associada à origem da pandemia de covid-19, ao mesmo tempo que Trump aproveita para endurecer a posição comercial dos EUA.
Em final de março, o Presidente dos EUA anunciou que não via nenhuma razão para remover as tarifas aduaneiras retaliatórias na guerra comercial com a China, apesar da crise económica provocada pela pandemia.
Trump recordou que a China não levantou a hipótese de suspender a guerra comercial com os EUA, quando a pandemia se iniciou na cidade chinesa de Wuhan.
Dias depois, o chefe da diplomacia norte-americana, Mike Pompeo, acusou a China de “semear informações falsas e rumores absurdos” sobre a origem do novo coronavírus.
No momento em que as autoridades dos EUA estavam preocupadas com a propagação rápida do vírus e que as cidades norte-americanas abrandavam, preparando-se para a eventualidade de uma quarentena geral, Mike Pompeo falara telefonicamente com o mais alto funcionário do Partido Comunista Chinês, acusando as autoridades da China de desinformação.
Em causa estava uma afirmação do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Zhao Lijian, que sugeriu que uma equipa de atletas do exército norte-americano teria introduzido o vírus em Wuhan, a cidade onde a pandemia se iniciou, quando ali se deslocou para uma competição, em outubro passado.
Perante os comentários de Pompeo, a televisão estatal chinesa disse, numa espécie de editorial, que os comentários do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, sobre a origem do novo coronavírus foram “insanos e imprecisos”,
“Os políticos americanos está a tentar culpar alguém, manipular as eleições e repreender a China, quando os seus próprios esforços contra a epidemia são um desastre”, concluía a declaração divulgada pela estação estatal chinesa.
Dois outros comentários publicados nessa altura no Diário do Povo, o órgão oficial do Partido Comunista Chinês, descrevem Pompeo e Steve Bannon, ex-estratego do Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, como “palhaços mentirosos” e “fóssil vivo da Guerra Fria”.
Dias antes, Bannon tinha dito que a China cometera uma “Chernobyl biológica” contra os Estados Unidos, referindo-se ao desastre que aconteceu numa estação de energia nuclear soviética, no passado século.
Em maio, o Governo dos EUA admitiu mesmo a possibilidade de interpor uma acusação judicial contra o Governo da China, acusando-a de ter negligenciado os riscos da pandemia.
Em resposta, o porta-voz da diplomacia chinesa Zhao Lijian acusou as autoridades norte-americanas de terem estado envolvidas “na manipulação política de responsabilidades e em desvios de dinheiro”, em matérias relacionadas com a pandemia.
A diplomacia chinesa desvalorizou a possibilidade de os Estados Unidos colocarem uma ação criminal internacional contra Pequim, pela forma como o Governo chinês lidou com a fase inicial da pandemia e prometeu endurecer também a sua posição no campo comercial.
“Temos de passar por cima desta retórica para compreender o essencial. E o essencial é que a China e os Estados Unidos estão condenados a não se entenderem. Tudo o resto são desculpas e pretextos”, conclui Cheng Li, do Instituto Brookings.
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