Desde que deixou a presidência dos Estados Unidos, em janeiro de 2021, Donald Trump soma escândalos judiciais: fraude eleitoral, fraude fiscal, difamação, suborno, conspiração, obstrução à justiça. E segue. No espaço de menos de três meses já compareceu em tribunal duas vezes para ser formalmente indiciado. Mas nada parece derrubá-lo e, segundo as sondagens, vai à frente nas intenções de voto para as presidenciais de 2024. O ex-presidente garante que vai continuar na corrida à Casa Branca mesmo que venha a ser condenado.
No dia 13 deste mês Trump declarou-se "inocente" das 37 acusações de que é alvo - o FBI encontrou na sua casa de Mar-a-Lago, na Florida, centenas de caixas, algumas na casa de banho, com mais de 100 documentos classificados entre confidencial e ultrassecreto -, que lhe podem valer penas máximas entre os cinco e os 20 anos de prisão.
O julgamento do caso será agendado e presidido pela juíza federal Aileen Cannon, uma conservadora nomeada pelo ex-presidente em 2020, que já antes decidiu a seu favor e que poderá adiar as audiências para depois das eleições ou para quando a escolha do candidato republicano já estiver resolvida. É verdade que a juíza emitiu na semana passada uma ordem para que o julgamento comece a 14 de agosto, mas os advogados consideram que o prazo é irrealista e muitos acreditam que o objetivo foi apenas mostrar serviço.
O procurador especial Jack Smith propôs iniciar o julgamento em dezembro, mas a recomendação é agora que a selecção do júri comece a ser feita a 11 de dezembro. Os advogados de defesa de Trump e seu assessor pessoal, Walt Nauta, co-réu no caso, concordam que agosto é demasiado cedo e que o julgamento deve ser adiado, mas discordam das datas propostas.
No início de abril, Donald Trump já tinha sido pronunciado pelo suborno da atriz pornográfica Stormy Daniels, a quem terá feito um pagamento de 135 mil euros em 2016 para comprar o seu silêncio, já que esta ameaçava tornar pública uma relação entre os dois, que poderia ter comprometido a campanha eleitoral.
Comprar o silêncio de alguém não é um crime nos Estados Unidos e pode ser até considerado normal na América moderna. Mas, neste caso, pode envolver falsificação de documentos para simular um pagamento ao então advogado Michael Cohen, que em 2018 confessou que o dinheiro foi para Stormy Daniels. E é essa mentira que o leva ao banco dos réus. Mais grave ainda se se vier a provar que serviu para financiar ilegalmente o partido ou que envolve até conspiração.
Mas há outras investigações em curso, infrações civis e penais. Por exemplo, os dois casos relacionados com as eleições de 2020: o papel no assalto ao Capitólio e a interferência nas eleições na Georgia (Trump terá telefonado a pedir para se encontrarem os votos de que precisava para ganhar as eleições e tentou perverter o resultado). Ainda, as suas empresas estão a ser investigadas por fraude fiscal e pagamentos em espécie não declarados. Há também uma investigação aberta sobre uma possível fraude milionária, que poderá inibir Trump do exercício da atividade empresarial.
Em Washington, vários especialistas em ciência política defendem que estes factos animam ainda mais o ex-presidente nesta corrida. E há até quem acredite que tem hipóteses de ganhar. Com a cobertura mediática das acusações ao ex-presidente, que não parecem ter fim à vista, Trump é, mais uma vez, o centro das atenções. E isso pode ser um problema para os seus rivais, que ainda não se conseguiram fazer ouvir nesta campanha.
Há 100 anos o candidato socialista concorreu da prisão e teve um milhão de votos
Perante este cenário, Donald Trump apresenta-se como "o homem mais inocente da história dos Estados Unidos". E não há mecanismos legais que o impeçam de se candidatar à Presidência da República. A constituição norte-americana não proíbe alguém acusado de crimes - nem tão pouco condenado -, de se candidatar ao mais alto cargo do país. E já aconteceu.
Não seria a primeira vez na história dos Estados Unidos que um candidato faria a sua campanha a partir da prisão. Em 1920 o socialista Eugene Debs, o preso 9.653, não discursou na noite eleitoral, mas conseguiu quase um milhão (913.693) de votos.
Era a quinta vez que Eugene Debs, fundador do Partido Socialista americano, se candidatava à presidência dos Estados Unidos. Foi preso em julho de 1918 por causa de um discurso que fez em Canton, Ohio, contra o alistamento militar obrigatório na Primeira Guerra Mundial, que dizia beneficiar apenas os fabricantes de armas e interesses comerciais.
"A classe trabalhadora nunca teve voz na declaração de guerra”, afirmou perante a assistência de cerca de 1.200 pessoas. “Se a guerra é certa, então que seja declarada pelo povo - vocês, que têm as vidas a perder". Enquanto Eugene Debs falava, um estenógrafo contratado por um promotor federal tirava notas das frases mais subversivas. Na altura, nos termos da Lei da Sedição, as suas palavras representavam uma traição à pátria.
Isto, apesar de muitos americanos serem contra o envolvimento dos Estados Unidos na guerra. E nem todos se limitavam a protestar. No Indiana, os cartões de alistamento militar obrigatório do condado inteiro foram roubados. No Minnesota, bancos que apoiavam o esforço de guerra foram boicotados. E, por todo o país, jovens faltaram compulsoriamente aos exames de aptidão física, deram moradas erradas ou apresentaram pedidos de isenção.
O julgamento de Eugene Debs, de 62 anos e a recuperar de doença cardíaca grave, foi uma confusão. Na altura, ficou claro que o estenógrafo, um vendedor de carros, não tinha transcrito a maior parte do discurso. A acusação chamou várias testemunhas, rapazes em idade de se alistarem, para provar que o discurso os tinha desencorajado, enquanto a defesa chamou apenas uma pessoa para depor, o próprio Eugene Debs, que se confessou culpado.
A 18 de novembro de 1918, apenas 13 dias depois de completar 63 anos, uma semana depois do Dia do Armistício, Eugene Debs foi condenado a três penas de dez anos de prisão, a serem cumpridas concomitantemente, e perdeu o direito ao voto, apesar de ter recorrido contra a condenação e levado o recurso até ao Supremo Tribunal.
A 13 de abril de 1920, os socialistas promoveram uma manifestação em frente da Casa Branca e entregaram um abaixo-assinado a pedir o perdão de Eugene Debs - a atriz de cinema Mae West escreveu uma carta ao recém eleito presidente, Warren G. Harding, para reforçar esse pedido. Quase um ano depois, o diretor da cadeia de Atlanta levou Debs até uma estação ferroviária, desacompanhado e sem supervisão, que embarcou num comboio para Washington, para uma audiência com o procurador-geral dos Estados Unidos, Harry Daugherty, realizada a pedido do presidente.
Eugene Debs nunca foi perdoado, mas em 1977 o presidente Jimmy Carter indultou os americanos que foram para o Canadá para fugir ao alistamento militar obrigatório durante a Guerra do Vietname (1955-1975).
Num cenário levado ao limite, e supondo que Donald Trump é eleito, ele poderá até indultar-se a si próprio. A constituição dos Estados Unidos é omissa em muito do que toca a quem pode ocupar o cargo de presidente. Por outro lado, o Congresso tem poderes para declarar o presidente incapaz e pode inabilitá-lo ou destituí-lo mediante determinados pressupostos.
Afinal, que apoios tem hoje Donald Trump? E concorre para não ser preso ou vai preso para não poder concorrer? Certo é que o ex-presidente tem um grupo fiel de seguidores e agora está de volta às redes sociais, depois de dois anos suspenso do Twitter e do Facebook e Instagram (Meta). Entretanto, montou a sua própria rede: a Truth Social.
De vilão a mártir, no conjunto da população Trump pode conseguir entre 30% e 35% - com uma base muito sólida de apoio no eleitor branco, de classe média e evangélico -, o suficiente para ganhar as primárias. Para já, o ex-presidente pode estar num dia a fazer campanha e no outro a tirar a sua fotografia de frente e perfil - o julgamento do caso relacionado com a atriz Stormy Daniels está agendado para 25 de março de 2024 e Trump foi avisado pelo tribunal para não assumir "quaisquer compromissos profissionais ou pessoais".
(artigo atualizado às 12h50)
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