Quinze anos depois do 'SIM' no referendo sobre a despenalização do aborto — em Portugal, a interrupção da gravidez pode ser realizada nas primeiras 10 semanas de gravidez, calculadas a partir da data da última menstruação —, voltamos a debater a IVG. Agora, o que está em causa são os novos critérios de avaliação de médicos de família.
O que está em causa?
A notícia fez capa na edição do jornal Público desta terça-feira. De acordo com a publicação, os médicos de família, assim como os restantes elementos das equipas, podiam vir a ser avaliados por interrupções voluntárias da gravidez (IVG) realizadas pelas utentes da sua lista e pela existência de doenças sexualmente transmissíveis (DST) nas mulheres.
Os novos critérios foram propostos pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e foram validados pela Direção-Geral da Saúde (DGS).
No entanto, em declarações ao Expresso, esta quarta-feira, o coordenador para a reforma dos cuidados de saúde primários, João Rodrigues, revelou que foi decidido retirar os dois indicadores polémicos da nova proposta de avaliação destes profissionais, depois de uma má receção generalizada da comunidade médica. A decisão do grupo de trabalho foi tomada ainda na terça-feira e foi esta quarta-feira comunicada ao Ministério da Saúde.
De acordo com a Federação Nacional de Médicos (FNAM), que divulgou o caso, a mudança acarretaria uma discriminação salarial dos médicos avaliada com base nas decisões individuais dos doentes.
A coordenadora da Comissão Nacional de Medicina Geral e Familiar da FNAM, Carla Silva, disse ao Público que esta proposta foi uma surpresa completa. “Contestamos estes indicadores. Isto tem implicações na remuneração e nada foi discutido com os sindicatos”, referiu a médica ao jornal, realçando que as atividades especificas das USF-B foram definidas por um decreto-lei e que este não sofreu qualquer alteração.
Carla Silva destacou igualmente que “os indicadores da IVG e DST podem provocar uma prática de desigualdade de género nos cuidados de saúde primários” e, por isso, a FNAM enviou uma exposição à Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.
A resposta da ministra da Saúde
Ouvida no Parlamento no âmbito do Orçamento do Estado, esta terça-feira, a ministra da Saúde Marta Temido foi questionada sobre o tema.
“Estamos a falar de que o desempenho dos profissionais de saúde seja aferido pela melhor saúde dos utentes (…) e de avaliar o recurso a uma IVG como um ato indesejado, sob o ponto de vista do impacto que tem na saúde da mulher”, afirmou a ministra, acrescentando que “não está obviamente em causa a opção da mulher”.
Marta Temido explicou ainda que há seis áreas de atividades especificas que influenciam a avaliação dos profissionais das USF modelo B, entre elas a vigilância em planeamento familiar de uma mulher em idade fértil por ano; a vigilância de uma gravidez; de uma criança no primeiro ano de vida, por ano; de uma criança no segundo ano de vida, por ano; de uma pessoa diabética por ano e de uma pessoa hipertensa por ano.
“Podemos achar que o indicador não deve ser considerado (…) mas estamos a falar da responsabilidade de acompanhamento no planeamento familiar, no que poderá ser uma fragilidade neste acompanhamento que colocou esta mulher numa situação em que teve de recorrer à IVG”, explicou, insistindo que “não está em causa a opção”.
As reações
- BE
Ainda na audição da Ministra, Catarina Martins questionou a titular da pasta da Saúde sobre estes critérios de avaliação, considerando que trazer a interrupção voluntária da gravidez para esta avaliação não é um mero indicador de saúde. “Quem o vê assim está a fazer mais o policiamento do corpo das mulheres”, considerou a deputada.
Na resposta, a ministra explicou que o grupo técnico recomendou que o tema do critério da realização IVG “fosse considerado como falha do acompanhamento em planeamento familiar realizado pelos profissionais de saúde. Todos entendem que a IVG para as mulheres que a fizeram é profundamente penalizadora para a saúde física e mental".
Sobre esta explicação, a deputada Catarina Martins insistiu que “a simples consideração de que a IVG é uma falha de planeamento familiar e já um julgamento moral inaceitável”.
- PS
As deputadas Isabel Moreira e Alexandra Leitão são as primeiras subscritoras de um conjunto de perguntas dirigidas à ministra da Saúde, documento em que exigem absoluto respeito pelo livre recurso à interrupção voluntária da gravidez.
“Considera aceitável que o mesmo seja interpretado como falta de planeamento familiar para efeitos de qualquer tipo de indicador? Sendo evidente e compreensível o desconforto gerado pela possibilidade de validação de um critério de avaliação de unidades de saúde que pode potenciar o constrangimento das mulheres no exercício de um direito, está a ministra da Saúde disponível para rapidamente excluir aquele critério?”, perguntam.
- PCP
O PCP insurgiu-se hoje contra a proposta para que a IVG entre como critério na avaliação de desempenho dos médicos de família, considerando que é "inaceitável" e um "condicionamento" sobre as mulheres.
“Trata-se de uma proposta que coloca em cima da mesa um condicionamento que é inaceitável, nomeadamente no que tem que ver com uma opção que custou tanto, mas tanto, como é o direito à interrupção voluntária da gravidez”, sustentou o deputado comunista João Dias, em conferência de imprensa na Assembleia da República.
Lá fora, o tema também está a ser discutivo (por motivos diferentes)
- Nos EUA
Na semana passada, o Politico, um site de notícias norte-americano divulgou um projeto de decisão do Supremo que, se adotado, significará um retrocesso de 50 anos nos Estados Unidos da América, quando cada estado era livre para proibir ou permitir o aborto. Esta informação causou uma forte movimentação na opinião pública. Recomendamos para leitura a análise de José Couto Nogueira para o SAPO24.
- Em Espanha
O país vizinho prepara-se para permitir que jovens a partir dos 16 anos possam abortar e sem autorização dos pais. De acordo com o diário espanhol El País, o Ministério da Igualdade de Espanha confirmou que o projeto-lei do Governo será avaliado em Conselho de Ministros na próxima terça-feira
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