“Metade da nossa história estivemos associados a China. Fomos os primeiros a chegar e os últimos a sair e esse período de 500 anos de contacto com a China foi caracterizado por uma convivência pragmática e não pela via da força. Isso fez toda a diferença quando negociámos o processo de transição”, sublinhou o especialista, em entrevista à Lusa.

O processo foi longo – 12 anos – e complicado, mas teve um final feliz, considerou.

“Portugal esteve muito bem porque conseguiu preservar o que é a Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) a nível de direitos, liberdades e garantias e questões relacionadas com a nacionalidade, entre outras, que ficaram enquadradas na declaração conjunta assinada pelos dois países entre 1987, e têm sido “respeitadas pela China”.

Mas antes, foi necessária a reaproximação por via diplomática. O novo regime comunista chinês chegou ao poder em 1949, mas Portugal demorou 30 anos a reconhecer a República Popular Da China.

Salazar “foi sempre contra” o reconhecimento de Pequim, embora alguns ministros dos Negócios Estrangeiros, entre os quais Franco Nogueira o tenham proposto, “por uma questão pragmática que passava sobretudo por Macau”. Mas isso veio a acontecer depois do 25 de abril e os momentos conturbados que atravessavam os dois países levaram a um impasse de alguns anos.

Quer Portugal quer a China viviam um período de “ebulição interna” e a China “queria perceber o rumo que a política interna portuguesa levava”, comenta o investigador.

Em Portugal, após o Período Revolucionário Em Curso (PREC), a situação política era conturbada com a instabilidade governativa resultar numa sucessão de quatro governos entre 1976 e 1979.

Ao mesmo tempo, a China ressentia-se do fim da revolução cultural (1975) e da morte de Mao Tse Tung (1976) enquanto se desenhava a ascensão de uma nova liderança que culminou com a chegada ao poder de Deng Xiaoping, marcada pela abertura da China ao mundo e um programa de modernização que se estende até à atualidade.

A publicação de uma nova constituição, em 1976, em que Macau passa a ser definido como um território sob administração portuguesa foi um momento decisivo para resolver a questão.

Finalmente, a 8 de fevereiro de 1979, os embaixadores António Coimbra Martins e Han Kenhua assinam, em Paris, a ata que formalizou o entendimento entre os dois governos e o reatar das relações diplomáticas entre Lisboa e Pequim.

O reconhecimento recíproco dos dois Estados foi possível graças a alguns fatores que favoreceram a aproximação: a vontade reformista de Deng Xiaoping e o pragmatismo de Portugal, que queria resolver a questão de Macau.

“O território servia de ponte e tínhamos toda a conveniência”, notou Luís Cunha, acrescentando que “sempre houve relações informais usando Macau como ponte”.

Para o investigador e autor de diversos livros sobre a China, a questão foi bem resolvida: “conseguimos salvaguardar a questão da nacionalidade e uma série de liberdades e garantias de que Macau desfruta até hoje”.

Luís Cunha distingue dois períodos nas relações entre os dois países: os primeiros 20 anos, marcados por Macau, e a partir de dezembro de 1999, centrado nas relações económicas e política, sobretudo desde a crise financeira de 2011.

“Penso que temos tido uma cooperação excelente, além de que a China alinha com Portugal na visão do multilateralismo e na visão para a reforma das Nações Unidas”, adiantou.

Entre outros pontos importantes no relacionamento político e diplomático dos últimos anos destacou o apoio dado pela China à eleição do secretário geral da ONU, António Guterres, e de António Vitorino para a Organização Internacional para as Migrações, mas também o papel de Portugal na internacionalização do renminbi (divisa chinesa).

Portugal “vai ser o primeiro país europeu a emitir ‘panda bonds’ (obrigações chinesas) e é membro fundador do banco asiático de investimento em infraestruturas que vai apoiar o programa Uma Faixa, Uma Rota” (projeto chinês que prevê um investimento de 900 mil milhões de dólares em infraestruturas), disse o especialista do Instituto do Oriente.

Uma questão de diferenciação

Carlos Gaspar, antigo conselheiro de Mário Soares, que fez parte da delegação que assinou a declaração conjunta sino-portuguesa sobre a questão de Macau em 1987, recorda as dificuldades colocadas pelo lado chinês, cujos diplomatas eram pouco experientes e “extremamente rígidos em termos hierárquicos”, nas negociações.

“Foi sempre difícil introduzir fatores de diferenciação entre Hong Kong e Macau”, afirmou, em entrevista à Lusa, sublinhando que a delegação portuguesa queria negociar um acordo “com tudo o que estava na declaração conjunta” sino-britânica relativa a Hong e duas questões adicionais: garantir a nacionalidade portuguesa para os chineses de Macau e fixar uma data de transferência diferente da de Hong Kong.

A delegação, chefiada pelo embaixador Rui Medina incluía ainda o embaixador João de Deus Ramos (que tinha aberto a embaixada em Pequim após o estabelecimento das relações diplomáticas com a República Popular da China em 1979) e Henrique de Jesus, que tinha sido nomeado pelo primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva.

Em causa estava a negociação do tratado que estabelecia que Macau era um território chinês sob administração portuguesa e que a transferência de poder para a República Popular da China (RPC) se efetuaria a 20 de dezembro de 1999. O tratado foi assinado a 13 de abril de 1987 (Declaração Conjunta Sino-Portuguesa sobre a Questão de Macau).

Tanto Portugal como a China “precisavam que as coisas corressem bem”, lembra Carlos Gaspar.

Em Portugal, a conjuntura era difícil, com um governo minoritário liderado por Cavaco Silva e Mário Soares a acabar o primeiro ano do seu primeiro mandato presidencial.

“Era muito importante que as negociações corressem bem do ponto de vista político e que fossem reconhecidas como um sucesso", mas a comitiva portuguesa não queria "dar a entender à parte chinesa que existia esse empenho porque é a pior posição negocial possível”, contou o agora investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

Mas os chineses sentiam ainda uma pressão maior: com um congresso agendado para esse ano, o secretário-geral do partido comunista queria poder anunciar que “Hong Kong e Macau se reuniriam à pátria-mãe até ao fim do século”.

Essa urgência, “explica provavelmente” que Portugal conseguisse garantir a nacionalidade portuguesa e outras questões como a das liberdades, direitos e garantias, o estatuto político e institucional e a liberdade religiosa e de culto.

“A partir da altura em que a parte chinesa percebeu que os acordos não iam ser iguais, não só nestas questões fundamentais, mas também noutras questões importantes, foi possível, penosamente, avançar até se alcançarem os termos da declaração conjunta”, destacou.

Portugal queria também demarcar-se da data da declaração sino-britânica.

“A data de Hong Kong era definida pelo termo dos acordos de arrendamento relativos aos Novos Territórios que tinham completado a colónia de Hong Kong no fim do século XIX, era uma data sino-britânica. O que a parte portuguesa disse à parte chinesa foi que todas as datas eram boas, exceto uma que não tinha nada a ver com as relações entre Portugal e a China”, recordou.

Portugal propôs então que a data fosse o final do século XX.

Carlos Gaspar salienta que foi “um acordo difícil para Portugal, pois tratava-se de ceder um território português”, procurando fazê-lo “nos termos mais corretos num contexto enquadrado pela declaração sino-britânica” que definiu os termos da devolução de Hong Kong à China.

“A partir do momento em que há um acordo entre o Reino Unido e a China sobre Hong Kong ficou claro para a diplomacia portuguesa que Macau era a seguir. Não havia qualquer ilusão sobre essa matéria”, comentou.

A integração de Macau na República Popular da China “era um objetivo da política de reunificação” chinesa, enunciada reiteradamente desde a sua fundação, e o compromisso para resolver foi uma condição “sine qua non” para o estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países em fevereiro de 1979.

Esta posição dizia respeito a Macau, Portugal e China, mas teve também consequências para Hong Kong, deixando “uma porta aberta no terreno diplomático para se iniciar o processo de reunificação da China que era um dos objetivos fundamentais do programa de modernização que Deng Xiaoping tinha anunciado em dezembro de 1978”, explicou Carlos Gaspar.