Nota da Autora

(...)

Estava decidida desde o início que este livro não se tornaria um manual de «instruções» para distúrbios alimentares. Por essa razão, resolvi omitir quaisquer pormenores referentes a peso, contagem de calorias e estatísticas de saúde. Não os acho importantes ou necessários para contar esta história e qualquer impulso para incluir esses detalhes numa conversa relacionada  com distúrbios alimentares é, de facto, a voz do distúrbio alimentar, que quer provocar horror e temor, para ser identificado por uma série de números e estatísticas e para distrair o público-alvo das questões mais profundas. Iria ainda mais longe dizendo que qualquer publicação ou livro que revele o peso e a contagem de calorias de uma pessoa com um distúrbio alimentar não serve os melhores interesses do leitor e eu, pessoalmente, evitá-los-ia. Temos de deixar de nos entregar tão completamente às mãos dos distúrbios alimentares medindo a doença e a saúde das pessoas pelos números numa escala. Isto é uma ideia que defendo. Há menções a alimentos específicos, ao conceito de «alimentos seguros» e «alimentos a recear» e a descrições de formas de comer, mas tentei mantê-las vagas e só incluí esses detalhes quando eram relevantes para contar a história. Mais uma vez, espero que usem o vosso discernimento e saltem qualquer parte que possa desencadear algo negativo ao lê-la.

Mudando de assunto, gostaria de referir que todos os nomes e características identificadoras de médicos, enfermeiros, pessoal hospitalar e outros jovens que encontrei nos hospitais e nas clínicas foram alterados para lhes proteger a privacidade. Ao hospital e à clínica que frequentei foram dados pseudónimos. Todas as histórias aqui contadas são verdadeiras, mas, algumas vezes, atribuí deliberadamente um determinado episódio ou momento a uma pessoa diferente. Isso foi feito para reforçar a privacidade. Esforcei-me ao máximo por contar a história cronologicamente, mas, como verão, a estrada para a recuperação é uma estrada difícil de seguir e houve algumas ocasiões em que fez sentido narrativo alterar a cronologia dos acontecimentos, embora isso só tenha sido feito um par de vezes.

Em última análise, trata-se de uma história da escolha da criatividade, do amor e de uma perspetiva de vida positiva. Por isso, prometo que, por muito negra que ela possa ficar por vezes, não vos vou deixar nesse sítio. Espero que ao submergir os leitores na minha escuridão, quando realmente parecia que a minha situação era desesperada, esta história vos inspire a encontrar a coragem, a visão e a determinação para confrontar os vossos demónios. Mas, mais do que tudo, espero que esta história vos ajude a encontrar o caminho iluminado para fora da vossa própria escuridão.

1

–O que é violação? – pergunto esganiçadamente do sítio ondeestou sentada no chão, virando e esticando o pescoço para espreitar a minha Mãe.

Parece o tipo de assunto que justifica olhar a minha Mãe nos olhos e escrutinar-lhe cuidadosamente as microexpressões.

– Hum? – solta ela.

Tem uma expressão como que petrificada, os olhos muito abertos fixos no ecrã da televisão, enquanto as mãos passam distraidamente por cima de uma fronha na tábua de engomar.

– Violação – articulo eu claramente, enquanto o pivô do noticiário prossegue num monólogo sombriamente monótono. – O que é que ele quer dizer com isso ao certo?

Vejo os olhos dela a saltar rapidamente para o meu Pai, recostado na poltrona, mas o olhar dele está resolutamente fixo na TV, a boca apertada numa linha severa. Vai ter de ser ela a resolver esta.

– Ahhh...

Pondera cuidadosamente, voltando a passar a roupa, mas depois responde sem rodeios:

– É quando um homem força uma mulher a fazer sexo com ele.

As mãos param-me no ar e umas quantas contas que estou a enfiar num fio caem no chão à minha frente. Não é possível negar que a minha Mãe acabou de pronunciar uma palavra rara e picante, uma palavra que não é geralmente dita dentro das quatro paredes da nossa sala de estar. Essa presença repentina e chocante sente-se no silêncio dos meus pais, um silêncio que está a rebentar com a tensão de coisas não ditas. O ferro de engomar solta uma exalação sensual e gutural.

Livro: "O Oposto da Caça às Borboletas"

Autor: Evanna Lynch

Editora: Casa das Letras

Data de Lançamento: Sessão de autógrafos com Evanna Lynch no sábado, dia 27 de maio, às 15h00, na Praça LeYa da Feira do Livro de Lisboa. O livro chega às livrarias a 30 de maio

Preço: € 17,50

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Vejo que a minha Mãe está a evitar firmemente o meu olhar, mas a palavra «sexo» acendeu uma faísca na sala e eu sei que tenho de atacar antes que ela desapareça e voltemos todos a cair na nossa inércia confortável.

– E porque é que ele havia de querer fazer isso? – pergunto, sem conseguir disfarçar a excitação na voz.

A expressão carrancuda do meu Pai salta para mim por baixo das sobrancelhas grossas e depois volta para a televisão. Provavelmente, vai fingir que está a dormir dentro de instantes. A minha Mãe parece ansiosa e profundamente desconfortável enquanto se esforça para explicar os motivos interiores de um violador típico a uma rapariga de 10 anos.

– Bem, é porque... suponho eu... ele quer tanto a mulher que resolve simplesmente... tomá-la.

Faz uma careta enquanto põe o ferro em pé e começa a dobrar a fronha da almofada.

– E a mulher não quer? – pressiono-a, o fio das contas esticado entre as mãos, a atenção extasiada com o desconforto da minha Mãe.

– Bem, não, ela não quer... é isso que é uma violação. A mulher não quer.

Franze o nariz enquanto estende a fronha dobrada em cima da pilha de roupa passada e lhe dá uns toquezinhos.

– Não é muito bonito – resume ela e depois puxa de uma blusa da escola da pilha da roupa para passar, começando pelas mangas.

– O PRIMEIRO-MINISTRO DA IRLANDA ANUNCIOU QUE HAVERÁ UM REFERENDO... – berra o pivô, interrompendo-me rudemente a espiral de pensamentos, altura em que vejo o meu Pai a premir com força o botão do controlo do som.

Chiuu! – diz para a sala, os óculos a brilhar. – Quero ouvir isto.

Olho disfarçadamente para a minha Mãe, que agora está a trabalhar serenamente no colarinho, todos os vestígios de sórdidas palavras sexuais desaparecidos da cara. Aparentemente, volto para o meu trabalho com as contas, em que uma fadazinha perfeita está a tomar forma, mas a minha mente permanece teimosamente na violação. Não é muito bonito, penso, confusa. Corto um bocado novo de arame e começo a fazer uma asa, enfiando três contas de sementes iridescentes e prendendo-as num ponto. A avaliação da violação por parte da minha Mãe não bate certo com a minha compreensão da mecânica das relações sexuais. Tudo no contexto desta conversa sugere que a violação é uma coisa que não deve ser ambicionada: uma coisa tenebrosa, inqualificável, grave. Uma coisa tematicamente semelhante ao sexo, mas pior. Revolvo as palavras e imagens de sexo não solicitado na mente enquanto teço outra fila de contas que cintilam com reflexos do arco-íris. Quer tanto... a mulher... que resolve simplesmente... tomá-la. Uau!, penso. Tão lisonjeador! Como será sermos tão lindas, tão atraentes, tão irresistivelmente desejáveis que uma pessoa não consegue impedir-se de nos ter! Fabuloso, penso invejosamente, tentando imaginar essas mulheres miticamente intoxicantes cujos corpos transformam os homens em ladrões de sexo babados. Não conseguia compreender a reação dos meus pais à menção de violação – a expressão de angústia perturbada que perpassara pela cara da minha Mãe, juntamente com uma sugestão inconfundível de reprovação, como se o pivô a tivesse implicado, irrefletidamente, neste assunto demasiado sórdido; a rigidez repentina dos braços cruzados do meu Pai enquanto olhava fixamente e de olhos esbugalhados para o ecrã da televisão, o queixo a parecer que se escondia no colarinho com a repugnância –, mas a linguagem corporal deles e o facto de isto aparecer nas notícias nacionais diziam-me que a violação era grave. A polícia andava à procura de um homem de cerca de 25 anos, tinha dito o pivô, que violara uma professora, não identificada, uma noite, em casa dela. Tinha-o descrito com os mesmos tons sóbrios aplicados a outros crimes violentos, tornando claro que a violação era ilegal. Eu conseguia imaginar a chatice que seria aproveitarem-se de nós quando não estávamos à espera e fazíamos calmamente umas torradas com feijão numa noite de aulas. Conseguia perceber que até podia ser desagradável. Mas pecaminoso? Ilegal? A minha compreensão dos pormenores logísticos mais subtis do sexo era, sem dúvida, limitada – não tinha tido desejo de enfiar a mente nos buracos de minhocas dos instintos mais perversos e mais baixos da humanidade e a minha curiosidade tinha ficado satisfeita com uma compreensão dos aspetos básicos –, mas até eu tinha ouvido dizer que o sexo era uma coisa que todos os adultos queriam e procuravam, uma coisa natural, uma coisa inevitável, uma coisa que era possivelmente – alegadamente – até agradável. Não tínhamos todos chegado aqui, muitos de nós por acidente, por um ato de sexo? Mas, para fazer de advogado do diabo, a minha mente passou rapidamente em revista uma série de homens que eu não gostaria que se aproveitassem de mim. O rapaz com olhos de carneiro mal morto que se sentava ao meu lado na sala de aula, que tinha sempre uma ranhoca de um verde tóxico a pingar da narina que ficava mais perto do meu lugar. O rapaz campónio sardento que silvava explicitamente ameaças violentas por trás da pilha dos livros, detalhando como ia atropelar os meus gatos com a ceifeira-debulhadora do pai. Não, obrigada. As gavinhas da minha mente serpentearam mesmo até à imagem de um vizinho mais velho, com pelos nas narinas, que eu imaginava que tinha uma espécie de massa densa, coberta de musgo, em vez de um corpo nu por baixo das camisolas de lã sem mangas e das calças bem passadas. Reprimi um arrepio. Preferiria, sem a menor dúvida, ser deixada sozinha. Mas mesmo com o mau hálito, o fedor almiscarado a homem e a corpulência sufocante, não conseguia evitar uma onda de compaixão magnânima para com aqueles pobres e patéticos espécimes de homens, aplacada como me encontrava pelo sentimento preponderante de estar, acima de tudo, lisonjeada por esse hipotético desejo febril. A ideia de que alguém podia desejar e admirar tanto a nossa carne que cometeria um ato criminoso era impossível de compreender e perguntei-me até que ponto teríamos de ser especiais para sermos assim tão desejadas. E, afinal, o sexo não era também conhecido como «fazer amor»? Ninguém se magoava a sério, pois não? Se não há estragos, não há problema. A solução mais simples não seria limitarmo-nos a deitar-mo-nos para trás e aceitar o amor? Ignorar o insulto e aceitar o cumprimento? Havia mais qualquer coisa intrigante neste conceito novo e interessante de violação e desejos sexuais incontroláveis: algo que a mulher da notícia parecia ter e que aquele homem claramente não tinha. Algo que o corpo feminino tinha que levava os homens a um frenesim selvagem e primitivo; algo tão precioso e raro que, com ele, a mulher tinha uma aura de algo maior do que o seu sexo ou a sua carne ou a sua beleza: tinha poder.

***

Mais tarde, nessa noite, estou sentada na entrada de casa da minha professora de piano, os trabalhos de casa de Religião e Moral abertos no colo, a mente a fervilhar com visões escandalosas de violação. A minha irmã mais velha está a martelar obedientemente as sonatas do Nível 6 na sala ao lado. Está um nível à minha frente e toca peças vertiginosamente complexas com tempos inescrutáveis e um número incalculável de notas extras enfiadas nos compassos. Chego sempre lá um ano mais tarde, com ela a passar-me o livro das canções, agora levemente amarelado e amarrotado, e aprendo as mesmas peças que ela dominara – mas, por qualquer motivo, na altura em que as aprendo, já não soam tão impressionantes, ou mesmo tão difíceis. Ela hesita e engana-se muito menos do que eu fizera meia hora antes e agora ouço-a a acabar a peça até ao fim da frase e o trinar abafado do elogio que a minha professora lhe dá. A minha irmã pratica muito mais vezes do que eu, mas também tem mais talento natural, o que a predispõe a praticar mais e a mim, menos. Suspiro, frustrada, e forço a mente a concentrar-se apenas nos meus trabalhos de casa de Religião e Moral, nos meus trabalhos de casa de Religião e Moral, nos meus trabalhos de casa de Religião e Moral, mas a única coisa em que consigo pensar é em violação, violação, violação. Se, como dizia a lenda, todos os homens que se casam têm sexo e se, como a minha professora explicava, não têm sexo até se casarem... todos eles querem violar durante o resto do tempo? Todos os homens não casados são... violadores? Estão todos a arfar sequiosamente e em segredo perante a tentadora e insuportável sensualidade da mulher?

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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No Evangelho segundo São Mateus, pergunta o meu compêndio, por que razão ninguém se aproximava do leproso?

Possivelmente, por ser um violador?, responde a minha cabeça. Sendo um homem solteiro com uma doença que lhe comia a carne em que ninguém quereria tocar, quanto mais dormir com ele, parece inevitável que também se viesse a tornar um violador – e, tendo por base os meus estudos sobre o catolicismo até à data, isso seria ainda pior que a lepra. Jesus era... um violador?, atreve-se a minha mente a questionar. Vieram-me à cabeça imagens das Estações da Via-Sacra na nossa igreja local, onde mulheres chorosas e encapuzadas se enrolavam pesarosamente aos pés de um Jesus escassamente vestido. Mas depois penso no quanto o meu Pai admira Jesus e em como se encolhe repugnado à mera menção de sexo, e à natureza incongruente de um Jesus a ter sexo. Não, penso, é impossível, é por isso que ele é Jesus.

A minha mente está a trabalhar a grande velocidade, atribuindo rapidamente os pecados dos homens a esta peça vital do puzzle da vida, previamente desconhecida. De repente, parece-me que terminar os trabalhos de casa sem mencionar a violação é uma tarefa impossível.

Nesse momento, como se estivesse a escutar o meu raciocínio, a televisão na cozinha faz-se ouvir com a mesma história fatídica. Passa das 21h (ir para a cama cedo não é um conceito que a minha família compreenda, por isso, sim, sem problema, aulas de piano até às 21h numa noite de escola), por isso, claro, o noticiário da RTE2 [Raidió Teilifís Éireann, gaélico para Rádio e Televisão Irlandesas] está a dar outra vez. É uma coisa que têm de compreender sobre a cultura irlandesa: as notícias da RTE estão sempre a dar. A vida diária é construída à volta dos noticiários da RTE. O jantar é servido depois do noticiário das 18h e os trabalhos de casa fazem-se antes do noticiário das 21h. «Isto é desesperante», dizia a minha Mãe quase diariamente enquanto via as notícias das 18h, a mão direita parada a meio da ação de cortar cenouras, a mão esquerda a apertar distraidamente o peito. «Terrível. Sim. Sim», concordava o meu Pai, assentindo solenemente num coro perfeito com os pais do país inteiro a propósito da história de uma mulher de meia-idade que pegou fogo à casa com os três filhos a dormir lá dentro. E, embora possam parecer cada vez mais consternados e horrorizados com cada notícia deprimente, embora tenham visto as mesmas histórias deprimentes três horas antes e nada tivesse melhorado entretanto, permitam-me que vos garanta que eles adoram a porra das notícias. Fá-los sentirem-se simultaneamente gratos e envergonhados com a vida humilde e confortável que levam. Acho que até os faz sentir que estão a fazer o bem – essas pessoas bondosas, caridosas e virtuosas sentam-se ao fim de um longo dia de trabalho e submetem-se estoicamente a todo o tipo de horrores da vida real que estão a acontecer na vida de estranhos, em vez de se descontraírem e saborearem demasiado as suas noites, como autênticos hedonistas ímpios. Na Irlanda, podemos ter sempre a certeza de que quando estamos a passar por um período penoso na vida, há, sempre, um mar de pessoas sentadas em poltronas, espalhadas por toda a nação, que estão tão torturadas pela culpa e pela vergonha de terem uma vida agradável que tentarão arcar fisicamente com o peso do nosso trauma pessoal. O nosso sofrimento nunca é em vão na Irlanda; é quase como se estivéssemos a prestar um serviço.

Estou sentada muito quieta, quase sem respirar, tentando coligir mais informações sobre a história da violação que o noticiário das 18h possa ter deixado passar, quando a porta da cozinha se abre com um estalido. Aparece um prato de bolachas, seguido pela Sheila, a mãe da minha professora de piano.

– Olá, querida – arrulha a Sheila enquanto eu investigo rapidamente a seleção de bolachas, planeando mentalmente qual vou comer: bolachas recheadas de creme pasteleiro, de chocolate e bolachas digestivas simples, uma seleção humilde, mas satisfatória.

A Sheila vem muitas vezes ter comigo ao meu banco da entrada, entre as lições, para uma conversazinha, questionando-me sobre a escola e os exames de piano, embora as bolachas sejam uma regalia rara.

– Queres uma bolacha? – pergunta-me, oferecendo-me o prato.

Tento a sorte, agarrando desastradamente numa bolacha de chocolate e noutra de creme ao mesmo tempo. Penso que o fiz disfarçadamente até a Sheila soltar um risinho divertido.

– Como é que vai a escola, querida? – pergunta-me simpaticamente.

– Pois, bem.

– E que tal correu a tua lição?

– Foi boa – respondo, esperando que ela não me tivesse ouvido a tocar enquanto passava pelo corredor.

– E estás a fazer os trabalhos de casa, linda menina.

Os olhos iluminaram-se quando caíram no meu caderno de cópias de Religião e Moral.

– Foste tu que fizeste isto? – pergunta, agarrando no caderno e apontando para os desenhos a lápis de cor de Jesus e dos discípulos.

– Sim.

Encolho os ombros, silenciosamente satisfeita pelo tom de admiração exagerada dela. Tinha trabalhado de maneira especialmente cuidadosamente para dar a cada um dos 12 discípulos de Jesus uma túnica com um padrão diferente, acentuando-lhes a individualidade. São um grupo espantosamente cheio de caráter, que espero me irão fazer ganhar uma estrela dourada no dia seguinte, na escola. A Sheila folheia o meu caderno, soltando uns «oohs» e uns «aahs» perante as minhas interpretações artísticas do Novo Testamento, e isso dá-me oportunidade de a admirar, com o cabelo creme e fofo como algodão-doce e as camisolas de lã que lhe chegam aos joelhos. Anda pelos 75, talvez uns 80 em boa forma. Na cozinha, o Jack, o marido tímido da Sheila, está colado às notícias, o brilho amarelo da lâmpada do teto a refletir-se na tola cintilante. Olho para a nuca dele e questiono-me se também terá a mente a pulsar com a história escandalosa das notícias. Volto a olhar para a Sheila, a minha cabeça a zunir enquanto contemplo este casal doce e são. Se faziam sexo, teria ele, numa ou noutra altura, querido apenas uma quantidade sensata de sexo, uma quantidade procriadora? A Sheila devolve-me o caderno e torna a chamar-me uma boa menina. Retribuo-lhe o sorriso, embora circunspectamente, enquanto ela volta para a cozinha, fechando a porta, e sinto-me mais confusa do que nunca com estes sórdidos segredos adultos a introduzirem-se sorrateiramente na minha vida quotidiana como vermes da terra húmida.

E depois – não consigo evitá-lo –, mais tarde, nessa noite, examino a relação dos meus pais, na cozinha enquanto mastigo os restos de um assado. Avalio o meu Pai enquanto ele lê o jornal e mastiga ruidosamente uma grande mão-cheia de amêndoas. Não – elimino-o facilmente. Não há ali paixão suficiente para qualquer onda de fervor sexual – está tudo canalizado para a equipa dele de hurling [Desporto nacional irlandês de origem celta, semelhante ao hóquei]. Jesus e o meu Pai não são compatíveis com aquelas tendências carnais. Mas as outras pessoas todas... questiono-me em relação a todas.

O que seria preciso para sermos tão desejadas que alguém não pudesse deixar de nos ter? Nessa noite, antes de ir para a cama, escrutino a carne ao espelho da casa de banho, esse espelho que já viu demasiado de mim e da minha família, todos esses desagradáveis momentos privados, testemunhados e refletidos. Mas agora tenho 10 anos e, pela primeira vez, estou a olhar para lá das calças de ganga com estrelas brilhantes que implorei à minha Mãe que me comprasse, ou das pesadonas pulseiras da amizade com cores de rebuçados que me enchem os pulsos. Estou cor-de-rosa e manchada, não branca, não muito diferente de um porco. Tenho marcas de compressão do cós das calças de ganga, que me fazem lembrar as linhas de um presunto cozido enrolado com uma guita. Sou assim a modos que sem formas, nada de especial, mas em geral sou funcional, adequada. O meu corpo nunca me impediu de fazer fosse o que fosse que tivesse decido fazer. Mas ser desejada? Penso nas mulheres cuja carne é tão desejável que em vez de terem de fazer uma exibição atraente e vistosa dos seus melhores trunfos, têm de evitar as atenções dos homens, que as querem tanto que isso é na realidade uma inconveniência, um estorvo na vida delas. Talvez, um dia, alguém me deseje assim tão ferozmente, penso sonhadoramente, rodando e posando como uma modelo. Mas é então que paro e me fixo numa erupção alérgica, com um aspeto feio, que me cobre os braços e parece-me absurdo, absurdo imaginar que alguém alguma vez me fosse querer, mesmo só um bocadinho, mesmo uma quantidade legal. Voltando a olhar para a minha forma indefinida, nem sequer tenho a certeza de que eu me quisesse ter – mas a verdade é que nunca tinha tido de querer. O meu corpo tinha estado sempre ali. Tinha usado, habitado e saltado no meu corpo a vida inteira, aparentemente de forma inconsciente, porque, em última análise, sou só... eu. Até àquele momento, não tinha percebido que podia vê-lo objetivamente, como uma unidade independente, que podia escolher amar nem odiar, rejeitar ou aceitar. E embora, nesse momento, não o ame ou odeie, porque é apenas o que é, quanto mais olho, mais ridículo parece que outra pessoa pudesse alguma vez admirar e querer este veículo de carne. Tão estúpido, penso, deixando-me de poses e dando uma última vista de olhos rápida ao corpo. O meu não é, simplesmente, o tipo de corpo que as pessoas querem. Mas não interessa, penso, ignorando o assunto facilmente e apagando a luz da casa de banho. Não interessa que não seja bonita, que ninguém vá alguma vez querer apossar-se, ter ou mesmo pedir emprestado o meu corpo. Não preciso de ser desejada! E claro que não preciso de um homem! Tenho sonhos muito maiores e muito mais bonitos para mim e para este corpo perfeitamente mediano que me foi, compreendo agora, impingido.

***

Não interessava que eu não possuísse nenhuma beleza própria, porque o meu corpo era um canal para a beleza! Beleza e criatividade. A energia dele fluía através de mim e dos meus dedos como água da chuva. Eu era, como o resto da minha família se referia a mim, quando procurava aquele traço definidor indistinto da terceira filha, «a criança artística». Tinha olhos que se deslocavam esfomeadamente à procura de pormenores belos, cintilantes e intrincados e mãos que agarravam lápis de cores, marcadores, lápis, flores, fitas, tecidos estampados, contas e páginas em branco em que pudesse despejar as imagens que me enchiam a mente. Fosse o que fosse que me despertasse a atenção – as princesas dos contos de fadas, as sombras cintilantes para os olhos que as minhas primas adolescentes usavam ou uma rosa de origâmi, impossivelmente intrincada, num livro de artes e artesanato –, tinha necessidade de lhe tocar, de o ver, de o sentir, de o capturar. E estava feliz desde que estivesse a fazer desenhos ou a vestir bonecas ou a construir coisas minúsculas e delicadas de papel e contas. Era uma energia curiosa e irrequieta, uma necessidade quase compulsiva de criar e embelezar o que me rodeava e não estava muito preocupada se o produto dessas explorações era bom ou não; era apenas a maneira como eu aparecia no mundo todos os dias: a maneira como eu existia. Também me mantinha ocupada. Estava sempre à procura de materiais novos, preciosos e improváveis, que me ajudassem a realizar o meu último projeto artístico. Limpadores de cachimbos. Collants. Calças de ganga. Joias. A bobina escorregadia do interior de uma cassete. Muitas caixas de sapatos. Os rolos de papel higiénico vazios eram uma entidade particularmente preciosa na nossa casa. Uma devota da Art Attack, uma publicação icónica para crianças artistas dos anos 90, somava o número de rolos de papel higiénico vazios necessários para as minhas obras escolhidas no meu diário e depois anunciava, ao jantar, que toda a gente tinha de fazer o favor de usar muito liberalmente o papel higiénico nesse mês e que também devíamos usar os nossos modos mais encantadores com os nossos professores, em troca dos rolos de papel higiénico vazios da sala de aula – isto se quiséssemos ter o projeto da Casa Assombrada das Bonecas Fantasmagóricas pronto a tempo do Halloween. Ficava a rondar nas sombras do nosso corredor quando alguém fazia uma visita à casa de banho e, a seguir, entrava rápida e travessamente para verificar o estado dos rolos. Era um bom augúrio quando via o meu Pai a entrar na casa de banho com um jornal. Às vezes, teria vendido o cabelo por rolos de papel higiénico que pura e simplesmente nunca chegavam. Porra!, pensei algumas semanas mais tarde quando a minha Mãe trouxe para casa o número mais recente da Art Attack e percebi que ia precisar de outros treze rolos de papel higiénico para construir o meu imponente e majestoso suporte para joias. Quem era este Neil Buchanan com um fornecimento inesgotável de rolos de papel higiénico? Era evidente que uma carreira nas artes era para os ricos.

No entanto, fora a pobreza em rolos de papel, a vida era boa desde que pudesse passar o tempo a fazer coisas bonitas com a minha mente, as minhas mãos e as minhas palavras. Fazer coisas era a forma como comunicava com o mundo à minha volta. Embora ficasse envergonhada ao pé de estranhos, reservada mesmo, esquecia-me de mim quando tinha um projeto, tornando-me mandona e superfocada, vendo-me como uma espécie de criança-autora que tinha uma história culturalmente importante e extremamente significativa para realizar/pintar/iluminar/escrever/representar. No Natal, toda a gente recebia um cartão feito por mim. Depois havia os cartões de parabéns, os cartões da Páscoa e os cartões de quando não havia nenhuma ocasião – só para ter uma coisa para fazer com as mãos. Tudo era uma oportunidade para a criatividade. Nada era deixado no estado original: tudo podia ser sempre valorizado, realçado e feito brilhar. As calças de ganga eram transformadas em sacos para pôr ao ombro, collants cor de carne em bonecas, jornais em tigelas de fruta de papier-mâché e, todos os Natais, eram pintados ainda mais rolos de papel higiénico para se transformarem em Jesus, Maria e José na caixa de sapatos-manjedoura.

Também havia aquela sensação de como, depois de passar três horas na cama, a cabeça dobrada sobre a caixa de contas, uma criaturinha desengonçada adquiria forma e era concretizada membro a membro, uma perna fininha, uma asa arco-íris, depois outra, e dois olhinhos de contas brilhantes, até que, finalmente, era um pássaro magnífico! De como me sentia ao descer as escadas a correr para ir ter com a minha Mãe ao lugar habitual dela ao pé do fogão, os cotovelos erguidos a dirigir um coro de fumegantes panelas desirmanadas, e depositar-lhe a criaturinha brilhante, já a começar a curvar-se e a pender tristemente em alguns sítios – não como as figuras no livro – no centro da palma da mão. De como a minha pequena oferta lhe iluminava a cara toda.

– Lindo, querida! Fizeste isto sozinha? É espantoso! Acho que ainda é mais bonito do que o que fizeste a semana passada!

Empoleirava-a na cómoda, fosse um pássaro de contas, um cartão, uma boneca, uma fada, e ali ficava instalada, feita desastradamente, a encaracolar e a enrugar-se sem graça, mas ainda linda. Mais beleza que eu tinha trazido ao mundo. A beleza que eu fazia enchia as paredes da cozinha, as prateleiras das lareiras e as cómodas e fazia a minha Mãe sorrir radiosamente.

Lembro-me muito da minha infância da posição estratégica dos cantos. Onde quer que houvesse um canto sossegado na sala, na cozinha, nos quartos, reclamava-o, instalando-me numa mesinha de trabalho ou num pufe, esvaziando vagarosamente a caixa de sapatos das contas, das tintas, dos brilhos e da cola, peça a peça. Passava aí o resto da tarde, debruçada sobre padrões, cadernos de notas ou um castelo de papier-mâché titubeante. Era um trabalho intrincado, absorvente, que abafava o que me rodeava, a prática guinchante do violino da parte da minha irmã mais velha ou a minha segunda irmã e o meu irmão mais novo a correrem pela casa com tacos de hurling e bolas de pingue-pongue. Na verdade, nunca pensava para além do meu projeto da altura; as minhas criações exigiam toda a atenção e ancoravam-me ao momento presente. Era uma forma idílica de passar a infância, a minha musa interior livre, assim que os trabalhos de casa estavam feitos, para me lançar descontroladamente às resmas intermináveis de papel em branco fornecido pela minha mecenas mais leal e paciente: a minha Mãe. Desde que ela me fornecesse fio, contas, tintas e, claro, rolos de papel higiénico – o que sempre fez –, eu não me preocupava com o amanhã ou com os dias seguintes. Não sabia quem era ou o que era ou por que razão existia, mas isso era o que estava mais longe das minhas preocupações quando estava a trabalhar num projeto. Se ao menos o mundo me tivesse deixado em paz, a tecer, a garatujar e a costurar no meu cantinho de trabalhos manuais. Mas, gradualmente, fui reparando que as pessoas queriam saber quem eu era, a artista enigmática por trás dos cartões de Natal e dos pássaros de contas. Todavia, a questão era mesmo essa. Ela não era enigmática, ou interessante, ou memorável ou particularmente encantadora. Não era, certamente, uma conversadora, mas elas insistiam. Quem és? De que é que gostas? O que é que vais fazer com a tua vida?, perguntavam. Olhavam para mim, expectantes, como se eu tivesse as respostas.

– E o que é que queres ser quando fores grande? – perguntou-me, um dia, na minha primeira infância, uma amiga da minha Mãe quando eu estava laboriosamente a garatujar num livro para colorir da Disney.

Levantei os olhos para aquela cara inquisidora, enrolando um braço protetor à volta de uma imagem dos sete anões. A Clíodhna, a melhor amiga da minha Mãe, tinha pestanas transparentes e sobrancelhas invisíveis. Nunca deixava que os três filhos comessem açúcar, nem sequer uma ocasional tablete Penguin, e, em casa dela, a hora de ir para a cama era às impensáveis e prematuras 20h30, uma hora a que a geração mais nova da nossa casa estava habitualmente ainda a brincar ruidosamente no quintal das traseiras. Considerava a pele rosada e as sobrancelhas sobrenaturalmente pálidas dela como prova de uma virtude sem paralelo.

– Hum? – sondou ela gentilmente, enquanto eu continuava a olhar-lhe para as sobrancelhas.

Era uma pergunta fácil quando as pessoas tinham começado a fazê-la. O que não queria eu ser! Tinha uma lista interminável, uma lista que aumentava de cada vez que lia um conto de fadas novo. Mas, com o objetivo de ser breve em situações sociais, tinha-a reduzido às minhas três mais profundas vocações na vida.

– Vou ser uma borboleta azul com motivos ou um gato com riscas cor-de-rosa ou um pónei branco com cabelo púrpura – respondi à Clíodhna com total sinceridade, continuando a pintar.

A minha Mãe soltou uma pequena gargalhada do sofá e, passado um instante de confusão, a Clíodhna juntou-se-lhe, rindo-se pouco à vontade.

– Ohhh! – exclamou. – Fabuloso! Vais estar muito ocupada!

Sim, pensei eu, vou estar. Estava contente por haver alguém que era capaz de compreender a total enormidade dos meus sonhos. Mas consigo dar conta do recado, pensei, sorrindo enquanto imaginava os meus cabelos cor de púrpura de pónei a desfraldarem-se atrás de mim e a ondularem ao vento enquanto eu galopava alegremente pela vastidão dos campos, os meus flancos poderosos a impelirem-me por um prado deslumbrante de miosótis silvestres.

A Clíodhna e a minha Mãe continuaram a rir despreocupadamente no sofá, com as chávenas de chá e os biscoitos. Era a reação habitual quando partilhava os meus nobres planos de vida e, na verdade, não a conseguia compreender. Inveja, provavelmente. Não tinham planeado meticulosamente ou pensado bem nas suas próprias metamorfoses e tinham acabado apenas como meras senhoras sentadas em sofás, a tomar uma bebida turva e sem sabor em vez de dançar – sem filhos, sem empregos, despreocupadas – no meio de flores e por cima de canteiros de couves – um lindo floco com asinhas azul-pervinca, a ser levado para onde quer que o vento quisesse. Tinham cabelos que só variavam dentro do espetro das cores dos montes de folhas lamacentas, do castanho baço ao castanho-avermelhado e, às vezes, durante uma curta quinzena de verão, de um louro pálido – mas nunca de guloseimas cor-de-rosa, ou de púrpura-violeta. Não tinham pensado com criatividade suficiente sobre o potencial que tinham e agora estavam presas naqueles corpos de senhoras. Eu tinha imensa pena delas.

Mas, à medida que ia crescendo, as pessoas já não se riam tão alegremente com os meus sonhos. Um dia, uns tempos mais tarde, a minha família veio visitar-nos e fiz a vontade a toda a gente recitando novamente a este novo público as minhas futuras ambições felinas. A minha Mãe sorriu carinhosamente enquanto os meus primos soltavam risadinhas lá atrás, mas um pequeno franzir de sobrancelhas vincou-lhe a testa enquanto me explicava que, na realidade, eu não podia ser um gato nem um pónei nem uma borboleta. Eu era uma menina e isso queria dizer que ia crescer e ser uma mulher. Mulher. Deixei que a palavra passasse rápida e inconsequentemente por cima de mim, como um cheiro desagradável. As lagartas cresciam e tornavam-se borboletas, explicou ela. Os cavalinhos tornavam-se póneis e os gatinhos tornavam-se gatos – e nenhum desses gatos, lamentavelmente, era cor-de-rosa.

– Mas porquê?

Continuava a não conseguir ver qual era o problema. Quem é que pode dizer com toda a certeza que um deles não podia transformar-se noutra coisa qualquer se realmente lhe apetecesse?, pensei. Que estúpida lei da natureza decretava que temos todos de viver umas vidas tão aborrecidas e segregadas?

– Isso é só ciência – respondeu a minha Mãe. – É apenas a nossa biologia; não é uma coisa que possamos escolher.

Decidi, naquele momento, que não gostava da ciência. Impunha restrições brutais e intransigentes à minha imaginação, a que não se podia escapar. Agarrei-me com força aos meus sonhos durante algum tempo, tornando-me mais defensora deles quanto mais os adultos insistiam na ciência, mas, lentamente, comecei a preocupar-me dado que se nenhuma rapariga humana no planeta e na história da evolução humana se tinha alguma vez desenvolvido e transformado em qualquer coisa para lá do âmbito do Homo sapiens, era improvável que eu viesse a ser a primeira. Aparentemente, dos 8,7 milhões de formas de vida na Terra, eu tinha nascido na mais corriqueira delas todas. Por fim, a realidade instalou-se e parei de responder às perguntas deles, aborrecida com essa insistência e de coração partido pelo meu futuro sem pelo, sem magia e sem luta. O que é que vais ser?, perguntavam desconhecidos de toda a espécie. Não sei. Encolhia os ombros evasivamente, desconfortavelmente. Queriam saber que tipo de mulher eu iria ser: uma professora, uma cantora, uma advogada, uma astronauta? Podes ser qualquer uma dessas coisas! Sorriam radiosamente, exibindo expressões de enorme entusiasmo que davam a entender que se consideravam muito generosos. Às vezes, resmungava que ia ser «atriz» para que se calassem, porque talvez isso fosse a alternativa menos trágica aos meus planos previamente estabelecidos. As atrizes podiam ser árvores, gatos, bules, princesas. Mas não de verdade... Não interessava o tipo de aparência que ela pudesse ter e era aí que toda a gente me interpretava mal: eu não queria ser mulher nenhuma. Queria ser uma sereia. Queria ser uma Jigglypuff [Personagem do universo Pokémon]. Queria ser um desenho animado, feito à mão, de uma fada. Queria ser um pónei cantor com cabelo de arco-íris mágico. Até queria ser uma rapariga com calças de ganga cintilantes e um top de borboleta. O que não conseguia era ver-me transformada numa mulher.

Mulheres. Ainda não as odiava. Admirava-as. Respeitava-as imenso. As mulheres tornavam uma divisão segura. Tinham saias amplas e compridas atrás das quais me podia esconder dos estranhos e pescoços quentes e perfumados onde me podia aninhar. Tinham algibeiras que chocalhavam com a promessa de interiores quentes de automóveis e cozinhas cheias do aroma familiar de empadão de carne. Usavam rabos de cavalo bem penteados e saltos de sapatos cónicos que clicavam elegantemente quando se deslocavam. Eram as guardiãs da beleza e da cor – jardins de rosas escondidos, estúdios de maquilhagem, lojas de bolos e delicatessen – e possuíam um radar interno que as guiava para esses enclaves carregados de tesouros. Onde quer que houvesse mulheres, os homens rondavam cinzenta e desfocadamente em segundo plano, envoltos em pesadas pregas de tecido sem formas que lhes embrulhavam os corpos entroncados em ângulos retos lisos e insípidos. E onde quer que fossem as mulheres deixavam vestígios. Marquinhas esborratadas de lábios em copos de vinhos, levemente manchadas em tonalidades róseas de vermelho ou cor-de-rosa. Lenços de pescoço de seda e a cheirar a citrinos pendurados nas costas das cadeiras. Deliciosos embrulhos de papel castanho de comida que tinham feito com as próprias mãos. Misteriosos invólucros amarelos discretamente enfiados nos cantos dos caixotes do lixo das casas de banho. Bilhetes escritos à mão numa letra cursiva e difícil, com instruções claras e beijos. Onde quer que fossem, as mulheres tornavam a sua presença sentida e vista. As mulheres não eram dadas a sentar-se nos cantos, a defletir monossilabicamente as perguntas dos transeuntes e a ver a vida passar, esperando que ninguém desse por elas. As mulheres eram o centro de tudo, dirigindo o espetáculo, alimentando toda a gente, fazendo várias coisas ao mesmo tempo. As mulheres tinham opiniões e peitos grandes e ocupavam muito espaço com ambos. Mas embora toda a gente me dissesse que me ia tornar uma, inevitavelmente e em breve, eu não acreditava, sentindo que tinha muito mais em comum com as bonecas inanimadas com que enchia a cama à noite, ou com a gata malhada que dormia pacífica e passivamente aos pés dela. Mas estudava as mulheres do meu canto, fascinada, achando-as interessantes, poderosas, grandes. Distantes.

Não obstante, a pergunta de quem eu era persistia e comecei a fazê-la também. Quem era eu quando saía do meu canto das artes? O que é que podia dizer? O que é que podia oferecer? Sentia-me atraída por raparigas ruidosas, raparigas seguras delas próprias. Sabiam exatamente quem eram e enchiam todo o silêncio com isso, enquanto eu ficava ali sentada, paralisada, vazia, desejando que alguém me desse um guião. Também era atraída por raparigas bonitas. Gostava de passar o tempo à volta delas. Tornavam o ar mais agradável. Sabia que não era uma delas, mas não lhes queria mal por isso. Nessa altura, já sabia que não valia a pena questionar o meu lugar no mundo; que tal como algumas de nós éramos crianças rechonchudas quando nascíamos e outras gatas esguias e ágeis, havia raparigas bonitas e havia raparigas com cabelos fracos e sem vida e caras totalmente desinteressantes. Era tudo cientificamente decidido. Por isso, tentava não entrar em conflito com elas, dava-lhes o espaço e o respeito que a beleza delas exigia e, às vezes, quando me deixavam, deliciava-me com o brilho delas.

Um mês de julho, os meus pais enviaram-me para um acampamento de verão para aprender badminton, jogar basebol e entrar em lutas com balões de água. Sei que fui para esse acampamento de verão cinco dias por semana, durante 15 dias num ano, mas não me lembro de nada. Todavia, lembro-me bem da rapariga linda que se sentava no meu autocarro na viagem diária de regresso a casa e lembro-me de como, durante esse verão, porque só havia outros cinco miúdos – um grupo de rapazes turbulentos e uma rapariga mais nova que nos atormentava para lhe darmos listas das nossas coisas preferidas antes de se voltar para trás e cair abruptamente no mais absoluto silêncio –, se tornou a minha melhor amiga. Tinha uma testa alta e um nariz arrebitado, tipo duende. O cabelo grosso e de um preto asa de corvo estava muito bem preso num rabo de cavalo brilhante que tinha uma vitalidade irrealista. E todas as vezes que a via, parecia sempre que estava a chupar um qualquer rebuçado duro, que lhe contraía os lábios de uma maneira que lhe dava uma eterna expressão de presunção traquina. Também era amistosa e conversadora. Sentei-me no banco à frente dela, timidamente, aceitando que fosse ela a começar a conversa, se o quisesse fazer, e ela assim fez. Conversámos sobre o acampamento e a escola. Sobre os nossos hobbies e as atividades que mais desejávamos fazer em cada dia. Senti a sensação calorosa de ser escolhida como companhia por alguém que era clara e visivelmente maravilhosa. No segundo dia, fui cuidadosa, tímida outra vez, esperando que ela recomeçasse a conversa ou decidisse rescindir a simpatia. Mas continuava ainda mais conversadora e falámos do nosso amor pelo Pokémon e pela Sabrina, a Bruxinha Adolescente. Ao terceiro dia, avancei decididamente pela coxia do autocarro e sentei-me ao lado dela. Conversámos animadamente e fizemos algumas trocas de cartas Pokémon, trocas essas que foram melhores para ela, mas que fiz com prazer. No fim das duas semanas, despedimo-nos e perguntei-lhe ansiosamente se tencionava começar a ter lições de ténis no clube local, coisa pela qual tinha mostrado um interesse passageiro. Ela respondeu com um vago «talvez» e um encolher de ombros evasivo, mas agarrei-me a essa esperança tola de poder cimentar a nossa amizade. Sendo crianças da província nos anos 90, não conhecíamos nada sobre o costume moderno de «nos mantermos em contacto». Depois do acampamento de verão, limitámo-nos a voltar para os nossos respetivos cantos sonolentos da terra, trocando os amigos novos pelas bonecas velhas.

Supliquei desesperadamente aos meus pais que me inscrevessem nas aulas de ténis, citando um interesse recente em me «manter saudável» e em «dar-me mais» e a minha Mãe, espantada, consentiu. A minha irmã mais velha, a Emily, já fazia parte do clube de ténis, por isso acompanhei-a. Durante algumas semanas, tentei gostar de ténis, mas a minha amiga nova nunca apareceu. No fim do período, continuava a falhar a maioria das bolas e os meus antebraços paralisavam em protesto depois de apenas alguns minutos de jogo. A Emily servia a uma velocidade terrível por cima da rede e, em casa, estudava os movimentos dos jogadores preferidos com o máximo detalhe forense. É indiferente estar aqui ou não, concluí, achando que a minha nova amiga, provavelmente, já me teria esquecido há muito.

Um ano mais tarde, voltei ao mesmo acampamento de verão. Contive a respiração ao entrar no autocarro, pensando que ela não ia lá estar, mas que poderia estar. Estava sentada exatamente no mesmo sítio, a meio do autocarro, do lado direito, e a olhar pela janela. Ainda usava aquele glorioso rabo de cavalo brilhante, mas agora tinha duas porções de cabelo, completamente lisas e tesas, deliberadamente colocadas a enquadrar-lhe cada lado da cara e tinha trocado os rebuçados duros por pastilha elástica, o maxilar a trabalhar mecanicamente. Avancei acanhadamente pela coxia do autocarro, de certo modo a desejar que ela não estivesse lá, porque já tinha passado um ano e a sensação de vazio tinha-me desgastado ainda mais e sabia que não era possível que ela se pudesse lembrar de mim, e, simplesmente, já não tinha a energia para encontrar palavras para me apresentar. Mas quando estava prestes a sentar-me num lugar perto da parte da frente do autocarro, ela olhou para cima e apanhou-me a olhar para ela, por isso, tive de me aproximar.

– Olá... – disse eu, estupidamente, tropeçando pela coxia com as minhas duas mochilas a balançarem-me loucamente nas ancas.

– Sou... sou a Evanna... costumávamos conversar no autocarro... sobre o Pokémon e... e... ténis – terminei fracamente, procurando desesperadamente palavras que me definissem e que não estavam simplesmente lá, qualquer coisa a que me pudesse agarrar para ela se conseguir lembrar de mim.

Estava quase a começar a descrever o casaco de ganga cor-de-rosa vivo que costumava usar e que era bastante mais distintivo do que a minha personalidade quando ela se riu, aparentemente divertida, e me disse:

– Sim, sei quem és. Lembro-me.

Estava a mastigar a pastilha e a sorrir, divertida, como se eu devesse ser um bocadinho palerma.

– Oh! – soltei, desconcertada, deixando-me cair no lugar à frente dela. – Sim. Fixe.

Conversámos sobre o que tínhamos feito no acampamento nesse dia, sobre o pavor que sentíamos de voltar para a escola e sobre os nossos programas de televisão preferidos. Continuava amistosa e doce, mas já não via o Pokémon e a pastilha elástica dava-lhe um ar de sofisticação intimidante, o ar de alguém que ia prosperar e tornar-se mais confiante à medida que crescia. Passado um bocado, calámo-nos ambas. Ela olhava sonhadoramente pela janela, o perfil de uma perfeição digna de um desenho animado. Fiquei sentada, a olhar para o descanso de cabeça à minha frente, a mente a trabalhar, a questionar-se, a procurar desesperadamente quem eu era, a procurar a parte de mim de que ela se podia ter lembrado.