Entre 1917 e 1918, mais de 50 mil homens partiram para as trincheiras da Frente Ocidental da I Guerra Mundial. Morreram milhares, outros foram feitos prisioneiros. Da lista negra fazem parte 259 expedicionários portugueses, número resultante de uma nova contagem feita a partir de fundos documentais que agora são conhecidos com a publicação de “Prisioneiros portugueses da Primeira Guerra Mundial”, da autoria de Maria José Oliveira. De A a Z, do soldado de infantaria ao soldado da artilharia, da Alemanha à Polónia, estes homens morreram em campos de internamento e de trabalhos forçados.
A base do livro é a tese de mestrado de Maria José Oliveira, a autora, licenciada em Jornalismo e mestre em História Contemporânea. Mas tudo começa com a história do seu avô, António Maria Rodrigues Lourenço. Conhecemo-la logo no início da obra. Dado como desaparecido em combate, não constava da lista de mortos do Corpo Expedicionário Português (CEP). “Morrera em batalha”, comunicaram mais tarde. Fez-se o luto e um funeral sem corpo presente. Mas António foi “devolvido ao mundo” e a Buarcos, onde vivia a família. Mas nem todos regressaram, 259 exatamente.
“O meu avô foi feito prisioneiro em La Lys [França] a 9 de abril de 1918”. Quando escreveu a tese, Maria José não conseguiu descobrir muita coisa, “consegui descobrir algumas coisas, como o regimento onde estava, mas não muito mais do que isso”.
“Quando regressou da guerra falava pouco”, conta, e “as memórias que o meu pai tem são poucas”. Quando o avô morreu - “ele ainda viveu até bastante tarde” - tinha nove anos. “Com essa idade não ia fazer perguntas sobre a guerra, era uma criança”, justifica. As perguntas acabou por fazer com o tempo e trouxe à história algumas respostas.
Sabia que queria trabalhar na área da I República, mas não sobre qual a vertente. Foi então incentivada pelo historiador Filipe Ribeiro de Meneses, que já havia entrevistado, a estudar o tema.
Quando começou “não havia bibliografia nenhuma, havia o artigo de uma revista dos anos 90, na 'Penélope', escrito pelo professor e antigo ministro da Defesa, Nuno Severiano Teixeira. E depois havia livros dos anos 20 e 30 escritos unicamente por oficiais que publicaram nessa altura os seus diários de prisão”. Essa literatura memorialística, “de meia dúzia de homens”, narra experiências “completamente diferentes” da maioria dos homens, dos praças. “A grande experiência do cativeiro nunca tinha sido contada”, remata. Ainda assim, mesmo a dimensão dos oficiais não era conhecida: “fui encontrá-los todos na Biblioteca da Liga dos Combatentes”.
“Quando a [editora] Saída de Emergência me contactou para fazer um livro sobre os presos de guerra, apresentei-lhes uma contraproposta: não vou pegar na tese, vou fazer uma investigação mais profunda”. E assim fez. Foi quando encontrou as cartas. “Não as tinha encontrado na investigação para a tese”.
O livro não seria possível sem os fundos documentais do Arquivo Militar, do Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Cruz Vermelha.
Na historiografia nacional o tema nunca foi muito abordado. Mas, repara, “Portugal não é um caso único”. O tema dos prisioneiros da primeira guerra "é um tema secundário”. Não há uma uma justificação definitiva que o explique, apenas possibilidades. E a autora avança com algumas. Inglaterra, país que também tem uma vasta historiografia sobre a primeira guerra, “deixou esse tema na sombra”. A autora dá como exemplo uma hipótese levantada por uma historiadora da London School of Economics (LSE), Heather Jones, que não pode, no entanto, ser aplicada ao caso nacional. A académica britânica explica que “o número de presos da II Guerra foi tão grande, com os campos de concentração, por exemplo, que acabou por ensombrar os prisioneiros da primeira”.
“O episódio da entrada na I Guerra acabou por ser muito abafado durante o Estado Novo porque era um episódio humilhante”, prossegue na explicação. “Mas também humilhante para os Republicanos, para a chamada geração da oposição democrática”. Os presos da primeira guerra são um episódio da nossa história que só começa a ser estudado, e pouco, “já muito depois, mas muito depois mesmo, do 25 de Abril. Ainda assim, é um tema abafado pela Guerra Colonial, pela proximidade temporal, essencialmente”, remata. “Há ainda muita coisa por estudar”.
Mas quem são estes prisioneiros? É possível traçar um perfil sociodemográfico destes homens? “Eu sou uma grande apologista da divulgação popular da história, e não podia estar a escrever um livro que chateasse o leitor com uma análise sociológica. A minha ideia não era essa, nunca foi”. A resposta é rápida: “Os leitores vão ter uma perceção de quem foram estes homens, estes jovens, que foram para a guerra”.
Sem traçar um perfil, deixa alguns apontamentos: “os prisioneiros mortos têm quase todos menos de 30 anos, mas a grande maioria que foi para a frente europeia tem entre 20-25. Vêm essencialmente de meios rurais, e a grande maioria é analfabeta”. Para além disso, “iam quase todos mal preparados para a guerra de trincheiras e para as grandes novidades, em termos militares, que a I Guerra Mundial trouxe”.
Pode ser uma consideração depreciativa, mas não deixa de ser verdadeira. Diz a autora que “havia publicistas que, na altura, diziam que o CEP significava ‘carneiros exportados de Portugal'”.
“Na verdade, o que aconteceu ali foi uma decisão política”, como escreveu também no livro, “tomada sem qualquer justificação ao país, sem qualquer argumento sólido ou consulta popular. Foi tomada a decisão de levar pessoas para uma máquina de morte, foi carne para canhão”.
Apesar da abordagem historiográfica ser parca, não quer dizer que não existam interessados no tema. “Através de uma página do Facebook, chamada Corpo Expedicionário Português, fiquei a saber que há imensas pessoas curiosas e autodidatas que têm feito imenso trabalho nas suas terras, sobre a participação das pessoas daquelas terras na I Guerra”. São estudiosos por curiosidade, que partilham entre si informação e fazem um trabalho local muito importante.
Voltando às cartas, a grande maioria das publicadas no livro nunca chegaram ao destinatário. “Elas eram censuradas, pela censura militar, a meio caminho. Deparei-me com essas cartas dos familiares – pais, mães, irmãos, irmãs, mulheres – para os presos e dos presos para os familiares – mulheres, namoradas, amantes”, explica. “Foram cartas que tive de abrir, estavam fechadas desde 1917-18. Como estavam seladas e confiscadas, tive de pedir permissão para as abrir. Quase que tive de fazer um curso de paleografia instantâneo”, brinca.
A grafia e o vocabulário eram bastante difíceis, confessa, mas importa não esquecer que “estamos a falar de pessoas que mal sabiam ler e escrever, e que escreviam como falavam”. A leitura das cartas “acaba por ser algo extremamente comovente”, sobretudo as das mães para os filhos. “Algumas escreviam as cartas e não sabiam que os filhos já estavam mortos”.
É um livro sobre a memória e sobre a sua preservação. Era, por isso, interessante que algumas famílias reconhecessem nas cartas os seus antepassados. A autora revela que fez a transcrição na íntegra e tentou colocar os nomes completos dos prisioneiros, “não só por uma questão de rigor”, mas para que a família possa reconhecer nas cartas os seus.
Desde o lançamento, ainda não houve um caso, que tivesse conhecimento, de pessoas que tivessem encontrado nas cartas os seus familiares. Mas Maria José tem visto em caixas de comentários de artigos ou das redes sociais “pessoas que falam nos seus antepassados, que sabem que estiveram presos mas não sabem onde estiveram”.
“Tendo em conta que lanço o livro numa altura em que não há prisioneiros vivos”, contrariamente ao que acontecia se o tivesse feito nos anos 80 e 90, “a memória é a única forma de fazer alguma justiça a estas pessoas que foram muito esquecidas”, defende. E foram esquecidas duplamente: “durante o tempo em que estiveram presas e silenciada pela história”.
“Escrever sobre eles, evocando-os, dando-lhes nome, foi uma forma de fazer justiça”, conclui.
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