O Presidente da Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP), Miguel Ricou, considera que o programa SuperNanny, “não se trata de uma intervenção psicológica”, uma vez que a própria exposição mediática perverte a dinâmica profissional. “Não é sequer equacionável imaginar uma relação profissional no mundo da psicologia sem privacidade. A intervenção psicológica é uma relação que se baseia na confiança entre o cliente e o psicólogo. É difícil haver uma relação de confiança quando há uma exposição pública sobre aquilo que se está a passar com o cliente”, afirma em entrevista ao SAPO24.

A polémica em torno do programa ontem estreado na televisão portuguesa estalou depois da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) ter considerado hoje “existir um elevado risco” de o programa da SIC 'Supernanny' [super ama] “violar os direitos das crianças”, nomeadamente o direito à reserva da vida privada. Mais tarde, a Ordem dos Psicólogos veio confirmar a recepção de queixas, que estão a ser analisadas pelo Conselho Jurisdicional da Ordem e que podem dar origem a um processo contra Teresa Paula Marques, o rosto deste programa. Confrontada com esta polémica a psicóloga clínica disse não estar em SuperNanny como psicóloga, remetendo explicações adicionais para a SIC e para a produtora Warner Bros. TV Portugal. Em resposta à polémica disse hoje que o programa "Supernanny" cumpre a lei e que não é exibicionista, seguindo um formato exibido em vários países "onde os padrões de proteção dos direitos dos menores não se revelam menos exigentes” do que em Portugal. Ainda no âmbito desta polémica, a ERC confirmou igualmente a recepção de queixas, e o Instituto de Apoio à Criança e UNICEF criticaram o programa da SIC.

Apesar de apenas ter estreado este domingo, o facto é que a produtora de SuperNanny havia pedido um parecer, há mais de um ano, à Ordem dos Psicólogos sobre a prática de psicologia nos média, nomeadamente em programas no formato de reality show. O parecer, redigido pelo próprio Miguel Ricou manifesta a importância da privacidade no exercício da atividade de apoio psicológico.

Mais de um ano depois deste parecer, questionado pelo SAPO24, Ricou volta a reiterar a posição já assumida pela Ordem: “a relação entre o psicólogo e o cliente é muito importante. Se as pessoas estão expostas não pode haver confiança. Como é que eu sei que aquilo que as pessoas me dizem não reflete a realidade da exposição?", questiona. "Se eu tiver a falar com alguém sobre uma coisa que me é íntima e souber que outro alguém está a ouvir à porta, vou falar à vontade? Não, quanto mais quando é exposto na televisão”.

“Qual é o objetivo do programa, ajudar as pessoas? Então não se precisava de filmar. Arranjavam-se outras soluções", adianta. Todavia, escusando-se a aprofundar comentários, julgamentos ou críticas ao programa que estreou ontem na SIC, Miguel Ricou faz questão de sublinhar aquilo que são os pontos fundamentais do parecer da Ordem dos Psicólogos publicado em finais de 2015.

“A psicologia não é um conjunto de receitas que se pode dar às pessoas e que funciona genericamente com todas”

"Desde sempre que o nosso código deontológico [dos psicólogos] específica que não se fala e não se expõem casos particulares. A ideia de levar um cliente, seja ele qual for, a um contexto mediático não tem sentido para nós [na atividade de apoio psicológico], porque evidentemente estamos a sujeitá-lo a uma circunstância que é nociva. Até pode ser inócuo para algumas pessoas, mas vantagens não traz. Eu trabalho é para bem do meu próprio cliente, por isso não proponho nada que não seja bom para ele”.

No caso do programa SuperNanny, que envolve especificamente crianças, Miguel Ricou diz que não se pode determinar com rigor as consequências desta exposição mediática, contudo, assume que “há naturalmente muitas evidências de coisas que podem correr mal”. “Toda a gente, sejam colegas ou desconhecidos, vão estar cientes das várias dimensões da criança. Claro que questionamos se isto não acarreta o risco de marcar as crianças, de as estigmatizar”, acrescenta.

O Presidente da Comissão de Ética da Ordem reforça ainda a disciplinaridade e rigor do código deontológico: “se eu pegasse num cliente e fosse com ele à televisão teria naturalmente um processo, seria julgado e condenado por isso”.

Famílias multiproblemáticas requerem equipas multidisciplinares

Miguel Ricou salienta ao SAPO24 que há abordagens específicas para a boa conduta da prática psicológica dependendo de cada caso. “A intervenção psicológica faz-se em settings apropriados, num contexto apropriado, com dimensões de privacidade adequadas, com objetivos adequados”, explica.

“Os casos deste nível [como os abordados no programa SuperNanny] - a que chamamos famílias multiproblemáticas - fazem-se com equipas multidisciplinares”.

Além disso, sublinha o profissional, não existem receitas gerais na psicologia, uma vez que as pessoas também não são iguais. Para Miguel Ricou é problemático as pessoas poderem acreditar que os exemplos que “ali se observam podem funcionar de forma genérica com toda a gente”.

“Estamos a promover falsas soluções, um bocadinho do mundo das receitas, em que educar alguém ou trabalhar com alguém tem uma forma certa e tipificada de se fazer, e as coisas não funcionam dessa maneira”. “A psicologia não é um conjunto de receitas que se pode dar às pessoas e que funciona genericamente com todas”, acrescenta. “Isto [a psicologia] não é feito de receitas simples, temos é de ensinar as pessoas a ter confiança na sua capacidade de decidir e nas suas competências. Não é dizer faça desta maneira. Não se trata de um tratamento que a gente faz e resolve”.

E o que leva as pessoas a aceitar participar neste tipo de programas, questionamos. Miguel Ricou salienta que os participantes têm, teoricamente, total liberdade de ação e de escolha, mas, na verdade, a sua vulnerabilidade condiciona as suas próprias decisões. “As pessoas aceitam [expor-se] mas é preciso que estejam perfeitamente conscientes de quais vão ser as consequências a longo prazo daquilo. Naturalmente, a vulnerabilidade provoca muitas vezes dificuldade em tomar decisões. Se as pessoas estiverem vulneráveis - e normalmente estão, por isso é que participam nestes programas - tem menos liberdade para conseguirem dizer ‘não, não quero’".

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