Os defensores da suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual acreditam que esta é a melhor forma de multiplicar os centros de produção e acabar com a desigualdade das vacinas, que faz com que países ricos imunizem grande parte da sua população enquanto alguns Estados pobres tenham acesso a pouquíssimas doses.
Na sexta-feira, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa reiterou que as vacinas "são um bem público". A África do Sul e a Índia apresentaram uma proposta sobre patentes à Organização Mundial do Comércio (OMC) e contam com o apoio de muitos países, ONGs e personalidades.
"Vamos lutar juntos contra o nacionalismo das vacinas e mostrar que a proteção da propriedade intelectual não deve prejudica vidas humanas", defendeu Ramaphosa em evento organizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Vencedores do Prémio Nobel e ex-chefes de Estado ou de Governo publicaram no passado dia 15 uma carta pública a pedir a suspensão temporária das patentes das vacinas contra a covid-19 e convidaram o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a apoiar a iniciativa.
A supressão da propriedade intelectual do imunizante é "uma etapa vital e necessária para acabar com a pandemia", consideram os 170 signatários da carta, que incluem ex-presidentes da França (François Hollande), da Libéria (Ellen Johnson Sirleaf) e o ex-primeiro-ministro britânico Gordon Brown.
"Estamos esperançosos com as informações de que a sua administração está a examinar uma suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual da OMC durante a pandemia, como solicitaram África do Sul e Índia", afirma o texto, também assinado por vencedores do Nobel, como Muhamad Yunus (Paz), Joseph Stiglitz (Economia) ou Françoise Barré-Sinoussi (Medicina).
Quase ao mesmo tempo, representantes da indústria farmacêutica de todo o mundo diziam à imprensa que esse não é o caminho certo a seguir, ao mesmo tempo em que asseguravam que estavam comprometidos em produzir o maior número possível de vacinas no menor tempo possível.
Isso "não nos daria as ferramentas necessárias para produzir mais doses de vacinas", declarou Thomas Cueni, presidente da Federação Internacional da Indústria Farmacêutica (IFPMA). O responsável ressalvou que 275 acordos de produção entre laboratórios, às vezes entre rivais, foram alcançados para atingir a meta de 10 mil milhões de doses até o final de 2021.
Todos os fabricantes insistem que o problema não é a propriedade intelectual, mas as barreiras alfandegárias ou a escassez de certos ingredientes e ferramentas, que podem interromper a produção.
"Fabricar vacinas não é apenas uma questão de patentes", destacou Sai Prasad, presidente da Developing Countries Vaccine Manifactures Network, que reúne laboratórios de países em desenvolvimento. "É um setor muito complexo, com ciência e processos de fabrico muito complicados (...) temos de ter muito cuidado para quem transferimos o conhecimento", explicou, principalmente devido aos padrões de segurança e qualidade.
"Não queremos fazer nada que possa prejudicar a confiança nas vacinas", insistiu Michelle McMurry-Heath, que preside a Organização de Inovação em Biotecnologia (BIO), que agrupa empresas de biotecnologia.
"Temos de reconhecer que há apenas um punhado de laboratórios no mundo que têm a experiência necessária e temos de concentrar os nossos esforços em permitir que eles tenham acesso aos ingredientes de que precisam para produzir o maior número de doses, o mais rápido possível", apontou.
Às vezes, algo tão trivial como a falta de sacos de plástico ou filtros pode atrapalhar. Noutras ocasiões, faltam os lipídios que servem para proteger o RNA mensageiro das vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna. Os fabricantes estimam que mais de cem ingredientes usados para fazer vacinas são difíceis de encontrar hoje.
Stéphane Bancel, chefe da Moderna, alertou quanto ao que considera ser os efeitos perversos que a transferência de tecnologia para fabricantes inexperientes poderia ter.
A Moderna, que era uma empresa relativamente modesta antes da covid-19, promete produzir 1 bilhão de doses de sua vacina e 1,4 bilhão no próximo ano.
"Tentar distribuir as escassas matérias-primas que temos atualmente para um número muito maior de fabricantes que não têm necessariamente a experiência para produzir vacinas ameaça o progresso que estamos a trilhar", explicou McMurry-Heath.
Dedicar recursos humanos à transferência de tecnologia e conhecimento - processos que levam meses - não teria praticamente nenhum impacto na produção de vacinas este ano "e diminuiria a nossa capacidade de produzir mais em 2021".
"Se desviarmos agora a pequena equipa de engenheiros que temos para fazer essas transferências", o impacto em 2021 "será imenso", alertou.
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