“Eles aproveitaram-se da minha inocência!”

“Bateram-me e durante uma semana não me deram de comer.”

“Tentou fugir e cortaram-lhe a língua.”

As frases são de histórias recolhidas no livro Tráficos de Seres Humanos – Textos e Testemunhos (ed. Cáritas, coordenação de António Silva Soares e prefácio do bispo de Santarém, D. José Traquina), apresentado em Lisboa a 28 de março.

Uma realidade que nos últimos anos, segundo informação da Interpol, aumentou seja no número de vítimas – cerca de 2,5 milhões identificadas e resgatadas, em todo o mundo, uns 200 milhões atingidos, segundo estimativas das organizações que trabalham no terreno e das Nações Unidas –, seja  no dinheiro ganho pelos traficantes, cuja soma “está cada vez mais próxima dos ganhos com o tráfico de drogas e de armas”.

Por isso é preciso recuperar a dimensão da “humanidade”, avisa o bispo de Santarém e presidente da Comissão Episcopal da Pastoral Social, no prefácio desta obra que inclui estudos, testemunhos, relatos e documentos, dramas e esperanças de quem conseguiu fugir e voltar a recuperar a sua vida.

Cláudia Pedra, da Network for Strategic and International Studies e autora de dois capítulos do livro, explica, em declarações ao 7MARGENS: “O crime de tráfico de seres humanos [TSH] é complexo e silencioso. Há diversos tipos de traficantes, diversos tipos de vítimas, diversos tipos de motivações e interesses, diversos tipos de clientes.” E acrescenta: “As pessoas trabalham ou em completa escravatura, sem receber um cêntimo, ou por valores irrisórios, por longas horas e em condições deploráveis.”

As vítimas de TSH são normalmente atraídas para trabalhos que criam ilusões fáceis pela sua sazonalidade, ou para trabalhos de modelos (pessoas com melhor aspecto, usadas frequentemente para prostituição), amas, domésticas, agricultura, apanha de fruta, pesca, hotéis, restaurantes e construção civil. Também há casos de não terem um emprego fixo e serem atraídas apenas pela ideia da “liberdade”.

Foi o caso de um jovem de um campo de refugiados de Cartum (Sudão), cujo testemunho se pode ler no livro: “Queríamos sair para os EUA, para o Canadá. Bem nos alertavam para não os seguirmos, mas nós achávamos que as pessoas que não queriam que fôssemos só nos diziam aquilo porque queriam que ficássemos no campo.”

As vítimas são de todas as classes sociais: apesar de muitas vezes serem atraídas para esta situação pessoas com vidas difíceis que veem nos convites dos criminosos uma saída – “Batiam-me em casa, o pai do meu filho violou-me, queria uma vida diferente”, conta uma das mulheres vítimas –, também há licenciados e pessoas com a vida supostamente resolvida, que entram no esquema. Neste caso, a maior partes das vezes as pessoas são atraídas pela Internet.

As pessoas traficadas são normalmente encaminhadas para exploração laboral – nesta categoria, em 2018, Portugal ficou em segundo lugar entre os 17 membros da União Europeia, com um total de 248 vítimas. Mas também há casos de servidão doméstica, prática de crimes, mendicidade, tráfico de órgãos, adoção ilegal e, mais comum, exploração sexual.

Números de uma realidade trágica
As últimas estatísticas sobre as vítimas dizem que 51% são mulheres, 20% são meninas, 21% são homens, 9% são meninos. A percentagem de homens está a aumentar.
Se olharmos a percentagem de crianças traficadas, com idade entre os poucos meses e os 18 anos, comparadas com o total das vítimas de tráfico, 64% das vítimas na África Subsariana são menores de idade. Na América Central essa percentagem é de 62%. Essas são as duas regiões do mundo onde o tráfico de menores é mais elevado (a nível mundial, o número é de 28%). Na Europa Oriental o TSH atinge 8% de pessoas, na Europa Central e Sudeste 26%, na Europa Ocidental e do Sul 25%, na Ásia 32% e na América do Sul 39%.
Oficialmente há pelo menos 21 milhões de pessoas traficadas no mundo. Desses, 1,2 milhões são crianças. Mas, como lembra Cláudia Pedra no livro, é bem provável que os números sejam bem maiores: as organizações não-governamentais no terreno calculam em 200 milhões o número de vítimas. Os números da ONU são apenas os de vítimas identificadas e que foram alvo de resgate.

A servidão doméstica é apontada no livro como um dos casos de TSH mais estranhos: trata-se de uma situação em que alguém mantém outro indivíduo preso 24 horas por dia completamente enclausurado sem água nem luz e com pouquíssima comida, sendo muitas vezes a vítima obrigada a alimentar-se no chão e a usar trela.

Com mais frequência, este destino dado aos traficados é praticado por diplomatas em cidades como Genebra, Bruxelas e Nova Iorque. Segundo estudos recentes, o tráfico humano diplomático faz 15 vítimas por ano, só nos EUA.

Neste tipo de situação, a explicação preponderante será a necessidade de dominação, enquanto nas restantes situações o móbil essencial é o dinheiro. Na maior parte dos casos, as pessoas são compradas por 40 euros e vendidas por 40 mil. Para além disso, lembra Cláudia Pedra, ao contrário da droga que é vendida uma só vez, as pessoas podem ser vendidas várias vezes. Por essa razão, vários narcotraficantes com anos de crime mudam para este “ramo de tráfico”.

A maior parte dos traficantes utilizam estratégias sofisticadas, criando, por exemplo, agências de recrutamento e emprego, agências de viagens, hotéis para melhor poderem explorar as vítimas e contas disfarçadas nas redes sociais. Outros aproveitam o facto de não existirem fronteiras terrestres na UE para trazer grupos de pessoas por múltiplos países.

Em alguns casos, esses exploradores chegam mesmo a usar o próprio caminho para extorquir a vítima, como lembra, num dos capítulos, a irmã espanhola Pura Gonzaléz, que trabalha em Lisboa com mulheres prostitutas e vítimas de tráfico: “Chegam da Nigéria em direção ao Mali. Depois atravessam o deserto em direção à Líbia. A cada passo têm de pagar mais para poderem ir em frente. Algumas morrem na rota África-Itália. O número dos que morrem no Mediterrâneo é o mesmo dos que morrem desde o seu país de origem até às costas da Líbia.” E acrescenta: “Nos desertos carregam as pessoas em camiões. Se alguém cai não param para os apanhar e acabam por morrer.”

Este crime não é apenas cometido por estranhos: a realidade mostra que cada vez mais pessoas vendem pessoas com quem têm uma relação próxima. É o caso de uma menina, na Austrália, da qual se desconhece o país de origem, mas que foi obrigada a casar com a conivência dos pais que a transportaram para ali e depois a abandonaram.

O método mais complexo é o “Girabóina”: alguém atrai outra pessoa para um falso namoro; meio ano depois, aproveitando-se da relação, convida a vítima para uma viagem e acaba a vendê-la noutro país.

Para a maior parte das pessoas, resta apenas fugir ou sucumbir à violência, como conta Andra, num dos testemunhos recolhidos no livro: “Explicaram-me que não iria trabalhar em hotel, mas sim na rua. Perguntei: o que tenho que fazer na rua? Eles responderam que teria de fazer o que todas as mulheres fazem na rua: sexo por dinheiro. Comecei a chorar e disse que não, que não ia fazer isso, que queria ir embora. Bateram-me e durante uma semana não me deram de comer. Passaram os dias e eu disse a mim mesma: ‘Andra, tens que ser mais esperta do que eles.’ E fiz-me amiga do demónio. Estive a trabalhar na rua durante três meses. Queria falar com a polícia mas era vigiada e controlada. Não me deixavam sozinha e não me permitiam que falasse com as pessoas. Fingi ser amiga da chefe do meu grupo. Enganava-a. Fui sua amiga até ao dia em que fugi com um homem.”

Há ainda quem tente fugir sozinha, como uma emigrante no Alentejo a quem, à terceira tentativa, “lhe foi cortada a língua”.

A irmã Pura Gonzaléz lembra, no entanto, que nem todas as vítimas têm a mesma sorte de Andra: “Um dia, uma prostituta explorada contou ao cliente ‘estou a ser traficada’, ao que o cliente responde: ‘Está bem, e o sexo quando começa?’” Há ainda quem tente fugir sozinha, como uma emigrante no Alentejo a quem, à terceira tentativa, “lhe foi cortada a língua”.

O medo de que as pessoas traficadas fujam é tal que, conta Cláudia Pedra, que, por exemplo, na zona transfronteiriça entre Portugal e Espanha já aconteceu por vezes haver 20 homens a violar uma mulher de forma violenta, de modo a meter-lhe medo e evitar que fuja. Para quem consegue escapar, ficam sempre as mazelas psicológicas. Recorda uma de duas irmãs romenas: “Foram meses horríveis. Três meses de pesadelos. Quem trabalha na rua fica sempre com sequelas, tornamo-nos loucas!”

Como resolver?

A solução deste problema passa também por este livro: seja através da abolição da cultura de descarte como é mencionado num capítulo consagrado às posições e iniciativas que o Papa Francisco tem tomado neste âmbito; seja através da reformulação do sistema de prova deste crime tão difícil no tráfico humano, como lembra Pedro Vaz Patto, jurista e presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz; ou através da atividade de inúmeras pessoas e instituições como as Irmãs Obladas, de que faz parte a irmã Pura Gonzaléz, que acolhem sobretudo mulheres nesta situação; ou exemplos como o do padre Abel Varzim, que trabalhou em Lisboa, na zona do Bairro Alto, entre 1948-1957. Mas, como menciona Cláudia Pedra, a grande mudança a operar é na “informação das massas que desconhecem o problema e que se enganam quando pensam que a escravatura acabou.

Autor: Fábio Carvalho