Na arte, como em todos os ramos do pensamento, há ciclos. Por vezes são imperceptíveis, desenvolvem-se discretamente e só se dá por eles à posteriori. Outras vezes têm um começo bombástico e as pessoas percebem imediatamente que estão perante algo de novo. É o caso da mudança ocorrida no jornalismo norte-americano, e que depois alastrou um pouco por todo o mundo, na década de 1960. E o homem que é considerado o pai, o inventor e o maior epítome dessa nova forma de reportar chamava-se Thomas Kennerly Wolfe Jr., ficou para a posteridade como Tom Wolfe e morreu nesta semana, aos 87 anos.

À falta de melhor nome, essa corrente ficou conhecida como New Journalism. Há várias maneiras de caracterizá-lo mas talvez a mais curta seja como jornalismo opinativo. Até então, vigorava a ideia de que uma reportagem deveria ser o mais imparcial possível. Na revista Time, por exemplo, fundada em 1923 por Henry Luce, o mesmo texto era reescrito por uma dúzia de jornalistas, numa tentativa de o tornar totalmente impessoal, despido de julgamentos de valor. Hoje sabemos que não era assim – a Time tinha uma opinião conservadora e nacionalista muito marcada. A imparcialidade não existe; mas pode ser um objectivo e pode-se tentar.

Não que o jornalismo opinativo não tivesse já vida, como ainda tem hoje, sob a forma de comentário ou colunismo – a coluna de opinião assinada e assumida. A forma mais perfeita de jornalismo opinativo tradicional é a da revista “The New Yorker”, fundada por 1925 por Harold Ross, e que até hoje prossegue com a mesma visão editorial. Mas havia uma certa contenção, um certo pudor, em ultrapassar uma seriedade que dá estatuto à opinião.

E talvez a questão não seja exactamente essa. A questão é que o jornalismo levava-se muito a sério, tanto quando pretendia ser imparcial, como quando era abertamente militante. Veja-se, por exemplo, os jornais portugueses até ao advento da censura do Estado Novo – isto é, desde a sua grande divulgação nos finais da monarquia até 1926. Usavam um vocabulário violento e não escondiam as suas preferências, mesmo nas “notícias”. Mas levavam-se a sério. Podiam fazer troça do adversário, mas nunca de si próprios, nem do seu modo de opinar.

Como relata Samantha Hallowell na revista digital “Odissey”: “Diz-se que o Novo Jornalismo se concentra mais na verdade do que nos factos, ao incluir a perspectiva pessoal do autor. Por isso foi muito criticado. Dizia-se que a reportagem devia ser objectiva para mostrar os factos e os números, deixando ao leitor as conclusões. Contudo, há acontecimentos que são mais fáceis de processar e avaliar se forem contados com a personalidade e as sentimentos do escritor. O Novo Jornalismo não só é feito com mais personalidade e emoção do que o jornalismo tradicional, como também tem elementos próprios da escrita de ficção: diálogos, desenvolvimento das personagens, pontos de vista pessoais, ambiente, e pormenores que apelam e envolvem os cinco sentidos.”

E Tom Wolfe é, reconhecidamente, o mestre desta arte. Colaborou para revistas como a já citada “Rolling Stone”, para a “New York”, “Harper’s”, “Esquire”. Foi ele que inventou expressões antológicas, a começar pela própria “Novo Jornalismo”. Mas também outras como “radical chic”, “a década do eu” e muitas outras que deram novo sentido à cultura da década. Do seu estilo próprio de vestir, sempre de branco e muito pomposo, dizia de si mesmo que era “neo-pretencioso”.

Além de artigos que ficaram para a História, como “The Electric Kool-Aid Acid Test” e “There Goes (Varoom! Varoom!) That Kandy-Kolored Tangerine-Flake Streamline Baby" (títulos intraduzíveis sem que algo se perca ...). Wolfe alcançou fama com dois livros em especial: “Os eleitos” (que deu origem ao filme de Philip Kaufman) e “A Fogueira das Vaidades” (que também gerou o filme do mesmo nome, de Brian de Palma). Ao todo escreveu nove livros de não ficção – reportagem, digamos assim – e quatro de ficção – histórias que podiam ser reportagens, poder-se-ia dizer. Ou seja, para ele a realidade e a ficção fazem parte do mesmo estado de espírito com que se pode ver o universo. William Buckley, num artigo na “National Review”, dizia mesmo que Wolfe “é provavelmente o escritor americano mais competente – quer dizer, consegue dizer mais com as palavras do que qualquer outro.”

Diz Arnold Hauser, na sua antológica “História social da Arte”, que o apogeu – e o começo da decadência – atinge-se quando surge a capacidade de fazer troça do que se faz. Ou seja, de não se levar a sério. É esse o momento em que o sentido do humor ultrapassa o sentido de missão, digamos assim.

Foi esse momento que o jornalismo atingiu na década de 1960 com vários inovadores, como Truman Capote, Hunter T. Thompson, Gay Talese, ou como Jann Wenner, editor da revista “Rolling Stone”. Fazer reportagem como se fosse ficção. Com opinião, mas uma opinião colorida, bem humorada, como se não levassem a sério nem o tema nem a si próprios. O objectivo era informar, mas também divertir e, sem pudor, influenciar.

O jornalismo está em crise, é o que se diz. A Internet está a acabar com os jornais e as revistas em papel e uma percentagem cada vez maior da informação vem de não profissionais, mas chega através das redes sociais. Talvez a tese de Arnold Hauser também se esteja a verificar aqui: o apogeu ocorreu com o Novo Jornalismo e Tom Wolfe. Como ele poderia ter dito, “raios partam, a evolução é inexorável!"