Advogada de carreira até 24 de fevereiro, data da invasão russa, e voluntária do centro de distribuição, Iulia, de cabelo apanhado e fato de treino, não pára quieta, entre ajudar a retirar bens das carrinhas, colocar nos bancos e em mesas no exterior do edifício ou a recolher pedidos de bens, como os de Nadia Fidski, uma professora reformada que precisa de medicamentos.

“Ninguém controla [o que se deixa ou se leva]. Estamos todos juntos nisto, todos a ajudar-nos”, diz Iulia à Lusa.

A poucos quilómetros, em Novi Petrivtsi, Moshchun ou Irpin ainda decorrem combates e os militares só deixam passar os habitantes locais que quiseram permanecer nas suas casas, sendo este um “ponto de recolha e entrega de coisas, porque muita gente veio de aldeias ocupadas pelos terroristas russos”, explica Iulia.

Sobre quem saiu da Ucrânia, Iulia tem palavras lacónicas — “eles é que sabem. Nós ficámos” — mas a prioridade é ajudar os mais carenciados que ficaram. O centro vive de doações de ONG e de cidadãos particulares. Cada pedido tenta ser atendido, como é o caso de Nadia.

“Fazemos um grande trabalho para todos nós, para defender e proteger a nossa população”, afirma Iulia, mulher de um elemento das brigadas de defesa territorial (um serviço civil militarizado de segurança e controlo do território) e mãe de um rapaz de dez anos.

A família é de Vyshorod e estão também a defender a cidade onde cresceram. “Eu só vou sair da Ucrânia para visitar outros países e outras culturas”, de resto “quero viver aqui, na minha pátria”.

Iulia está contente por falar com jornalistas estrangeiros para explicar porque é que o mundo tem de ajudar a Ucrânia. Mas esse sentimento não é comum e há sempre alguma desconfiança em relação à imprensa estrangeira. Há dois dias, num ‘checkpoint’, um carro com a indicação de “Press” foi intercetado com espiões russos, revelou um dos guardas, que não contou o que lhes aconteceu.

Em redor Vyshorod, os controlos são apertados. E a algumas dezenas metros de distância do centro, os militares têm barreiras fixas porque, para lá, há ainda combates numa zona urbana que a Ucrânia quer recuperar.

Nadia, que havia pedido instantes antes medicamentos, tem 65 anos é professora reformada de inglês e francês. Só não saiu da sua terra porque tem dores nas costas e um cão.

“Vim à procura de medicamentos para a diabetes e para as costas. Não consegui comprar na farmácia e vim aqui”, mas “disseram-me que haveria às 15:00 e vou voltar”, explica à Lusa.

O centro é “fantástico” porque ajuda os mais pobres e os mais idosos. “Há aqui muitos reformados, as pensões não são boas e isto é uma grande ajuda”, diz, pouco depois de ter visto as roupas que estavam expostas para qualquer um levar.

Entre os idosos e voluntários, subitamente, ouve-se uma palavra, “Vassiliy”, e várias expressões de pesar. Um dos médicos da cidade morreu quando estava a servir na frente de batalha.

Vassiliy “foi a melhor pessoa que já conheci”, diz Nadia Fidski, visivelmente emocionada.

Nascida em Solikamsk, junto aos Montes Urais, na Rússia profunda, Nadia, que vive na Ucrânia desde os 14 anos, não fala com a sua família por causa da guerra e teme não poder despedir-se da sua mãe, de 90 anos, que está doente.

“Tenho muitos familiares na Rússia”, mas “apenas uma das minhas irmãs consegue perceber este problema. Os outros dizem-me que nós estamos a lutar entre nós e que [os russos] estão a vir ajudar-nos”, refere.

“Deixei de falar com eles. É impossível falar com eles”, afirma, assumindo não compreende nem a guerra nem os motivos invocados pelo Moscovo, que já disse querer proteger os russófonos ucranianos.

Dantes, “isto era a União Soviética e podíamos mudar-nos de um lado para o outro. Vivi no Cazaquistão também durante uns tempos”, conta a ex-professora, criticando os russos e o modo como foram sujeitos à propaganda. “Eles já não têm um cérebro na cabeça”.

E lamenta que existam “pessoas no século XXI que não podem dizer a palavra guerra” numa referência ao facto de a censura do Kremlin ter impedido o uso dessa expressão, insistindo no termo “operação militar especial”.

“Eles não têm democracia e acho que as suas políticas são piores do que as de Estaline, daqueles tempos”, conclui Nadia, levando nas mãos um par de galochas para criança, provavelmente para os seus netos.

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