“Muita gente perdeu a vida, incluindo a minha tia, dada como morta, conta à Lusa Vicente Joaquim, 64 anos, à porta da sua casa em Muzingane, um posto administrativo composto por famílias que fugiram de zonas baixas dos distritos mais afetados pelas cheias de 2000 na província de Gaza, sul de Moçambique.

Oficialmente, estima-se que perto de 800 pessoas perderam a vida durante quase cinco semanas de chuvas intensas na província de Gaza entre março e abril de 2000, naquele que é até hoje o pior desastre natural de que em Moçambique há memória.

O nome da tia de Vicente Joaquim está entre estas 800 pessoas que perderam a vida para as autoridades, mas o agricultor, que ainda se lembra do dia em que as chuvas começaram, guarda há 23 anos alguma esperança.

“O corpo dela nunca foi encontrado”, acrescenta Vicente Joaquim, uma esperança alimentada pelos vários casos de pessoas da mesma família, dadas como mortas durante a guerra civil naquela província em Moçambique, que se reencontraram vários anos depois.

Na memória, apesar do tempo, o trauma de quem perdeu tudo para a corrente das águas prevalece, reforçada pelo vazio que carrega quando pensa na sua tia arrastada pelas águas.

“Eu vi a maldade da água em 2000”, frisa Vicente Joaquim, que admite, entretanto, que é improvável que a sua tia, com quem viveu a sua infância toda, esteja viva.

“Se ela morreu, dói mais porque não tivemos nem a oportunidade de a enterrar”, acrescenta o agricultor, lembrando uma “tragédia” cujo impacto prevalece até hoje para alguns.

“A nossa produção na terra nunca mais foi a mesma”, refere.

Os dados oficiais apontam para mais de 140 mil hectares de culturas destruídas devido às cheias e mais de 20 mil cabeças de gado perdidas, além da destruição de infraestruturas, numa tragédia que comoveu o mundo.

Ofélia Alberto, 36 anos, era uma adolescente em 2000, mas lembra-se “vagamente” do “terror” que o distrito de Bilene, de onde ela é originária, enfrentou.

“Além de muita gente morta, perdemos comida, animais e alimentos. Acreditávamos que não fosse nada de grave, quando a chuva começou”, admite Ofélia.

Hoje, quase 23 anos passados, Ofélia, tal como Vicente, vive longe das zonas baixas, no Bairro 1, localidade de Muzingane, parte do distrito de Limpopo, a pouco mais de 200 quilómetros do centro da capital moçambicana (Maputo).

Em Muzingane, todos carregam a história comum de ter perdido muito para a fúria das cheias de 2000 e, por isso, o medo é constante em épocas chuvosas.

“Claro que temos medo de que uma coisa similar volte a acontecer, não dá para não ter. O que aconteceu em 2000 matou muitas pessoas. Temos isso na cabeça sempre: o ano 2000 destruiu várias coisas”, acrescenta Ofélia.

São cerca de 800 pessoas de famílias humildes que compõem o bairro 1, escondido nas proximidades da Estrada Nacional Número 1, a principal do país, e dependente maioritariamente da agricultura de subsistência.

Mas as “contas não batem” para a maior parte das famílias do bairro 1. Paradoxalmente, se ontem o problema era a quantidade de água inundando a província, hoje o desafio é a falta de chuva que está a comprometer a produção agrícola.

“O sofrimento aqui é a comida, não há chuva. Mas pelo menos há paz e dá para viver”, conclui Eugénio David Bila, chefe do bairro 1 de Muzingane.

Moçambique é considerado um dos países mais severamente afetados pelas alterações climáticas no mundo, enfrentando ciclicamente cheias e ciclones tropicais durante a época chuvosa, que decorre entre outubro e abril.

Os fenómenos são justificados pela localização geográfica do país, sujeita à passagem de tempestades e, ao mesmo tempo, a jusante da maioria das bacias hidrográficas da África Austral.

Depois das cheias de 2000, o período chuvoso de 2018/2019 foi também severo, com o registo de 714 óbitos, incluindo 648 vítimas dos ciclones Idai e Kenneth, dois dos maiores de sempre a atingir o país.

* Estêvão Chavisso (texto e vídeo) e Paulo Julião (foto), da agência Lusa