Com os sucessivos cancelamentos e adiamentos de grandes eventos à escala mundial devido à pandemia da covid-19, foi crescendo nos últimos meses a noção de que a Web Summit provavelmente teria o mesmo destino ou seguiria as pisadas de outros eventos, como é o caso do Collision que decorre esta semana (e que é organizado pela mesma equipa) tendo uma edição digital.

Até que no dia 16 de junho, Paddy Cosgrave, fundador e CEO da empresa que organiza a Web Summit, anunciou no Twitter que a conferência que desde 2016 tem lugar em Lisboa ia mesmo avançar em 2020.

Apesar de não ser abrangida pelo prazo das proibições de eventos de massas decretados pelo Governo — estabelecido até 30 de setembro —, a cimeira tecnológica foi marcada para a sua data já tradicional de início de novembro, mês em relação ao qual a única certeza plausível é que a pandemia não se terá dissipado nem do nosso país, nem do mundo.

Por isso mesmo, as especulações acumularam-se: será que a Web Summit teria o mesmo destino das suas conferências “irmãs”? Se por um lado o Rise já tinha sido adiado para 2021 devido à instabilidade política vigente em Hong Kong, onde é realizado, o Collision, marcado para ocorrer em Toronto, no Canadá, passou para um formato totalmente online. Com o novo nome de “Collision from Home”, o evento vai decorrer entre 23 e 25 de junho, sendo as suas conferências e expositores virtuais.

Nos últimos meses, foram dadas algumas pistas, não exatamente convergentes. Em abril, a organização confirmou ao Dinheiro Vivo que mantinha os planos de organizar a edição da Web Summit em novembro e num formato presencial em Lisboa. Já em maio, o responsável pela comunicação da Web Summit em Portugal, António Neves Costa, admitiu a possibilidade de o evento ser “completamente online”, como o Collision.

Mais recentemente, no início deste mês, Paddy Cosgrave reforçou esse intuito numa entrevista ao podcast Recode Media e “passou a batata quente” para o lado português, dizendo que a decisão de o evento ser presencial seria da parte de Portugal, recordando também o investimento feito pelo Governo para assegurar a permanência da Web Summit em Lisboa.

Na mesma conversa ao Recode Media, Cosgrave admitiu ainda a possibilidade de organizar uma Web Summit no mesmo formato do Collision from Home —  ou seja, totalmente online —, ou num formato híbrido entre o presencial e o virtual, garantindo, porém, que o evento iria de facto acontecer em 2020. Ademais, para se salvaguardar em caso do formato ter de ser digital, a equipa da Web Summit investiu numa startup chamada Hopin, especializada em conferências online, como reportou o Dinheiro Vivo.

No entanto, a resposta dada para (supostamente) dissipar questões e preocupações veio sob a forma triunfal de um tweet: “[a] Web Summit vai acontecer este ano em Lisboa!”, escreveu Paddy Cosgrave. E para não deixar sombra de dúvidas de que o evento ocorreria presencialmente, o empreendedor enviou outra mensagem, dizendo que a organização "irá aderir aos mais rigorosos protocolos de saúde, conforme orientação do Governo de Portugal".

Desde então, nada mais veio a público quanto aos moldes em que a Web Summit se realizará, e as dúvidas continuam mais do que muitas. Na balança que determina o futuro deste evento pesam números muito elevados, tanto a nível financeiro como a nível de afluência humana.

O que ganha e o que perde Lisboa e Paddy Cosgrave com a realização ou não do evento

Nascida em 2010 na Irlanda, a Web Summit passou a realizar-se em Lisboa em 2016 e tem contrato para se manter na capital portuguesa até 2028. Essa exclusividade, porém, tem um preço, pois o contrato prevê que a Câmara Municipal de Lisboa pague 11 milhões de euros todos anos para a realização da cimeira na capital — se bem que, no ano passado, esse valor se elevou a 15,7 milhões.

Por outro lado, a organização da Web Summit comprometeu-se a indemnizar o município em caso de incumprimento, havendo uma cláusula no contrato de 3,4 mil milhões de euros, que corresponde ao impacto estimado do evento. Estando selado a sete chaves, não se sabe se no contrato existe alguma cláusula que preveja fenómenos como a atual pandemia.

A recompensa que Portugal e Lisboa têm por acolher uma cimeira desta natureza prende-se com mais do que a exposição do setor tecnológico e empresarial português à escala global. A organização deste evento é também vista como um forte impulsionador económico a nível local. A Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal, por exemplo, estimou que, durante a edição do ano passado, os participantes tenham gasto 64,4 milhões de euros pelos quatro dias do evento.

Há, no entanto, um grande senão que pesa sobre os ombros de Paddy Cosgrave e restante organização em tempos de pandemia. A edição de 2019 teve mais de 70 mil participantes espalhados pelo recinto, um número que se afigura impraticável com as atuais regras de distanciamento social primordiais para evitar contágios.

O que implica organizar a Web Summit com as restrições que decorrem da Covid-19?

O SAPO24 contactou tanto a organização da Web Summit, como a Câmara Municipal Lisboa e o Governo português a fim de obter esclarecimentos quanto aos moldes previstos para que seja possível ter um evento presencial que respeite os padrões de saúde pública, não tendo obtido resposta até à data de publicação deste artigo. Fonte ligada à organização do evento, porém, indicou ao SAPO24 que um comunicado conjunto entre as três entidades acima mencionadas está para breve.

Um dos únicos dados com que é possível trabalhar neste momento é com as contas que o Governo tem feito quanto à ocupação máxima em espaços fechados — de comércio e serviços, mas também de âmbito cultural — tendo vindo a aplicar a regra de 0,05 pessoas por metro quadrado, ou seja, uma pessoa por cada 20 metros quadrados.

Tome-se então o exemplo dos pavilhões da Feira Internacional de Lisboa (FIL), usados como espaços de expositores de empresas, mas também para palcos de conferências. Tendo cada pavilhão da FIL 10 mil metros quadrados, ao aplicar-se as regras à risca, isso resultaria numa  capacidade total de apenas 500 pessoas por cada um dos quatro pavilhões. Já considerando a totalidade do espaço disponível na FIL, 100 mil metros quadrados, tal indicaria que, na melhor das hipóteses, poderiam circular 5000 pessoas nesse espaço do recinto.

Já no que toca à sala da Altice Arena onde decorrem as conferências, dispondo de 5200 metros quadrados, a regra possibilitaria a convivência de apenas 260 pessoas. No entanto, as regras neste momento vigentes para eventos com lugares sentados, como as conferências que acontecem neste espaço, são outras, sendo que “a ocupação dos lugares sentados deve ser efetuada com um lugar livre entre espectadores que não sejam coabitantes, sendo a fila anterior e seguinte com ocupação de lugares desencontrados”, segundo a Direção-Geral da Saúde.

O SAPO24 tentou obter dados concretos junto da entidade que gere a FIL, a Fundação AIP, quanto à capacidade total do espaço durante a Web Summit e quanto ao limite de pessoas previsto numa situação de contingência como a que deverá vigorar durante a edição deste ano. Em resposta, a Fundação AIP optou por não revelar estes dados, considerando “precoce” disponibilizá-los nesta fase.

Web Summit 2019 - Altice Arena
Pedro Marques dos Santos | MadreMedia créditos: Pedro Marques dos Santos | MadreMedia

“Qual é o número ideal? É o que cumpre as normas de segurança de saúde pública”

Não se sabendo, por agora, quais são as limitações de lotação a impôr durante a Web Summit para que possa decorrer com segurança, é seguro dizer-se que o evento poderá ocorrer, mas nunca da mesma forma como se desenrolou nos últimos anos. Os especialistas em epidemiologia contactados pelo SAPO24 confirmam-no.

Para Ricardo Mexia, o evento poderá ser realizado, mas “tudo dependerá da situação epidemiológica e dos recursos que forem alocados para assegurar que conseguimos minimizar o risco”, recordando que “há riscos associados às grandes concentrações de pessoas, particularmente aquelas que implicam uma deslocação de diversas proveniências, como é o caso da Web Summit".

O presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP) e médico do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge lembra que, para eventos como a Web Summit, "a Organização Mundial de Saúde (OMS) tem uma ferramenta de avaliação de risco para grandes massas e que pode ser aplicada e identificar aquilo que pode ou não pode acontecer".

As orientações da OMS não apelam à proibição de eventos de massas durante a pandemia da covid-19, recomendando porém que se faça uma avaliação do risco, se tenha um plano de segurança e, se possível, se adie ou altere o formato do evento em caso de este ocorrer num local onde possam existir casos de transmissão comunitária.

Ricardo Mexia sugere o mesmo, frisando a necessidade de “preparação atempada”, que implica não apenas “quem organiza o evento”, mas também os responsáveis “do local que o acolhe, sejam as próprias instalações, seja o próprio país". “É preciso encontrar os principais problemas e depois, em função desses problemas, tentar encontrar maneira de os mitigar”, adianta o epidemiologista, referindo questões essenciais como “a vigilância epidemiológica, assegurar que há medidas de distanciamento físico e de etiqueta respiratória, da higienização das mãos e da utilização de máscara”.

Tudo isto, porém, tem de ser pensado com meses de antecedência e quando ainda não se sabe qual vai ser o estado da pandemia em novembro. Ainda assim, Filipe Froes, médico pneumologista e coordenador da Unidade de Cuidados Intensivos Médico-Cirúrgicos do Hospital Pulido Valente, defende que “mesmo havendo condições epidemiológicas que permitam a sua realização, este evento e outros semelhantes devem obedecer a todos os preceitos de saúde pública que minimizem o risco de transmissão na comunidade, a importação de novos casos e o estabelecimento de cadeias de transmissão da comunidade". 

Por isso mesmo é que este responsável alerta que um evento como a Web Summit “tem de ser planeado, incluindo logo de origem um plano B, que passa necessariamente pela substituição de muitas atividades por reuniões virtuais, não-presenciais” e pela criação de “alternativas que evitem a deslocação das pessoas”. Este é “um desafio para todas as organizações para futuros eventos desta dimensão durante a pandemia”, sublinha.

E mesmo que a situação pandémica pareça estar mais controlada por altura da realização da Web Summit, Ricardo Mexia adiciona uma outra variável que pode complicar as coisas, já que o evento decorrerá perto “da nossa época de gripe, que tipicamente acontece um pouco mais tarde, mas se for sobreposta ao problema da pandemia poderá ser difícil de gerir”.

No que toca aos critérios de distanciamento social calculados a partir da regra de uma pessoa por 20 metros quadrados, o presidente da ANMSP considera que a métrica pode ser “excessiva para um evento desta índole”. Já Filipe Froes defende que só pode haver “um critério”, a “coerência”.

“Não podemos ter um critério mais fino ou mais largo consoante o impacto desse evento na economia do país. Tem de haver coerência e transparência de critérios. As pessoas saberem de antemão que para qualquer evento daquela natureza, tem de se cumprir aquelas regras. As regras não se adaptam à importância do evento, os eventos é que se adaptam às regras”, avisa o médico pneumologista.

Na sua opinião, não só a Web Summit se encontra numa posição privilegiada “para encontrar as soluções que permitam a realização destes eventos em harmonia com os requisitos de saúde pública” por estar numa área “onde é possível implementar o digital com eficácia”, como tem ainda a obrigação de servir de “exemplo para todos os outros”, servindo como uma “montra”.

O consultor da DGS, de resto, não avança com uma lotação definida de pessoas que a organização da Web Summit deve estipular. “Qual é o número ideal? É o que cumpre as normas de segurança de saúde pública”, remata.

Web Summit
créditos: Piaras Ó Mídheach/Web Summit

“Não é necessário muita gente para ser um evento de sucesso”

Em antevisão ao que poderá ser a Web Summit de 2020, o SAPO24 contatou diversos parceiros da cimeira que estiveram presentes na edição do ano passado (alguns sendo já parceiros desde a primeira edição), sendo a resposta generalizada de que contam em participar no evento, aguardando informações sobre em que moldes este se irá realizar. No entanto, este não tem sido encarado como um tema urgente a clarificar.

Para a Startup Portugal, órgão criado pelo Ministério da Economia encarregado de apoiar startup portuguesas, o anúncio de Paddy Cosgrave foi apenas uma “re-confirmação” de que o evento vai acontecer, porque nunca foi posto em causa.

“Nós estamos a preparar-nos para a Web Summit como nos temos preparado nos últimos quatro anos”, diz João Borga, Diretor-Executivo da Startup Portugal, adiantando estar a aguardar os “moldes finais do evento para lançar as candidaturas para o Road2Web Summit”, um programa criado com a organização da cimeira para ajudar startups portuguesas a extrair o máximo possível da sua participação.

Admitindo que, estando o país (e o mundo) a atravessar uma pandemia, as pessoas estão de “alguma forma apreensivas com o que vai acontecer”, o responsável recorda também que “ainda faltam três meses” e que o mais prudente é “aguardar pacientemente e ir-se preparando para os vários cenários possíveis”.

Caso o evento venha a ser forçado a reduzir-se a uma edição digital, a Startup Portugal tem o trunfo de participar já no Collision from Home, apresentando uma comitiva de 60 startups presentes digitalmente. “Preparámo-nos para esse [evento], vamos aprender as suas lições e se esse for o caso para a Web Summit em Portugal, estaremos prontos”, garante João Borga.

Se, por outro lado, a Web Summit for realizada presencialmente, o responsável da Startup Portugal diz não temer o facto de provavelmente vir a ter menos participantes por razões de segurança. Esta edição “pode ter muito poucas pessoas, mas se as pessoas que lá estiverem forem investidores, pessoas de empresas que fazem inovação ou que estão à procura de soluções, para colaborar e desenvolver aquilo que está a ser feito, não é necessário muita gente para ser um evento de sucesso”, defende João Borga. A sua preocupação, portanto, prende-se mais com “a capacidade de promover internacionalmente” a qualidade das startups portuguesas e da mão-de-obra nacional.

Celso Guedes de Carvalho partilha de uma opinião semelhante, e vai mais longe, defendendo que menos participantes tornará a Web Summit menos generalista, promovendo uma “maior segmentação" que "poderá ser de maior utilidade para o evento". "Não considero que seja pelo número de mais ou menos participantes ou visitantes que haverá um menor impacto naquilo que são os objectivos das startups que estão presentes neste evento, que é para se exporem ao ecossistema e despertar o interesse de investidores ou parceiros", afirma o comissário-geral da participação portuguesa na Expo 2020.

Esse evento, que deveria ter início a 20 de outubro, no Dubai, foi adiado para 2021, mas Celso Guedes de Carvalho diz não ver “nenhum cenário a equacionar neste momento” para que tal aconteça com a Web Summit.

Uma Web Summit “mais europeia e menos mundial"

Admitindo ser otimista, o antigo presidente da Portugal Ventures (e também da Startup Portugal) fala na “necessidade que a economia mundial tem de ter um último trimestre em franco crescimento" depois do período recessivo dos últimos meses, sendo “inevitável voltarmos a uma certa normalidade, o que também ocorre em termos de eventos". Olhando para o facto de já se começarem a realizar eventos e concertos, a perspetiva de Celso Guedes de Carvalho é que “em novembro haja um contexto muito menos restritivo".

Ainda assim, dado o panorama global, Celso Guedes de Carvalho prevê que esta seja uma Web Summit “mais europeia e menos mundial", pois os continentes vão focar-se nos seus mercados internos e seguindo “uma lógica de afinidades regulamentares, a Europa partilha muito o que são as regras de segurança, de tráfego e de convívio”, sendo “natural que seja mais fácil articular movimentações entre os países europeus".

O comissário-geral, porém, defende também que não só a menor participação não deverá beliscar os ganhos das startups, como essa redução “também não diminui a importância” das conferências, que recai sobretudo “nos oradores e nos conteúdos” apresentados. E tendo em conta que “todos andamos à procura de respostas para uma série de dúvidas” nesta fase de pandemia, Celso Guedes de Carvalho crê que esta edição pode ser “mais memorável ainda” pelo contributo que pode dar.

2019 Web Summit
créditos: EPA/MIGUEL A. LOPES

"Se o evento for digital, nem consideramos"

Nem todos os potenciais participantes, todavia, se encontram assim tão otimistas quanto à edição deste ano da Web Summit. É o caso de André Godinho Luz, CEO da Infinite Foundry, startup baseada no Porto que oferece uma plataforma em cloud, onde se pode projetar e simular em 3D qualquer produto e visualizar o resultado num ambiente de realidade virtual, e que tem participado na Web Summit desde 2017, ano em que foi fundada.

Por estar à frente de uma empresa mais centrada na área industrial, o chamado “business to business”, do que no desenvolvimento de um produto para vender a consumidores, a Web Summit normalmente é útil, adianta o CEO, porque “é um íman para outras grandes empresas, porque trazem gabinetes de inovação e tudo, é mais fácil de trabalhar com elas".

No entanto, prevendo uma edição que “à primeira vista, parece ser minimalista”, André Godinho Luz teme que venham menos participantes com as características de que a Infinite Foundry necessita: clientes e não investidores. Se por um lado, o CEO da Infinite Foundry concorda que a redução de participantes pode levar a “alguma separação” do público mais casual e do que vai para fazer negócio, André Godinho Luz receia que um evento mais despido atraia menos as empresas com quem quer fazer negócio.

“Por causa do contexto do nosso mercado, vamos aguardar para ver se faz sentido investirmos algum tempo nisso", pois "temos de esperar para ver se [a Web Summit] é capaz de atrair essas grandes empresas", diz, citando o trabalho que desenvolve em conjunto com marcas como a Mercedes ou a Volkswagen. “Está muito na arte e engenho do Paddy e da equipa conseguirem puxar aqui alguma coisa que consiga atrair a malta com valor”, acrescenta.

O que André Godinho Luz garante é que a Infinite Foundry não irá participar se a Web Summit não ocorrer com formato presencial. “Se o evento for digital, nem consideramos", atira o CEO, explicando que a sua tecnologia, apesar de ser digital, por ser de realidade virtual e 3D não se traduz bem num medium virtual, sendo “muito importante a interação para que a mensagem passe”.

Por isso mesmo, a Infinite Foundry, apesar de ter participado no Collision de 2019, recusou entrar na edição “from Home” deste ano.

Resta esperar para ver como vai acontecer a Web Summit 2020.