Que o Benfica não tem tido vida fácil na Liga dos Campeões é um eufemismo atroz. A equipa comandada por Rui Vitória, mesmo quando em boa forma noutras competições, tem estado sempre aquém do seu estatuto europeu quando se exige que este seja defendido. Se os zero pontos obtidos no ano passado representaram um nadir quanto às suas participações na prova de elite, nesta edição não fez pior figura, conseguindo, pelo menos, manter-se nas competições europeias ao assegurar o terceiro lugar do grupo.

A consolação, contudo, não foi suficiente para os adeptos, e o anterior jogo disputado na Liga dos Campeões, uma derrota contundente por 5-1 com o Bayern de Munique, foi uma espécie de fármaco para o Benfica, a injeção de veneno para expurgar todo o mal. Rui Vitória esteve quase com um pé fora do clube, mas o voto de confiança fletiu a equipa para rumos mais positivos, somando três vitórias consecutivas depois do desaire na Alemanha.

De orgulho ferido e destino traçado em direção à Liga Europa, o Benfica encarou esta partida para lá dos seus potenciais ganhos monetários - sempre apetecíveis, especialmente para a realidade portuguesa, não esqueçamos -, querendo fazer-se valer pelo “prestígio de poder somar sete pontos”, como descreveu o timoneiro benfiquista. À sua frente teria um AEK igualmente interessado em limpar a triste imagem que ter zero pontos implica, falando também o técnico Marinos Ouzounidis em defender “o nosso prestígio, porque somos vistos pelo todo”. Para os gregos, este jogo pouco valia senão pelo estatuto, já que do último lugar do grupo não sairiam, e a sua quarta posição no campeonato grego, a doze pontos do líder PAOK (que, curiosamente, o Benfica eliminou para chegar aqui), inspira cuidados.

Com estas questões de honra em mente, Rui Vitória acabou por preparar esta partida de forma conservadora, não fazendo grandes alterações face ao onze que defrontou o Vitória de Setúbal. Das três mudanças efetuadas, duas foram forçadas: não estando Jonas e Fejsa em condições físicas para jogar, o treinador apostou em Seferovic para substituir o brasileiro e Alfa Semedo, o talismã da primeira volta, para entrar no lugar do sérvio. A exceção de destaque foi João Felix, que aproveitou assim para fazer a sua estreia na Liga dos Campeões, se bem que a sua colocação junto à linha e não no centro em nada o beneficiou.

Se é de “honra”, “prestígio” e “orgulho” que ambos os cavalheiros das duas equipas falavam antes desta partida, pouco fizeram para defender esses nebulosos conceitos, preparando-se para um duelo com pistolas de pólvora seca. É que se o jogo na Grécia tinha sido o equivalente a um desastre automobilístico - terrível, mas impossível de não observar em modo voyeur -, a partida em Lisboa começou por nem emoção ter, justificando a meia-casa semeada pelo estádio da Luz. O Benfica entrou com mais vontade de disputar a partida, mas abusou do jogo longo e pelas alas, sendo o seu jogo interior inexistente, fora umas tímidas triangulações entre Pizzi, Félix e Grimaldo. Foram muitos os cantos e faltas ganhas pelas águias mas poucos os ganhos extraídos por uma equipa que ainda viu Rafa sair por lesão aos 35 minutos, entrando Zivkovic em seu lugar.

A falta de esclarecimento encarnado esbarrou também num AEK que mostrou ser uma equipa com deficiências evidentes, mas cujo o maior pecado talvez tenha sido mesmo a intransigente vontade de não vir jogar à bola. Talvez Marinos Ouzounidis tenha pensado que obter um ponto seria melhor que manter-se a zeros (poder-se-ia utilizar uma metáfora sobre pássaros, mãos e voos, mas o intuito desta crónica não é incorrer em controvérsia), pelo que a sua estratégia passou principalmente por anular jogo, não com um autocarro, mas com uma falange defensiva digna de um exército de hoplitas, e tentar contra-ataques que não raras vezes nem passaram do meio campo do Benfica.

Para o leitor que tenha tido o privilégio de não assistir a esta primeira parte, os dois lances mais entusiasmantes foram momentos que noutras partidas mais interessante seriam meras notas de rodapé. O primeiro foi protagonizado por Ruben Dias, que fez um grande corte em cima da linha do meio campo para parar um dos poucos contra-ataques do AEK. Já o segundo foi um remate de primeira que Seferovic fez ao aproveitar um passe ridiculamente torto de Ezequiel Ponce. Fora esta tentativa de auto-sabotagem grega, o mais perigoso lance encarnado tinha sido um livre batido ao lado por Grimaldo, ensaio para o que chegaria na sua forma aprimorada na segunda parte. Foram momentos como estes a fazer elevar o som ambiente na Luz de um burburinho para um ligeiro bruáá, que se transformou em assobiadela quando a equipa saiu para o intervalo.

Benfica AEK
Benfica AEK créditos: EPA/MARIO CRUZ

No segundo tempo, a história foi diferente. O Benfica veio do descanso melhor munido para o confronto e começou a ganhar ritmo à medida que os minutos corriam e o AEK não foi sendo capaz de lidar com o arsenal ofensivo que os encarnados foram empregando. Os helénicos até somaram algumas ações perigosas - incluindo uma cabeçada junto ao poste pelo central Oikonomou, aos 63 minutos, que podia ter dado golo -, mas está tudo dito quanto à prestação de uma equipa quando defende com dez jogadores atrás da linha do meio campo e apenas obrigou Odysseas Vlachodimos a fazer a sua primeira ação defensiva aos 52 minutos.

A auxiliar os encarnados nesta segunda parte veio a decisão acertada de substituir Pizzi por Franco Cervi, tendo o Benfica sacrificado algum controlo do meio-campo (que não precisava, dada a inércia do AEK) para ganhar ritmo na frente. E foi disso que se tratou: ritmo. Com um ligeiro aumento da velocidade, as águias começaram a somar lances de perigo sucessivos, desde um remate de Seferovic (64 minutos), na passada, após cruzamento rasteiro de Zivkovic, obrigando Barkas a defesa, até a uma bola cabeceada à barra pelo suíço (71 minutos) e a uma boa jogada do avançado com Gedson, tendo o médio português sido negado pela mancha do guarda-redes helénico.

A pólvora, outrora seca, começava então a ganhar um cariz mais explosivo, só que faltava a pontaria. Numa fase onde o golo já era merecido e onde Rui Vitória já tinha tirado Félix para tentar a sorte com Castillo, foi preciso um atirador de precisão para levar o duelo de vencida. Procurando construir de trás, o médio Galanopoulos comete uma imprudência, perde a bola para Gedson e é forçado a puxar o jogador encarnado. Para além de levar o segundo amarelo e ordem de expulsão, à saída do campo o grego ainda terá tido a oportunidade para admirar a obra de Álex Grimaldo. É sabido na prática militar de que às vezes é necessário calibrar a mira para dar o tiro certo. Depois de falhar na primeira parte, o lateral espanhol acertou em cheio na segunda, com um daqueles livres em arco onde a bola descaiu justamente a entrar dentro da baliza.

Depois de tantos lances de bola parada desperdiçados - o jogo foi um arraial de cantos mal batidos pelo Benfica -, bastou um bem efetuado para obter 2,7 milhões de euros, a posição de cabeça-de-série na Liga Europa e, acima de tudo, a restituição de um certo orgulho ferido: o Benfica levou uns inacreditáveis 22 meses até voltar a ganhar um jogo em casa na Liga dos Campeões. Não foi o melhor dos jogos, nem as “águias” quererão revê-lo assim tantas vezes, mas num duelo de honra, o vencedor foi encarnado, rubra cor do coração.

Benfica AEK
Benfica AEK créditos: MARIO CRUZ/LUSA

Bitaites e postas de pescada

O que é que é isso, ó meus?

Se o AEK deixa uma pálida imagem nesta edição da Liga dos Campeões, este jogo foi o reflexo dessa fraca figura. Na Grécia ainda conseguiram aproveitar o descontrolo emocional do Benfica para disputar a partida, mas se Marinos Ouzounidis ainda podia clamar por injustiça no resultado nesse primeiro jogo, não houve quaisquer desculpas na Luz, onde os gregos mirraram por completo. Tudo correu mal: inexistência de uma ideia de jogo que não fosse recuperar a bola e correr, zero remates enquadrados à baliza, uma expulsão que indiretamente valeu o golo dos encarnados e a figura ridícula do seu treinador a ser encaminhado para fora de campo a barafustar feito taberneiro (as nossas desculpas à nação taberneira pela comparação) sem razão nenhuma. Ao menos que levem uns pastéis de nata na volta, para que a viagem não tenha sido em vão.

Grimaldo e Seferovic, a vantagem de ter duas pernas

O lateral espanhol recebe os louros certamente. Envolvimento no ataque, segurança a defender e um golo de levantar o estádio - pela significância mas também pelo talento necessário para fazê-lo - são mais do que motivos para Álex Grimaldo vir parar a esta categoria. Mas seria um desprimor não considerar também Haris Seferovic. O avançado suíço foi dos poucos a remar contra a maré quando a equipa não o fazia, deu-se ao jogo, passou, triangulou e ainda conseguiu mandar duas bolas à trave e ao poste.

Fica na retina o cheiro de bom futebol

Uma jóia perdida num mar de bugigangas de plástico, é como se pode descrever o golo que Álex Grimaldo esculpiu nesta ourivesaria parca de engenho. Não se percebe porque é que na anterior marcação de um livre direto foi Cervi a mandar a bola para bancada, quando Grimaldo já mostrou uma e outra vez ser capaz de criar obras primas como esta. Com precisão, o lateral espanhol atirou perto do ângulo direito da baliza de Barkas, que se limitou a observar com admiração. Como todos nós.

Nem com dois pulmões chegava à bola

Se é verdade que o jogo não teve grande brilhantismo - com uma óbvia exceção -, também se pode dizer que foi fecundo em disparates. Sobressai uma rosca de antologia que Ezequiel Ponce nunca mais vai querer lembrar, tal como este jogo. O argentino, a tentar passar a bola para o outro lado do campo, pegou mal na dita e esta saiu disparada em direção à sua própria baliza, servindo Seferovic para este atirar com perigo ao lado. É um exemplo indicado da sorte deste AEK: a ação mais perigosa que o seu avançado teve foi uma assistência para a baliza errada.