Manhã: "O Ronaldo não vem?"
As nossas crónicas tiveram início na ‘Riviera Russa' (Sochi) e não no habitual ponto de partida que é o quartel-general da seleção, em Kratovo. E o que encontrámos resume-se a duas palavras: segurança — vistoria aos carros com cães polícia e detetores de bombas — e natureza — campos verdes, muitas árvores.
E porque Cristiano — como bem assinalou Neymar — não é deste mundo, todo o mundo quer saber dele. O que faz, o que diz, o que sente o melhor do mundo. E nós, portugueses, que partilhamos com ele bandeira, língua e hino, somos o proxy natural do astro. A título de exemplo, um jornalista espanhol andou a questionar vários jornalistas portugueses sobre o gesto em que CR7 acaricia o queixo num momento G.O.A.T (acrónimo em inglês para Greatest of All Time, o Melhor de Todos os Tempos) na celebração dos golos. (Acariciar o queixo é aqui associado a afagar a barbicha que a cabra - "goat", em inglês - tem). O que será que quis dizer com aquele gesto? Era uma mensagem para Messi?
Assim como nos habituais 15 minutos de treino abertos à comunicação social, enquanto os jogadores estavam no aquecimento, fomos abordados por jornalistas da Índia. “Onde é que está Cristiano Ronaldo? Não vem?” Ele estava lá, ao pé de Bruno Alves, Quaresma, Pepe, João Moutinho, e André Silva, no habitual ‘meínho’. Só que bem ao fundo do campo e no grupo mais distante do nosso campo de visão.
Facto é que as atenções são quase exclusivas para ele. A Ronaldomania existe e não é fácil fugir dela — aliás, nem é possível, nem se quer. Durante a conferência com Adrien, as questões terminam invariavelmente para saber mais sobre capitão. Algo que se notou na sala de imprensa também quando chegou a hora fazer a montagem das peças. “Nota-se que é ele ali atrás?”. Mas em Kratovo os ânimos são serenos e "tranquilidade" é a palavra de ordem.
A festa, a febre do Mundial e dos golos, estão em Moscovo e foi precisamente para lá que fomos.
Tarde: Ou como é impossível não se deixar enamorar pelo México e por Moscovo
Apanhámos o comboio que faz a ligação de Kratovo até ao centro de Moscovo, no terminal ferroviário de Kazansky. A viagem, para os parâmetros russos, foi curta: demorou cerca de uma hora. Chegados ao destino, procurámos a boca da entrada daquele que foi um dos projetos mais extravagantes e ambiciosos da União Soviética e da era Estaline, e entramos numa das 214 estações do metro da cidade, que cobre cerca de 365 km da capital russa.
O terminal de ferroviário Kazansky faz ligação com o metro através da estação de Komsomolskaya, na linha Sokolnicheskaya (Linha 1, sendo que há 12), como em Lisboa acontece em Entrecampos ou no Oriente. Embora inicialmente tudo pareça muito confuso, não foi difícil encontrar forma de chegar à estação que dá acesso ao Estádio Luzhniki — além do símbolo de um estádio (porque há imagens que valem mil indicações), a aplicação do Metro da Yandex, que funciona como Google Maps, também deu uma ajuda.
À saída do metro, a caminhada até ao Complexo Olímpico de Luzhniki demora apenas uns 10 minutos. E é impossível não ficar abismado quer pela infraestrutura, quer pela sua história. A seu lado, o Rio Moskva. Com a capacidade de albergar 81.000 pessoas, é o maior estádio da Rússia e um dos maiores da Europa. Inicialmente Estádio Central Lenine, agora Estádio Luzhniki, foi construído em 1956 como resultado do sucesso da União Soviética nos Jogos Olímpicos (JO) de 1952. Em 1980, foi palco da Abertura e Encerramento dos JO de Moscovo. Mais recentemente, em 1999, recebeu a final a Taça UEFA entre Parma e Marselha (3-0) e a final da Liga dos Campeões de 2008 que opôs o Chelsea e Manchester United (1-1), e onde Cristiano Ronaldo se sagrou pela primeira vez campeão europeu de clubes, marcando o único golo dos ‘Red Devils’ e falhando um penálti no desempate final que viria, ainda assim, a consagrar a equipa comandada por Alex Ferguson. Vicissitudes à parte, é um pergaminho histórico à frente dos nossos olhos que, apesar da reconstrução e modernização, não deixa de apelar à vista. Nem a Estátua de Lenine que o acompanha.
Em 2018, esta obra de arquitetura ficaria novamente na história do futebol pelo México-Alemanha, pelo golo que causou, literalmente, um "terramoto" de festejos. Foi um momento singular, único, arrepiante para quem teve a oportunidade de assistir ao vivo. “Ante a sua rede aguarda / a baliza todavia, aranha prada”, escreveu o poeta espanhol Miguel Hernández. Estava eu na sala de imprensa, atrás da baliza de Ochoa, guarda-redes mexicano. A partir de onde só se via a baliza oposta e um bocadinho do meio campo. E eis que...
Vi Chicharito a tabelar de primeira com Hirving Lozano; vi Chicharito a embalar e a tocar curto para Lozano cortar para o meio a partir da esquerda e rematar para o poste mais perto de Neuer e fazer um golo de fazer tremer a terra. O estádio abanou, os decibéis tomaram-nos de assalto, há saltos, há braços, há euforia e chuva de cerveja e papel higiénico. Uma catarse embalada pelo futebol; por um golo, por uma nação inteira.
Percebi imediatamente que isto não era maneira de ver aquele jogo, porque estava a ser bem mais que isso. Tinha que o ver em condições. Porque da bancada vejo tapete verde, estimulante aveludado onde os jogadores parecem figuras artísticas do ballet. Daqui, só a consigo perceber a coisa pela metade. E eu quero tudo. Não há como não querer tudo depois disto.
Estávamos bem perto do intervalo e a correria era imensa. Pessoas com bilhetes a querer vendê-los, outros a quererem bilhetes e à procura deles com papéis em riste, como se estivessem na chegada de um aeroporto. E uma vez que não conseguia estar dentro do Estádio, demos um salto à Fan Zone de Moscovo, que fica a duas estações de Metro do Estádio. E, Dios Mio, que festa. Milhares de adeptos mexicanos naquele é um dos pontos mais altos da cidade. Como pano de fundo, o ecrã do edifício da universidade de Moscovo, uma das famosas “Sete Irmãs” de Estaline. E depois da festa da bola, a festa pela festa, porque quando o jogo para, o esférico dá lugar à música.
E aqui todos querem tirar uma fotografia com os luchadores, com os sombreros ou com aqueles que tivessem um traje de um charro. Tudo o que fosse "tradicionalmente mexicano", valia fotografia. Não era caso para menos: tinham acabado de ganhar aos atuais do Campeões do Mundo.
E os alemães? Bem, lá estavam também, cabisbaixos, muitos dos quais acabaram por ficar para ver o Brasil entrar em campo contra a Suíça. Quanto a portugueses… apenas dois ou três grupos isolados e um casal. Pelo menos, que déssemos conta.
Um pequeno senão da Fan Zone: a transmissão é toda em russo, assim como os grafismos. Não viu que jogador saiu ou não percebeu quem marcou? Então é melhor perguntar à pessoa do lado porque aqui a língua inglesa não se ouve a não ser nessa circunstância.
Noite: Há fé em Tite e no título, mas não se escalaram os Alpes
Neymar. É a estrela da companhia, o futebolista mais caro da história, mas não é ele o principal canalizador da euforia brasileira em torno do escrete. Para a esmagadora maioria dos adeptos brasileiros com quem falamos, Tite, o técnico, é a catarse que a nação magoada pelos 7-1 do Mundial em 2014, nas meias-finais, precisava. O talento sempre existiu, era preciso apenas que alguém juntasse as peças todas num puzzle amarelo capaz de dominar os oponentes e chegar às redes adversárias para fazer o gol. Foi o D. Sebastião, o Messias que o Brasil precisava quando tudo parecia perdido e a qualificação quase em risco.
"Tite conhece o futebol brasileiro, conhece o jogador brasileiro. Antes, jogávamos em função de Neymar. Agora, jogamos como um todo, em que o Neymar parte de um todo. Coutinho pode brilhar", disse-nos um adepto brasileiro.
Em parte, tinha razão. Basta ver o que aconteceu quando Coutinho abriu caminho e rematou de belo efeito para fazer o primeiro golo da partida. Foi um daqueles remates espontâneos, um daqueles golaços que definem uma partida e um momento. Na Fan Zone de Moscovo, o grito parece que veio tarde. Efetivamente chegou em alto e bom som, mas não como se fosse uma jogada em que existe uma arrancada in extremis.
Só que o Brasil adormeceu, não foi capaz de capitalizar aquilo que, no fundo, este adepto considera que Tite trouxe. Não correu bem. Assim como as substituições não foram aquilo que o Brasil precisava. Havia bola, havia circulação, mas não havia ninguém que traduzisse o esforço em golo (Firmino foi lançado demasiado tarde...). A turma brasileira ainda pressionou no fim e até pode alegar que no lance do golo suíço houve empurrão sobre o defesa, mas não apaga aquilo que foi um jogo que muitos tentaram resolver através das individualidades. E por falar em individualidades, há que falar na maior delas todas: Neymar Jr.
O camisola 10 foi a inconsequência em forma de jogador em praticamente todos os lances individuais que tentou levar a cabo. Ninguém contesta as faltas que sofreu - ao longo dos 90' foi muito castigado pelos defesas suíços que protegiam a baliza de Sommer com unhas e dentes -, assim como teve várias oportunidades para decidir perto da baliza, não tendo sido feliz na maior parte das decisões. Em pelo menos três livres diretos, estava em boa posição para marcar, mas bateu sempre frouxo e contra a barreira. E não é para puxar a brasa à minha sardinha, mas conheço um jogador que arregaçou o calção e no mesmo minuto a meteu lá dentro. Mas isso são outros quinhentos.
O golo suíço foi um autêntico calafrio, um sopro dos Alpes que gelou os adeptos brasileiros. De cânticos e danças, passamos para o silêncio; um “silêncio ensurdecedor”, como diria o jornalista Gabriel Alves. As caras que há pouco eram só sorrisos carregam agora preocupação e nervosismo. Já não há muito funk, há roer de unhas. Olhos colados aos ecrãs gigantes com expetativa nos últimos 5 minutos de jogo. Há perigo, muito perigo e o Brasil esteve perto de fazer o golo. Mas não faz. Perto do fim, há um livre à entrada da área. Estávamos a bater nos 90’. Neymar dá um beijo na bola. À minha volta, volta a crescer a expetativa — o livre de Ronaldo está muito presente na memória de todos. Todo o mundo que estava a ver o jogo, levantou-se. Parecia que ia ser agora. Quem estivesse no local onde eu estava, quase que sentia que a bola já estava lá dentro.
Só que não. O craque brasileiro enviou a bola contra a barreira.
Após muita esperança, o jogo termina em 1-1. O conjunto, o todo, não prevaleceu. “É empate, não é o ideal, mas a festa continua. Brasil campeão!”, dizem-nos. A tristeza não tem lugar em ambiente de festa, mesmo no caso de um resultado menos positivo e logo a abrir a Copa. Foi a primeira vez, desde o Mundial de 1978, na Argentina, que o Brasil não conseguiu vencer na jornada inaugural de um Mundial. E já que falamos de Mundiais, o Brasil não ganha há três jogos seguidos na competição, a sua pior sequência desde esse mesmo ano. Por seu turno, quem soma e segue, é a Suíça. Nos últimos 23 jogos, tem apenas uma derrota: precisamente contra Portugal, em outubro do ano passado.
No entanto, no meio dum mar de adeptos sul-americanos, existem duas camisolas vermelhas. Vou ao encontro deles. Estão a rir-se, bem dispostos. Vêm da Suíça e disseram-me que sabiam que o jogo iria acabar empatado. Não acreditavam numa vitória, mas que um empate era perfeitamente possível e que agora o apuramento para próxima fase estava em aberto. “Não temos individualidades, mas temos uma grande equipa que joga compacta. Não temos estrelas, mas somos bons enquanto coletivo. E os brasileiros pensavam que o jogo estava ganho. Correu-lhes mal”.
Foi o último jogo do dia, a Fan Zone encerra e as pessoas dispersam. A música, a festa, é transportada para a cidade. Não acaba; passa apenas de um lado para o outro.
A América latina animou a noite. Bem dispostos, divertidos e prontos para celebrar a festa do futebol. Sendo que a maioria eram mesmo mexicanos. E tanto assim é que na loja oficial da FIFA comprar camisola do México só no tamanho de criança.
Regras
Antes do Mundial, existiam muitas regras de conduta que foram sendo avisadas e divulgadas: restrições ao nível de locais de fumo, venda de álcool depois das 23h, não beber em locais públicos, etc. Todavia, na festa do futebol, as regras caem e acontece frequentemente aquilo que se quer proibir. Ontem até uma adepta passou as cancelas do Metro com um copo de cerveja de 0,5L sem que alguma autoridade a proibisse.
Metro esse que foi palco da cacofonia futebolística sul-americana. Cânticos em conjunto, cânticos de parada e resposta. “Toda America latina, menos Argentina!”, canta um brasileiro. “Há que saltar, quem no salta no se vá emborrachar”, respondiam os argentinos. Há músicas dedicadas ao Pelé, ao Maradona e a outros que não conhecemos. Claro que, ainda assim, para os mexicanos, os alemães não podiam ficar de fora… “Onde estão, onde estão, os Alemães que nos vão ganhar?” Eram eles quem seguia ao leme dos festejos, a América Latina ali presente seguia-lhes o rasto.
Os russos dentro da carruagem filmavam, riam e observam todo aquele sangue latino a fervilhar e a viver o Mundial como esteve de ser vivido: com paixão. Um jogo de futebol é apenas jogo? Quem esteve hoje em Moscovo no Estádio Luzhniki ou na Fan Zone de Moscovo sabe que não.
Diário da Rússia é uma rubrica pela voz (e teclas) de Abílio Reis e Tomás Albino Gomes, equipa do SAPO24 enviada à Rússia para fazer cobertura do Mundial. Um diário que é mais do que futebol, porque a bola não se faz só de bola, mas também das pessoas que fazem a festa. Acompanhe a competição a par e passo no Especial "Histórias de futebol em viagem pela Rússia".
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