No fundo, estas três aplicações estão para nós como algumas drogas estão para muitos dos peregrinos que decidem arrancar na jornada de caminhar até Fátima: sem elas, a coisa não se processa. Sem elas, aqui os maçaricos ainda estariam à entrada do Aeroporto de Domodedovo, em Moscovo. Não há mal em admitir. Na minha ótica, estou só a constatar um facto: sem estas aplicações as últimas 24 horas teriam sido muito diferentes.

E tudo graças a uma senhora bastante simpática, de impecável trato, cuja vida, para quem nunca viveu fora e pouco passeou pelo mundo, é mote para mais do que dois dedos de conversa. Como todas as boas histórias que surgem de surpresa, a sua quase nos passava despercebida, mesmo ali ao lado, sentada no primeiro de uma fila de três lugares do avião, junto à janela, na terça-feira, em plena viagem Lisboa-Moscovo. Foi só quando a desconhecida passageira se levantou para esticar as pernas que lhe perguntei se não queria ir até ao corredor dar uns passos. Não quis, mas agradeceu o gesto. Estava dado o pontapé de saída.

É portuguesa, mas originária de Moçambique. É portuguesa, mas nunca viveu em Portugal. É portuguesa, mas está casada com um senhor holandês, com quem tem duas filhas. E já tinha passado e vivido em vários países, mas agora está em Moscovo — há sensivelmente um ano. Todavia, há um problema ao nível dos créditos. É que eu tenho a certeza que se chamava Gisela; o Tomás consegue jurar que se chama Gisele.  Já o apelido a si pertence porque quer um, quer outro, não se lhe lembrou de o perguntar no meio desta amena cavaqueira.

A sua primeira regra foi explicar que o Yandex é o nosso melhor amigo na Rússia. É o guia que nos ajuda (através de várias aplicações para smartphone desta plataforma) a chamar táxis, a conhecer itinerários de transporte e a saber como ir do ponto A ao ponto B, em quanto tempo e a que custo. A esta aplicações de navegação basta juntar o Google Translate. A razão é simples: se o Yandex é o guia, o Translate é o interprete.

Sochi
créditos: Abílio Reis | MadreMedia

Chegados a Sochi (após uma espera de oito horas no aeroporto de Moscovo e mais duas de viagem) apanhámos um táxi através da aplicação em vez de recorrer a um dos senhores que nos abordam mal aterramos na zona de chegadas. Segundo nos explicou a Gisela (ou Gisele), há por hábito cobrar um pequeno balúrdio que o serviço não justifica, e caso se utilize a aplicação, o valor é pré-determinado consoante a distância.

Destino: Estádio. Objetivo: acreditações. Problema: calor, muito calor. E malas.

Quatro Hyundais depois e cinco ou seis "Não, obrigado" à questão "Táxi?", descobrimos o nosso chofer. E, honestamente, foi tudo aquilo que imaginava: viagem sempre em velocidade considerável, buzinadelas quando alguém não se mexia naquele timing-à-taxi; não há cá cinto posto; o som estava alto como que se estivesse a recomendar aquela faixa específica de hip-hop russo; o telemóvel na mão direita a controlar o GPS até ao destino. Tudo como se quer quando saímos de um aeroporto e pisamos pela primeira vez um país. Ainda assim, verdade seja dita. Assim que percebeu o que fazíamos e para onde íamos, ajudou-nos. Concluída a viagem (e paga), saiu do carro e foi falar com outras raparigas que estavam no local onde nos deixou para nos orientar. Nem tudo o que parece é: era um tubarão do asfalto de volante na mão, mas preocupou-se se estávamos ou não orientados para ir ao "fútbal, fútbal". 

Próxima missão, encontrar o Estádio Olímpico de Fisht em Sochi, onde Portugal vai defrontar a Espanha. Foram precisos 35 minutos até encontrar alguém que nos soubesse esclarecer onde podíamos levantar uma acreditação para jornalistas. Porque o maps.me faz muito, mas chega para tudo — por enquanto ainda não ajuda a ler em cirílico, nem a descortinar indicações. Ouvir inglês, só se for pela voz de um estrangeiro e/ou algum voluntário do staff do Mundial2018 que procura ajudar como pode — mas eles próprios parecem mais desorientados que aqueles que chegam. Mas, verdade seja dita, nunca, em momento algum, foram desagradáveis ou não tentaram ajudar. Antes pelo contrário, a gestos a coisa lá se encaminhava, pois a gesticular é que agente se entende (ou tenta, pelo menos).

Chegados ao hotel (agora com um taxista calminho — igualmente sem pressa na altura de retirar as malas do carro, tendo aberto a porta só na hora daquele olhar do "Oh... Já as retiraram"), a concierge teve problemas em perceber a nossa folha imprensa do Booking. A reserva estava feita, paga e tinha o número de identificação da mesma escarrapachada no canto superior da folha. Problema? A folha estava em português, eu falava em inglês, mas ela só percebia russo. Nada que uma fotocópia do meu passaporte, um telefonema para alguém, e 20 minutos de gestos não remediassem. À noite, quando voltámos, já sabíamos o truque: Google Translate. E voilá, amanhã o pequeno-almoço é das 8h00 às 11h00. E há café. Expresso. Bebível.

E porque saco vazio não se aguenta de pé, optámos por calar o estômago num dos restaurantes das ruelas que circundam o hotel. Tinha música, bom ambiente e grelhados à porta. Que conseguisse identificar, havia frango, porco e vaca. A mim, chegava-me. A fome apertava e a refeição anterior já tinha sido hambúrguer de cadeia de comida de borracha. Em resposta ao pedido formal recebemos sorrisos acanhados, cheios de boa vontade, mas escassos no entendimento. De regresso a essa linguagem universal, um gesto de venha comigo que eu digo-lhe o que quero, aliado a um dedo acusador em direção ao naco de porco a grelhar que nos convinha, e ficou resolvido. No final, certo é ficámos cheios, e recomendamos o exercício. Bem melhor do que se estava à espera. Custou, mas saíamos de barriga aconchegada.

Prova final: pedir fatura... E fatura nem com Google Translator lá foi. É coisa que só português deve pedir por aqui. Conversa aqui, conversa ali, viemos de talão na mão com a promessa de que "tem o sítio para meter o contribuinte".

Sochi, para além da língua

Montanhas russas, transformers (sim, aqueles desenhos animados japoneses que viraram filme) junto ao estádio onde Portugal se vai estrear e, claro, praia. Praia ladeada de uma marginal que se estende por vários quilómetros.

Sochi
créditos: Abílio Reis | MadreMedia

Aqui, apesar de estreito, o areal é terrivelmente longo e quase da cor do mar que o banha: negro. Fazer praia aqui é como em qualquer outro lado — sendo porém de relembrar que Sochi foi a cidade dos últimos Jogos Olímpicos de Inverno. Uma nota para quem decidir aventurar-se nas águas da "riviera russa", os nadadores-salvadores não brincam em serviço. Não deixam cá que os banhistas se estiquem muito: nada de nadar para além da boia ou leva com a buzina de um megafone.

Se não estiver para banhos, é usufruir dos cafés ao longo do passadiço. Tem de tudo: macacos amestrados para lhe saltar em cima a troco de uns rublos por 'aquela' selfie; alguém a passear um jacaré de pequenas dimensões como se fosse um Chihuahua; um pai a passar de bicicleta com um atrelado com a filha lá dentro, enquanto dá música aos transeuntes através de uma coluna (mais do que um caso). Contudo, aquilo que há naquela marginal sem falta: locais para interagir com a Garra Rufa (Peixes Doutores) que, segundo me explicaram, ajudam a tratar a pele, sendo uma prática muito comum. Tal como o tempo.

É que o tempo não desilude. Esteve um dia abafado, quente e propício para a arte de veranear. No dia de ontem esteve um sempre calor generoso. Neymar explicou aos jornalistas que acompanham os 4 dias de estágio da canarinha na cidade: "Clima perfeito... Sol", disse ao Globoesporte.

Não tão perfeito está, porém, o clima na Seleção espanhola, que em vésperas do encontro de estreia com Portugal perdeu o seu treinador, Julen Lopetegui, substituído interinamente pelo até agora diretor desportivo da Federação Fernando Hierro. Mas isso é coisa para discutir amanhã com os camaradas espanhóis. Ainda não nos cruzamos com eles, mas não faltará oportunidade de lhes perguntar o que acham deste jogo das cadeiras.


Diário da Rússia é uma rubrica pela voz (e teclas) de Abílio Reis e Tomás Gomes, equipa do SAPO24 enviada à Rússia para fazer cobertura do Mundial. Um diário que é mais do que futebol, porque a bola não se faz só de bola, mas também das pessoas que fazem a festa. Acompanhe a competição a par e passo no Especial "Histórias de futebol em viagem pela Rússia".