Antes das celebrações ao estilo da Semana Santa e de se dançar o um flamenco à moda da Andaluzia, há que salientar que foram necessários 421 dias (!) para se chegar até ao dia em que o Sevilha alcançou mais uma noite de glória. Quer isto dizer que a edição 2019-20 da Liga Europa chegou finalmente ao fim, mas começou em junho de… 2019. Foram cinco meses sem competição que acabaram condensados em meras semanas para descobrir quem seria a equipa a suceder ao Chelsea — na época passada os londrinos bateram o Arsenal, numa noite em que Giroud levou a melhor sobre o Unay Emery.
O treinador espanhol é para aqui chamado porque esta noite se celebrou mais uma final da Liga Europa com o Sevilha. E não há como dissociar uma coisa da outra ou não tivesse Eméry ganho três troféus da Liga Europa seguidos (dos seis que agora estão no Museu) pela equipa que hoje subiu novamente ao cume da montanha.
Porque era a expectativa pré-jogo que existia para esta noite: iria Antonio Conte à boleia de um Lukaku em modo goleador frenético (marcou em todos os jogos que participou na competição) levar a cabo mais um alteração táctica clínica e prolífica ou a vitória iria recair para a equipa que durante o caminho despachou Roma, o Wolves (de Nuno Espírito Santo) e o Manchester United (de Bruno Fernandes, que acabaria por se sagrar o melhor marcador da prova, com oito golos)?
A resposta caiu para o lado que pende sempre para quando a equipa chega à final: se há Sevilha o adversário vai cair. É só ver o saldo das seis finais que disputaram: títulos em 2006, 2007, 2014, 2015, 2016 e 2020. Tal facto faz do Sevilha o Rei da competição e o clube mais titulado da competição em questão.
Nesta edição, tal como noutras, no papel, nos euros e em teoria, talvez até nem fosse a melhor equipa da final. Para mais, Conte implementou duas alterações que muito beneficiaram a equipa antes de rumar a Colónia para disputar a fase final da Liga Europa. A entrada de Godin e D’Ambrosio cimentou uma defesa coesa e um ataque produtivo. Desde a troca, o Inter açambarcou seis jogos (em sete) sem sofrer golos.
O treinador italiano é mais uma mente forjada no Centro Tecnico Federale di Coverciano, escola do pensamento futebol transalpino. Situada nos arredores de Florença, perto do sopé das belas colinas de Fiesole, é lá que entram os que ambicionam ter na sua posse o Il Master, como se diz na bota da Europa, que não é mais do que a derradeira licença da UEFA (Pro License).
E a filosofia que por lá se prega é que há que esquecer tudo o que sabem acerca do beautiful game — é necessário que sejam originais na sua abordagem na sua leitura do jogo. James Hornacastle, da The Athletic, explica que a chave do seu sucesso da corrente ensinada naquele local é que um treinador é um alfaiate — um que não pode simplesmente impingir uma ideia a uma equipa. Isto é, o treinador tem de fazer a costura consoante o tecido que tem ao seu dispor.
Só que esta noite o alfaiate não conseguiu unir as linhas todas e o fato ficou com retalhos. Em largos períodos de tempo, podia ter cosido as vestes deste Inter de Milão de outra forma para passar pelas linhas do Sevilha. Especialmente na segunda parte, quando teve oportunidades para isso. No entanto, o treinador não teve a capacidade de colocar em campo jogadores que assistissem Romelu Lukaku — mais à frente já se explica como —, que começou o jogo a brilhar, mas que acabou a sofrer a agonia de ter ajudado a colocar o adversário na frente perto do final, altura em que Diego Carlos interveio para se tornar o herói do clube espanhol.
Existem inúmeros exemplos no futebol de vilões que viram heróis. Mas para efeitos explicativos desta crónica dou apenas um. O de David Luiz, em fevereiro último, já em 2020, mas sem Covid e com ruído e publico nos estádios. Por ocupar a mesma posição, por ter começado mal e por haver uma bicicleta pelo meio. O Arsenal acabou por vencer (3-2) o Everton.
Essa partida começou da pior forma para os Gunners. Logo aos 50 segundos, o ex-jogador do Benfica falhou e Calvert-Lewin aproveitou para fazer o primeiro tento numa espécie de bicicleta (pontapé de moinho?). Os alarmes soaram, as críticas ao central tomaram conta do Twitter. A realidade é que o Arsenal iria chegar ao empate por Saka, mas a reviravolta chegou com uma assistência portentosa de David Luiz (marcou Aubameyang). O jogo teria mais dois golos (Richarlison antes do intervalo e o mais um do gabonês no início da segunda parte), porém, quem deu o mote foi o homem que começou a perder.
Esta noite, o filme foi um pouco semelhante, só que o ator principal foi Diego Carlos. Começou o jogo a perder um lance em velocidade logo aos 3’ em que acabaria por fazer um penálti — o terceiro consecutivo no mesmo número de jogos — e levou um amarelo que o condicionou praticamente toda a partida. Não teve particularmente bem nos lances que disputou, mas manteve-se sempre combativo — dentro dos limites — para não comprometer o seu companheiro do eixo mais recuado, Jules Koundé, que fez um jogo francamente melhor.
Só que, aos 74’, esteve no lance que fica para a história deste jogo. Um lance em que tenta um pontapé de bicicleta, acerta na bola. A trajectória da redondinha ia para fora, mas o esférico teve a felicidade de bater no pé de Lukaku e deixar Handanovic com pouco ou nada a fazer além de ficar impávido e muito pouco sereno a olhar para a bola entrar.
Diego Carlos iria abandonar o relvado já perto do fim (86’) para dar lugar ao ex-sportinguista Gudelj, mas a sua história já estava escrita para os anais da Liga Europa. Um penálti, um amarelo, uma exibição sofrida e pontapé de bicicleta que esteve na origem do golo da vitória. Mas que interessa isso quando se levanta um troféu europeu?
O jogo terminaria com o Inter a correr atrás do prejuízo. Conte, que recusa a ideia de que joga com uma linha de cinco defesas (joga, sim, num 3-3-4) e que assim alinhou com o mesmo onze que cilindrou o Shakhtar nas meias, ainda lançou Candreva (90’), Victor Moses, Alexis Sánchez e Eriksen (todos aos 78’, de uma assentada, poucos minutos depois do Inter sofrer o terceiro golo).
Só que do lado contrário esteve um Sevilha que não perdeu um único dos seus últimos 20 jogos oficiais (agora 21). E, no onze titular, o homem da meia final e que carimbou a passagem a esta final, Luuk De Jong, entrava em campo como sendo única alteração relativamente ao último jogo. Portanto, se Conte é visto como um alfaiate, Lopetegui tem de ser visto como um apotecário ao nível de Nostradamus pois analisou o adversário italiano e previu que o holandês iria comandar as tropas rumo ao sexto título europeu. Todavia, apesar disso, quem começou melhor até foi mesmo o Inter.
O jogo começou logo com um golo. Num lance típico do livro de Conte, a bola chegou rapidamente a Lukaku, em profundidade e a explorar a sua força e velocidade. Diego Carlos não teve pedalada para o belga e só conseguiu travar o avançado do Inter com uma falta. Primeiro tentou agarrar à entrada da área, mas não conseguiu. Já dentro da mesma e entre uma espécie de abraço, em esforço, pisou o calcanhar do dianteiro da equipa italiana. O lance foi ao VAR, que não teve dúvidas: a descalçar botas, não vale. Assim, deu indicações para que fosse marcada uma grande penalidade.
Chamado a converter o castigo máximo, sem tremer ou aparentar ter qualquer ar de nervosismo, Lukaku fez da marca dos 11 metros o primeiro da partida e inaugurou o placard. Foi um penálti sem espinhas. Bono, herói na semifinal diante o United, em que defendeu tudo o que havia para defender, ainda adivinhou o lado, mas a bola ia bem colocada, rente à relva, batida com tal força que não dava para chegar a tempo. Estavam jogados cinco minutos em Colónia.
(Lukaku, desde que mudou de ares e trocou Inglaterra por Itália, está de pé quente. Ou não fosse o seu golo número 34 esta época. Nesta altura, marcou o 7º na competição e estava a um de Bruno Fernandes. Em 33 jogos, na Liga Europa, Lukaku já fez balançar as redes por 20 vezes, 11 das quais nos últimos… 11 jogos.)
Se o golo foi madrugador, a equipa de Julien Lopetegui não demorou a responder. Logo aos 12’ chegou ao empate. O golo não surgiu numa jogada de insistência, mas antes numa sequência de perseverança ao nível de cruzamentos. Houve dois sinónimos, ainda assim. Navas e De Jong.
Primeiro, pela bota do veterano Navas (que parece ter ganho uma nova vida a lateral direito), que chegou à linha (em toda a honestidade, durante a maioria do jogo parecia que tinha jogado a extremo) no flanco direito e conseguiu cruzar, mas De Vrij conseguiu cortar para canto. A seguir, após a marcação do mesmo, a bola pingou para Diego Carlos, mas este achou por bem tentar fazer um remate acrobático. Porém, como nos diz a sabedoria popular, água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Ou seja, Navas foi novamente à linha no minuto seguinte e cruzou com conta, peso e medida para o miolo e, de cabeça, no coração da área, De Jong deu o empate ao Sevilha.
Só que falar na história de hoje é falar de golos. O jogo na primeira parte estava trancado a meio campo; uma equipa queria dominar com bola, ao passo que outra queria fazer estragos com transições rápidas. Porém, havia algo que as unia: a pressão na hora de recuperar a bola e muita gana em cada lance em disputa. Se no início da pandemia existiam algumas dúvidas quanto à intensidade do jogo sem adeptos nas bancadas, estas foram ficando dissipadas com o prolongamento dos campeonatos. Especialmente nas competições europeias. E hoje não foi exceção. Houve respingar entre jogadores, protestos na maioria das bolas disputadas, entradas um bocado ríspidas, várias vezes a roçar linha do cartão amarelo. Mas houve essencialmente lances de bola parada e cabeçadas certeiras à baliza.
Chegados à marca de meia-hora de jogo, o Sevilha estava a dominar ligeiramente o jogo a nível estatístico. Com o Inter a recorrer demasiado às faltas para controlar as incidências, o Sevilha ia aproveitando os lances de bola parada para causar perigo. E por causar perigo, entenda-se a cabeça de De Jong. Banega, que já se sabe que vai deixar o clube para ir rumo ao Qatar, cruzava à procura do holandês. Ensaiou uma, duas vezes. Até que à terceira, descaído sobre o lado direito do terreno, bombeou a bola para o segundo poste da área dos nerazzurri.
Aos 33’, de Jong aplica um belíssimo golpe de cabeça para o poste mais distante, colocando a equipa de Sevilha na frente do marcador. Se há golos bonitos, este foi um deles. Nem que seja porque parece ter sido executado em slow-motion, quase sem necessidade de edição num vídeo de Highlights de YouTube. Para este, é só colocar música eletrónica puntz, puntz e assistir ao número de visualizações subir.
Todavia, estava em campo um senhor chamado Godin. E o que nos diz a história da carreira deste centralão uruguaio? Que é temível no processo ofensivo no que às bolas paradas diz respeito. Ou seja, há que contar com o homem neste tipo de lances (ou momentos de jogo, de acordo com Jorge Jesus). Assim, aos 35’, lá estava ele a fazer das suas. Ou, por outras palavras, a fazer o empate, o 2-2.
Num lance de bola parada, Godin subiu até à área contrária para fazer aquilo que tantas vezes fez ao serviço do Atlético de Madrid: responder da melhor forma a um cruzamento/canto/livre. Brozovic bateu, o uruguaio elevou-se mais do que a concorrência, meteu a cabeça à bola e esta entrou no poste mais distante de Bono. Se o lance não pareceu estranho, tal sucede porque seis anos, na Luz, frente ao Madrid, ainda que tenha perdido o jogo, marcou da mesma maneira contra os rivais na final da Champions.
Assim, tanto jogadores como espetadores chegaram ao intervalo a precisar de uns momentos para respirar — nem que seja porque estávamos numa final e houve quatro golos no primeiro tempo em Colónia. O Inter entrou melhor, mais decidido, cortesia de um golo abrir de Lukaku. Depois, uma data de cabeçadas repuseram o equilíbrio do jogo, com o Sevilha a querer estar por cima do jogo, com bola, ao passo que o Inter procurava capitalizar no erro adversário em transições rápidas.
A história da primeira parte foi demasiado frenética para a batalha campal da segunda. Tirando o lance do golo, o que se viu foi um guardião do Sevilha a segurar a vantagem e o Inter sem conseguir ter clarividência para acompanhar o esforço do avançado belga na frente. No meio campo dos italianos, Gagliardini esteve um pouco apagado e nunca conseguiu acompanhar o argentino Banega. Barella, que funciona como elo de ligação com o ataque, esteve fora do jogo e mal em quase todos os capítulos (decisão, passe, pressão). Martinez, sempre disponível fisicamente, também não conseguiu ter espaço para fazer das suas. D’Ambrosio foi terrível e um dos piores em campo. E só Lukaku não chega.
No sentido inverso, Sergio Reguilón e Navas estiveram exímios nos corredores. Lucas Ocampos, enquanto o físico deixou, foi uma carga de trabalhos para Godín. Apenas Joan Jordán e Suso não corresponderam ao nível esperado, mas a verdade é que também não comprometeram. Luuk de Jong, ao marcar dois golos, tem de ser considerado o homem do jogo.
Ou seja, tudo somado e feitas as contas, seja numa competição ao estilo de torneio a oito em tempos de pandemia ou seja numa competição normal e a duas mãos, quando o Sevilha lá chega, é para se apostar que no final se dança o flamenco. O resto é conversa.
Bitaites e postas de pescada
Diego, que é que é isso, ó meu?
Na primeira parte, num lance em todo semelhante ao que deu origem ao golo da vitória, houve um ensaio. Um cheirinho daquilo que estava aí para vir. Só que aqui foi na sequência de um canto. Banega bate o dito, a defesa italiana corta, a redondinha pinga para a área, onde estava Diego Carlos, e o brasileiro, qual Jorginho que animou as areias de Portugal e do Brasil nos tempos em que o "Bola 7" animava as bancadas do Mundialito de futebol de praia da Figueira da Foz, quis dar numa craque e fazer o mesmo que o astro fazia no areal. Só que a coisa não correu bem e saiu um lance disparatado. Com a equipa a perder 1-0 e dentro da área pedia-se outro critério. Porém, uma coisa não se lhe pode negar: para vencer é preciso falhar primeiro. E, na segunda parte, foi o que foi. (Se bem que o pé do Lukaku fez 85% do trabalho).
De Jong, a vantagem de ter uma cabeçada letal
O holandês esteve em altíssimo plano nesta final. Já tinha estado de pé quente nas meias finais e esta noite volta a estar em destaque. Se a vitória desta noite acabou mesmo por acontecer, muito partiu do seu jogo de cabeça. Porque para saber cabecear não basta ser alto. O ex-PSV, aos 29 anos, está longe dos 32 golos marcados (em todas as competições) na última época. No entanto, esta noite encarnou o espírito de Mário Jardel. Sem guaraná e polémica, mas a fazer lembrar que a cada cruzamento "Jardel faz gol" de cabeça.
Fica na retina o cheiro a bom guarda-redes
Não é irlandês nem cantor. É guarda-redes. No entanto, segundo aquilo que fez em campo nos últimos jogos a contar para a Liga Europa, Bono, entre os postes, não fica atrás de Paul David Hewson, nome de nascimento do vocalista dos U2. O guardião espanhol esteve em evidência e se hoje se festeja o sucesso em Sevilha, muito se deve às suas prestações. Se frente ao Manchester United foi um dos melhores em campo e sofreu apenas um golo (de penálti) em 20 remates dos ingleses, esta sexta-feira saiu até à linha da grande área para parar uma locomotiva chamada Lukaku, que vinha embalada e prontinha para fazer o 3-2. Ficasse o Inter em vantagem naquele momento do jogo, a história, assim como esta crónica podia ser muito diferente.
Nem com dois pulmões chegava àquela bola
Diego Carlos, que passou pelo FC Porto B e no Estoril antes de rumar a França para ser orientado por Sérgio Conceição no Nantes, passou mal. Que seja público, não estava doente, mas após os 90’ de jogo é bem capaz de ter ficado com dores de cabeça. Além de ter provocado o penálti por claramente não ter tido pernas para ir atrás de Lukaku no lance do primeiro golo, ficou logo condicionado pelo amarelo. Depois, aos 65’, num lance semelhante, voltou a falhar nos 100m e só não deu novo golo porque Bono salvou o brasileiro. Contudo, verdade seja dita: o belga é um verdadeiro portento físico, um autêntico panzer, que está a evidenciar uma veia goleadora impressionante e que atualmente parece improvável. E há lances em que parece que o problema não é só de Diego Carlos, mas sim de qualquer defesa que se atravesse no seu caminho.
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