O basquetebol é um jogo de números. Pontos, ressaltos, assistências, roubos de bola, desarmes de lançamento, turnovers. Nos anos mais recentes, as folhas de estatística ganharam novas colunas e os "analytics geeks" ovacionaram de pé. Eficiência ofensiva e defensiva, percentagem de "true shooting", "usage rate" ou "hustle stats" são só alguns exemplos de estatísticas avançadas recentes que ajudam a tentar medir o que, durante muitos anos, foi intangível. Continua (e continuará) a existir muita coisa no jogo que não se traduz numa folha com números, como escrevi aqui em tempos, mas a comunicação social vai continuar à procura de formas de sublinhar o que de melhor e pior é feito por equipas e, sobretudo, por atletas.

Uma das estatísticas mais presentes nas notícias e redes sociais é... tcharaaan... o triplo-duplo. Lançam-se foguetes quando um jogador chega aos dois dígitos em três categorias estatísticas diferentes (habitualmente pontos, ressaltos e assistências), mas vale a pena pensar se estamos ou não a valorizar demasiado esse feito. Calma, seus 'lover boys' do Russell Westbrook. Não vou atacar ninguém. Já escrevo sobre o vosso menino, porque se impõe num artigo destes, mas este artigo não é sobre ele. É sobre nós. Nós, que vemos a expressão "triplo-duplo" e babamos. É só absurdo. Porquê? Porque nem sequer devia ser uma estatística.

"Somos escravos de números redondos", escreveram Tobias Moskowitz e L. Jon Wertheim no livro "Scorecasting: The Hidden Influences Behind How Sports are Played and Games Are Won". E somos mesmo. Por que ligamos tanto a números redondos? Por exemplo, por que raio sentimos que comprar um produto por €9,99 é diferente de comprar algo que custe €10,00? Que processo mental é este que nos faz olhar para isso dos números redondos com tanto simbolismo? E por que razão damos tanta importância aos dois dígitos? No basquetebol isso é evidente. Por que razão só nos lembramos dos 41 pontos de Giannis Antetokounmpo no jogo 4 entre Milwaukee Bucks e Detroit Pistons? E os nove ressaltos? Nove não é um número sexy, não é? Se fossem dez ressaltos, já seria notícia. Duplo-duplo de Antetokounmpo! 41 pontos e 10 ressaltos! Uau. Mas 41 pontos e 9 ressaltos? Fraquinho.

E que tal a exibição de Chris Paul, no jogo que terminou com a primeira derrota dos Houston Rockets na série frente aos Utah Jazz? Talvez se lembrem dos 23 pontos, mas também registou oito ressaltos, sete assistências, cinco roubos de bola e dois desarmes de lançamento. Se fossem 23 pontos, 10 ressaltos, 10 assistências e mais nada, teria direito a manchete: Rockets perdem apesar do triplo-duplo de CP3! O drama, o choque, o horror. Oito ressaltos e sete assistências é mau? E já pararam um segundo para pensar no quão difícil é roubar cinco bolas num jogo? E fazer dois abafos, sobretudo quando se tem apenas 1,83 metros? E quanto à exibição desta terça-feira de Damian Lillard, que valeu a eliminação aos Oklahoma City Thunder? Para além do "buzzer beater", os títulos falam de 50 pontos e dez triplos. Mas o base dos Portland Trailblazers registou sete ressaltos, seis assistências, três roubos de bola e um desarme de lançamento. Tudo números que impressionam... mas não são redondos.

É um facto. Dá-se demasiada importância aos números que enchem o olho e, sobretudo, aos dois dígitos. "A equipa A tem uma vantagem de dois dígitos sobre a equipa B e isso é uma barreira psicológica" ou "Cinco jogadores terminaram a partida com dois dígitos na coluna dos pontos marcados" são expressões que nos habituámos a ouvir (e a repetir), sem que pensássemos que dez só vale mais do que nove, exatamente na mesma medida em que nove vale mais do que oito. Um ressalto é um ressalto. Dez assistências é melhor do que nove? Sim. Tanto quanto onze assistências é melhor do que dez. Quem é que definiu que chegar aos dez em qualquer categoria era excelente e ficar pelos nove ou oito não merece ser destacado?

Se os 'media' dessem tanta atenção a esta narrativa naquela altura, «Magic» Johnson talvez fizesse um esforço para acabar a época de 1981/82 com média de triplo-duplo. Em vez disso, ninguém sabe que números teve, nem mesmo os adeptos dos Los Angeles Lakers. Eu poupo-vos uma pesquisa no Google. «Magic» somou médias de 18.6 pontos, 9.6 ressaltos e 9.5 assistências. Não são números extraordinários? Sim. Demonstram versatilidade e aquilo a que hoje chamamos de jogo "all-around". Alguém recorda esta época de «Magic» como um marco na história, em termos estatísticos? Não. Por causa dos malditos dois dígitos. Aposto que ele não se importa. Afinal de contas, foi campeão esse ano.

Voltemos ao início. O basquetebol é um jogo de números, mas é preciso interpretá-los. É preciso perceber que alguns marcos que nos atiram para os olhos são absolutamente aleatórios. Ter dez pontos de média numa época não é nada de especial. Este ano, 172 jogadores fizeram-no. Dez ressaltos de média não é assim tão exclusivo, embora apenas 16 atletas o tenham conseguido. E só um atingiu as dez assistências de média. Esse mesmo, 'lover boys'. O tal que tem que ser MVP só porque tem média de triplo-duplo. Antes de Russell Westbrook, que acaba de somar a terceira época consecutiva com média de triplo-duplo, apenas um jogador o fez na história da liga norte-americana: Oscar Robertson em 1960/61. Pois, nesse ano, o «Big O» ficou em terceiro na votação para o prémio de MVP. Acima dele ficaram Wilt Chamberlain, com estratosféricos 50.5 pontos e 25.7 ressaltos por jogo, e o vencedor da distinção individual, Bill Russell, com médias de 18.9 pontos e 23.6 ressaltos. Então por que é que Oscar Robertson não foi MVP de caras, se teve média de triplo-duplo e foi o único da história (na altura) a fazê-lo?

Demos aos números a importância que eles merecem. Olhemos para os jogadores com mais de 41 jogos (metade da fase regular) e mais de 25 minutos de utilização. Ter média de 22.9 pontos (19.º do ranking da NBA), 11.1 ressaltos (10.º na NBA e 1.º entre bases), 10.7 assistências (1.º na NBA), 1.9 roubos de bola (4.º na NBA) e 0.5 desarmes de lançamento (77.º na NBA e 23.º entre bases) é extraordinário. Isoladamente são números muito bons. Combinados são espetaculares. Palmas para Russell Westbrook. Mas o base dos Thunder também tem números maus e outros muito maus. Este ano lançou com uma eficácia de 42.8% (116.º na NBA) e apenas concretizou 29.0% dos triplos que tentou, o que o coloca na 117.ª posição entre... 117 jogadores com mais de três triplos tentados por jogo. E ele tentou quase seis (5.6) por partida.

Anthony Davis, que até teve uma utilização irregular nos New Orleans Pelicans por causa da novela do pedido de troca, acabou a época com médias de 25.9 pontos (10.º na NBA), 12.0 ressaltos (8.º na NBA), 3.9 assistências (57.º na NBA e 4.º entre postes), 1.6 roubos de bola (13.º na NBA), 2.4 desarmes de lançamento (2.º na NBA), 51.7% de lançamentos de campo (26.º na NBA) e... zero triplos-duplos. Desculpem, 'lover boys', mas Anthony Davis é muito melhor jogador do que Russell Westbrook. Já agora, quem também teve zero triplos-duplos esta época? Steph Curry, Damian Lillard, Kawhi Leonard, Karl-Anthony Towns, entre muitos outros, para além de todos os jogadores de... oito equipas da NBA: Brooklyn Nets, Charlotte Hornets, Chicago Bulls, Cleveland Cavaliers, Indiana Pacers, Minnesota Timberwolves, Phoenix Suns e Utah Jazz.

Russell Westbrook foi o único jogador da NBA a terminar a época com média de triplo-duplo (22.9 pontos, 11.1 ressaltos, 10.7 assistências) e isso é excelente. Não por ser média de triplo-duplo, mas por Russ ter conseguido médias isoladas de 22.9 pontos e, em especial, de 11.1 ressaltos e 10.7 assistências. E não é por chegar aos dois dígitos em cada categoria que o torna especial. Para se marcar quase 23 pontos de média na NBA, é preciso ser bom. Para se conquistar mais de onze ressaltos de média na NBA, é preciso ser muito bom. Para se somar quase onze assistências de média na NBA, é preciso ser excelente, até porque só um jogador o conseguiu, e ter colegas que metam a bola no cesto.

Sabiam que LeBron James foi o único - sim, 'lover boys', o único - a terminar a época com mais de 25 pontos (27.4), oito ressaltos (8.5) e oito assistências (8.3)? Isso não é especial? Mais uma vez, quem é que definiu que chegar a um dez redondo em qualquer categoria é excelente e ficar pelos nove ou pelos oito não merece ser destacado? Há limite mínimo para a excelência? Alguém me explica por que razão os 22.9/11.1/10.7 de Westbrook valem mais do que os 27.4/8.5/8.3 de LeBron? Ou do que os 25.9 pontos, 12.0 ressaltos e 2.4 desarmes de lançamento de Anthony Davis? Afinal de contas, 25.9 é melhor do que 22.9 e 12.0 é melhor do que 11.1. São as 10.7 assistências que fazem a diferença? Os 2.4 desarmes de lançamento, que é só o segundo melhor registo da NBA, valem pouco?

Triplo-duplo não tem que ser uma conquista. E é cada vez menos invulgar. Entre 1990 e 2010, a NBA registou uma média de 35 triplos-duplos por temporada. Entre 2011 e 2017, a média subiu para 57 triplos-duplos por época. Em 2017/18, houve 108 triplos-duplos por 31 jogadores diferentes e em 2018/19 registaram-se 127 triplos-duplos por 37 jogadores diferentes. O estilo de jogo atual é mais rápido, mais orientado para o ataque, com mais triplos e consequentes ressaltos longos e há cada vez mais posses de bola. Hey, malta, o Lonzo Ball precisou de apenas 16 jogos na carreira para registar dois triplos-duplos e um tal de LeBron James só o conseguiu ao fim de 119 jogos. [inserir emoji a encolher os ombros]

Um triplo-duplo é sinónimo de versatilidade e de domínio de duas áreas do jogo (ressaltos e assistências, já que marcar dez pontos não é assim tão complicado). Mas um triplo-duplo, por si só, não pode ser considerado um dado estatístico. É um conjunto de números aleatórios. Não podemos colocar um peso excessivo nos dois dígitos, até porque somar três roubos de bola num jogo (o líder da liga, Paul George, acabou a época com média de 2.2) ou três desarmes de lançamento (o melhor neste ranking, Myles Turner, teve média de 2.7) é tão ou mais difícil do que, por exemplo, marcar dez pontos. Tiremos, portanto, o peso dos dois dígitos para celebrar o que quer que seja.

Paremos de considerar dez pontos um marco estatístico. Paremos de considerar dez ressaltos um marco estatístico. Paremos de considerar dez assistências um marco estatístico. E a combinação das três não é uma estatística. É só uma combinação de três números aleatórios. O triplo-duplo é uma narrativa criada pelos 'media'. Uns, como o Andray Blatche, deixam-se levar por essa narrativa e fazem figuras ridículas. Sejamos melhores que Andray Blatche. O jogo tem tantas variáveis que se torna redutor agarrarmo-nos a expressões como "triplo-duplo" para analisar o que quer que seja e muito menos para definir excelência. Qual é o valor de um triplo-duplo? Na verdade, não vale nada.