“É o único desporto no qual durante as provas, competimos, dormimos e comemos. É especial”. Charles Caudrelier, velejador francês, de 48 anos, resume desta forma, ainda em terra, o paradoxo do dia-a-dia de um atleta no decurso de uma regata em solitário.

Skipper do Maxi Edmond de Rothschild, um gigante do mar abrasonado que voa pelos mares, cuja versão inicial passou por Lisboa em 2018 e recebeu o SAPO24, foca a atenção no período do dia em que fecha os olhos, descansa o corpo e desliga a mente enquanto compete.

“Temos de dormir. É a chave do sucesso”, frisa em conversa com o SAPO24, no porto de Saint Malo, na Bretanha, França, antes da partida para a 12.ª edição da Route du Rhon, regata a decorrer enquanto o leitor navega pela conversa que se segue.

A mítica regata transatlântica em solitário atraiu uma frota de 138 barcos e velejadores, mas nem todos chegam ao fim. Largou no dia 9 desta cidade portuária fortificada por muralhas, albergue de corsários em tempos passados, e culminará em Pointe-à-Pitre, em Guadalupe, território ultramarino francês no sul do mar do Caribe, com passagem pelos Açores (já concretizada). Tudo aponta para a chegada no dia 16 ou 17, mas a palavra final está do lado dos ventos.

O botão on e off. Aprender a dormir com a ajuda de um mergulhador

“Estamos molhados, cansados, exaustos e com frio, o cérebro comete erros”, asseverou. “Por isso, tento dormir no meu bunker sempre que tenho uma oportunidade. Dez minutos, vinte minutos, o máximo que possa”, detalha o vencedor, entre outras provas, do Solitaire du Figaro (em solitário) e de duas Volvo Ocean Race (VOR), regata de circum-navegação, em 2011-12 (equipa Groupama) e em 2017-18 (Dongfeng).

“É um botão. On, off. Aprender a dormir quando queres é o objetivo”, atesta. “Por vezes, não durmo bem... tive de treinar”, reconhece. E recorreu a ajudas. “Aprendi com um mergulhador, o Arnaud Jerald, campeão do mundo de mergulho”, confidencia. “Quando se mergulha temos de desligar e abstrair. Ao dormir, tenho de ter a capacidade de desligar e esquecer o resto”, compara.

A gestão nem sempre é fácil. “Sei quando é a melhor altura para dormir. Mas isso altera-se com o jet lag, logo, é melhor dormir bastante antes da regata”, acentua.

“A vela é o único desporto em que precisamos de dormir enquanto competimos”, reforça. “Se pudermos, devemos fazer um descanso, nem que seja 20 minutos. E na vida normal, também. Aproveitar um trajeto em que viajes de táxi, por exemplo, sentes-te melhor no fim do dia”, assegura.

Mas não basta apenas deixar cair as pestanas e mergulhar na levitação. “Não é meditação”, chama a atenção. “É tudo sobre respiração”, atesta. “Faço um scan ao corpo dos pés à cabeça e tento retirar a pressão. Sentir os pontos todos, pescoço e braços. Respirar, é natural e é o melhor. Quando estamos em stress, bloqueamos a respiração, o que acelera esse stress”, explica Caudrelier.

Depois, releva os segredos reservados para a hora de pousar os ossos enquanto veleja. “Foco um bom momento da vida, uma música ou um quadro. É o melhor para acalmar e mudar do estado de ansiedade para a calma”, conta. “O meu treinador, mergulhador, adora música e quando mergulha pensa nessa música”, exemplifica. “É necessário treinar. É tudo sobre treino”, garante.

Qualidade não é quantidade

A conversa é transferida do contentor de apoio da equipa para o cockpit do trimarã com 33 metros de comprimento, 23 de largura e 15,5 toneladas de peso, batizado de Gitana 17.

Nos preparativos desta Transact, o velejador francês, oficial da marinha mercante, recorreu também aos ensinamentos de François Duforez, médico especialista na gestão do sono e antigo responsável na seleção francesa de râguebi.

“O mais importante para o Charles é saber que tipo de sono tem”, afiança Duforez, ao juntar-se à conversa, já a bordo do Maxi Edmond Rothschild. “A história de Charles é diferente de outros skippers. É um bom dorminhoco”, diz com um sorriso nos lábios. “Para ele, é melhor a qualidade do que quantidade de sono”, caracteriza.

“O barco está transformado num laboratório e num ecossistema. Tem diferentes soluções e há diferentes formas de dormir. O ambiente é branco e tem muito espaço quando comparado com outros barcos”, analisa. “Se estiveres um ambiente cinzento e escuro, é difícil para o humor e para a tomada de decisão”, compara.

Reconhece ser “difícil dormir no barco”, é “necessário dominar os pequenos detalhes para aumentar a performance na segurança”, mas “somos mais certeiros se estivermos mais descansados”, assegura. “Há risco e temos de geri-lo. E temos de ter descanso” para o fazer, acrescenta. “Um vencedor é um bom manager do seu sono”, destaca François Duforez.

As refeições a bordo entram também na equação da gestão do descanso. “Qual a comida que potencia o melhor sono, do açúcar às proteínas”, realçou.

E na junção dos ingredientes para o sucesso, acrescenta ainda o já referido jet lag, com o qual um velejador se depara à medida que atravessa de uma margem de um oceano para a outra (Atlântico), do frio para o calor, de uma estação do ano para outra.

O sonho de criança

Sentado no banco no centro da embarcação, Charles Caudrelier parece estar a levitar e é a partir daquele ponto alto que controla tudo.

As suas ambições ao participar nesta regata em solitário não diferem dos desejos de muitos daqueles que inscrevem esta prova especial na sua lista de “quero fazer”.

Trata-se de uma regata cujo tiro de saída inaugural entrou para o “passeio das lendas” após a vitória do canadiano Mike Birch, em 1978, alcançada com uma vantagem de 98 segundos após 23 dias, 6 horas e 59 minutos no mar, recorda o antigo vencedor do Solitaire du Figaro, em estreia na Route du Rhum.

Para Caudrelier, a travessia representa, antes de mais, “um sonho de criança”. “Comecei a velejar porque, nos anos oitenta, estava em casa a ver televisão e disse que queria fazer um dia esta regata. Tenho 48 anos... Foi uma longa espera e tenho sorte de estar aqui”, afirmou pouco antes da partida, em Saint Malo, cidade bretã conhecida por envelhecer vinho no fundo do mar.

Receando sobretudo “os perigos de colisão e de magoar alguém”, afirmou não ter grandes medos. “Imaginamos o oceano, as tempestades e as ondas, mas estou tranquilo e confiante. Tenho mais medo quando subo a montanhas. São maiores os riscos”, garante.

“Quando velejamos sozinhos temos medo de colisões e é perigoso andar sozinho. Mas não há a pressão da regata, da dormida e do descanso. Há riscos. Treinei sim, fiz tudo como se estivesse sozinho, mas tive sempre alguém por perto quando ia dormir”, relembra.

Tempo para uma pausa na conversa. Andamos para a frente no tempo. A regata Route du Rhum partiu no passado dia 9 dos mares da Bretanha, depois de três dias de adiamento devido ao mau tempo, e já completou mais de dois terços da rota, aproximando-se a passos largos de Pointe-à-Pitre, na ilha de Guadalupe, no Caribe, onde se espera que venha a atracar até 5.ª feira.

“Não chegar a fim não está no pensamento”

Voltamos ao ponto de partida e à conversa prévia com Charles Caudrelier. Leva um propósito a bordo do Maxi Edmond Rothschild. “Não chegar a fim não está no pensamento. Se não ganhar é porque não velejei tão bem e é mau para a equipa. É um trabalho equipa, como na Fórmula 1. 90% do trabalho foi feito antes da regata. A mim cabe-me os 10% últimos. Mas são os mais importantes, um erro...”, diz, deixando no ar o peso da consequência. “Temos de ser organizados e não cometer erros, porque o mais pequeno que se cometa pode compromete tudo e é o fim”, conclui.

Bater o recorde de velocidade não está no plano do velejador francês. “Muitos falam de recordes, mas não temos isso em mente. Se o vento permitir, talvez dê, se não, será noutro dia”, suspira. Será, seguramente, numa próxima edição, como se já percebeu pela previsão de chegada.

Se for o primeiro a pôr o pé em solo firme, será este o pináculo da carreira de Charles Caudrelier, ele que nunca imaginou "também vencer a VOR duas vezes”, compara.

Para o fim, a pergunta muitas das vezes é feita no início das conversas sobre mar e travessias. E se tivesse de escrever uma mensagem para colocar numa garrafa em Saint Malo e enviar para Guadalupe, o que escreveria. “Não tenho ideia...”, sorriu. “Digo quando chegar”.

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*O jornalista viajou até Saint Malo a convite da equipa Maxi Edmond de Rothschild