Numa época onde se multiplicam os milhões por um único jogador, a questão "estará o futebol a caminhar para um futuro sustentável" começa a ganhar cada vez maiores contornos. Para os fãs, a ordem de fatores pouco muda: quer o jogador custe 1 ou 100 milhões, o importante é que os faça felizes, seja para marcar golos ou para impedi-los. Mas para os atores do desporto, sejam clubes, agentes ou jogadores, esta situação está longe de ser tão linear.
Uma das conferências a ter lugar nesta edição inaugural do Soccerex Europe — a primeira de três a ocorrer em Portugal — procurou debater o atual momento do futebol no que concerne ao panorama das transferências.
O painel “Football’s Changing Transfer Market”, moderado por Daniel Cravo, parceiro sénior na firma de advocacia especialista em direito desportivo Cravo, Pastl & Balbuena, contou com ilustres convidados, nomeadamente Theo van Seggelen — Secretário Geral da FIFPRO (Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol) —, o ex-jogador Deco — CEO da empresa de agenciamento D20 Sports —, Erkut Sögüt — Fundador da agência Family & Football e da instituição Football Agent Education, sendo agente de jogadores como Mesut Özil ou İlkay Gündoğan —, e Esteve Calzada, CEO da empresa de agenciamento e de marketing Prime Time Sports.
Foi este último que deu início à conversa com o Football Transfer Review, iniciativa da Prime Time Sports que analisa em detalhe o comportamento das cinco principais ligas europeias no mercado de transferências. Estudo feito pela primeira vez em 2009, a análise inaugural dava conta de 1,3 mil milhões de euros investidos na janela desse ano, um número impressionante à época, mas que se demonstraria parco em relação aos 4,7 mil milhões gastos neste verão pelos clubes das cinco principais ligas europeias.
Janela de transferências absolutamente estratosférica, este verão foi responsável por três das contratações mais caras de sempre do futebol — João Félix, Antoine Griezmann e Eden Hazard — sendo este o quarto ano consecutivo em que a compra mais cara ultrapassou 100 milhões de euros. "Estes números gigantes significam que, neste verão, vimos três equipas a investir mais do que nunca”, disse Calzada, referindo-se ao Atlético de Madrid, Barcelona e Real Madrid.
Mas por detrás desta visão glamorosa, existe uma realidade bem mais negra. Depois dos números de Calzada, vieram os de van Seggelen, Havendo perto de 70 países onde futebol profissional é jogado pelo mundo, que têm ao todo entre 60 e 65 mil praticantes, 50% destes, disse o secretário geral da FIFPRO, são jogadores profissionais a jogar e treinar todos os dias e que não recebem mais do que 2000 dólares, sendo que 50% deles nem sequer são pagos ou são pagos com atraso".
Para além destes dados bem menos animadores, van Seggelen revelou ainda que as assimetrias decorrente são de tal ordem que 98% dos jogadores de elite de todo o mundo estão a jogar na Europa. "As regulações das transferências estão completamente ultrapassadas e as ligas, a ECA, a UEFA, a FIFA e as confederações tem de se aperceber que temos de mudar, porque não é normal que tenhamos apenas os jogadores de topo na Europa", defendeu o secretário-geral da FIFPRO, dizendo que esta “tem de ser uma preocupação dos jogadores, dos agentes, das federações, das ligas, mas também do público".
Calzada, porém, lembrou um fator que tem refreado o ímpeto das contratações e que tem impedido que estes números sejam ainda mais maiores: o estabelecimento do Fair Play Financeiro da UEFA, medida que, segundo a organização, entre outros aspetos, passou a obrigar os clubes a “respeitar uma gestão equilibrada em break-even, que por princípio significa que não gastam mais do que ganham, restringindo a acumulação de dívidas”.
"Acho que podemos todos concordar que Fair Play financeiro mudou completamente o panorama” e “para melhor”, frisou o CEO da Prime Time Sports, lembrando que “no passado, tinham-se acionistas a injetar dinheiro no clube e a contratar mais e mais”. Agora, afirma, começou a dar-se um fenómeno curioso: os grandes clubes precisaram de se habituar a vender jogadores. "Normalmente veríamos clubes como o Porto, Sevilha, Benfica, Mónaco, nessa situação, são clubes tradicionalmente vendedores. Mas isto mudou completamente. É interessante ver nos clubes mais vendedores Juventus, Real Madrid e Barcelona. Qualquer clube é um clube vendedor hoje em dia, é assim que se financiam os gastos", concluiu.
Agentes, jogadores e clubes: uma relação a três que tem de ser controlada
A questão da desregularização do mercado, porém, não passa apenas pelas fortunas que os clubes despendem em jogadores. De acordo com Erkut Sögüt, existe um fenómeno paralelo com os agentes dos jogadores.
"Não há um sistema de regulação central para a atividade no mundo e cada federação está a criar os seus próprios regulamentos", criticou o agente, que diz ser demasiado fácil começar a exercer a profissão, atualmente. “É só registares-te, pagares 400 libras e começar a representar o futuro de um jogador de futebol", revelou Sögüt lembrando que, "se como treinador, tens de atingir níveis de educação para trabalhares ao mais alto nível", no caso dos agentes deveria ocorrer o mesmo.
Fundador da Football Agent Education, Sögüt diz ser necessária maior formação para os agentes e mais transparência nos negócios, tendo a FIFA de intervir nessa área. A esse respeito, o agente não deixou de recordar que a má fama que a sua profissão tem vindo a granjear é injusta e muitas vezes veiculada pelos clubes, que são tão ou mais culpados de más práticas.
Para Sögüt tem de haver regulações e punições para os agentes, "mas as mesmas regras têm de ser aplicadas aos clubes", pois “se um dirigente ou um treinador estão a dividir dinheiro com os agentes, deviam ser banidos do futebol para o resto da vida. Mas não existe nada disso, podem fazer o que quiserem. Têm as suas contas nas ilhas Caimão, fazem o que querem, e culpam os maus agentes".
Segundo Theo van Seggelen, chegou a haver uma reunião em 2012 entre a FIFPRO e as restantes organizações para se criar regulação conjunta, onde o consenso era que “um agente não podia trabalhar para o clube comprador, o vendedor e o jogador”, só podendo ser “agente duma das partes". Contudo, um grande clube que estava a tomar parte nas negociações acabou por bater o pé, dizendo que pagava “aos agentes o que for necessário para ter os jogadores”, pondo fim ao processo.
O cúmulo do descontrolo começou-se a manifestar, segundo Deco, no Brasil, onde foi criado um novo modelo chamado “comprar representação”, que no fundo é haver “agentes dos agentes”. "Alguns agentes assinam com jogadores jovens e passado algum tempo vão ter com outros agentes para vender uma procuração", disse o ex-futebolista português, considerando tal ideia “um absurdo”.
“A representação de um jogador para mim é uma responsabilidade, é um trabalho com que nos comprometemos, ainda mais com jogadores jovens sem instrução ou conhecimento", defendeu o CEO da D20 Sports, admitindo que se vive um momento onde é mais árduo conter a vontade dos agenciados em fazer movimentos de carreira arriscadas. De acordo com Deco, esta não é só uma era dos milhões, como também da informação. “Os jogadores de hoje são mais informados, sabem o salário que os outros ganham, aquilo que os grandes clubes pagam”, explicou o ex-futebolista português, sendo, portanto, difícil de gerir a sua ansiedade e a sua vontade de dar passos maiores do que a perna, pois “não se faz uma carreira de um dia para o outro”.
No entanto, mais do que controlar o ímpeto dos jogadores, Deco diz que há que acautelar o seu bem-estar pois, mesmo que alguns joguem em ligas de topo e outros não, “todos são jogadores profissionais da mesma forma, com os mesmos direitos e deveres". Apesar dos gastos desenfreados dos clubes, o agente valoriza o trabalho de redistribuição financeira nas ligas europeias. "Não é preciso jogar no Barcelona ou no Real Madrid para ter uma carreira de sucesso".
Pensar uma equipa de sucesso
Foi para debater temáticas como o lado negocial e mais calculista do futebol que um evento como a Soccerex foi pensado. Mas não só. Durante a tarde, duas lendas reuniram-se para dar uns toques sobre o que constitui a anatomia de uma equipa vencedora. De um lado, Marcos Senna, médio brasileiro que fez do Villarreal sua casa — sendo agora embaixador do clube — e se naturalizou espanhol, fazendo parte da célebre armada que tomou o Euro 2008 de assalto. Do outro, despindo o fato de CEO, o nosso “Mágico” Deco, alquimista da bola que espalhou mostrou os seus dotes no Porto europeu de Mourinho e no Barcelona extraordinário de Rijkaard, inscrevendo-se também na história nacional ao fazer parte da intrépida turma que quase venceu o Euro 2004.
Numa conversa mediada por Pedro Pinto, os dois ex-jogadores partilharam como é que as equipas onde os dois respetivamente se inseriram se tornaram vencedoras. Falando em relação à seleção espanhola — que, recorde-se, venceria depois o Mundial 2010 e o Euro 2012, num triunvirato inédito —, Senna disse que a mudança fundamental para a seleção espanhola, que tinha o talento mas não os títulos, foi "a mentalidade ganhadora" que o selecionador Luis Aragonês transmitiu à equipa, algo que permitiu ao conjunto ultrapassar jogos que noutras condições consideraria perdidos à partida.
Já Deco recordou que "quando uma equipa ou uma seleção começa a chegar perto de competições importantes e fases finais” esse músculo de vencer começa a formar-se, sendo que o percurso de Portugal desde o Euro 2000 entrou num ascendente que desembocou na conquista do Euro 2016. No caso do Porto, o ex-jogador disse que o clube "teve uma geração que não é fácil de encontrar", com uma equipa baseada num misto de jogadores jovens e outros com experiência, alguns acima da média para o campeonato português, para além de um "treinador [Mourinho] com uma mentalidade absurda, quase fora da realidade, uma forma de treinar quase revolucionária e uma forma de encarar os jogos sabendo os pontos fortes e fracos da equipa".
Para estabelecer uma equipa de sucesso, os dois ex-jogadores estabeleceram três variáveis que têm de estar em harmonia: talento individual, capacidade do treinador e organização da estrutura.
Quanto ao primeiro ponto, os dois convidados concederam que todas as grandes equipas têm vedetas, mas que isso pouco afeta o quotidiano do balneário, sendo uma questão mais empolada pela imprensa. Tendo tido o papel de protagonista em alguns clubes, o antigo médio português deixou claro que "todos os jogadores têm consciência do valor que têm e dos colegas", mas que, podendo haver um ou outro jogador com mais talento, o que interessa é vencer. "Não me importava quem marcava, eu queria era vencer. Se fosse preciso fazer o sacrifício para esse jogador com essa qualidade especial para que ele pudesse ajudar a vencer campeonatos e títulos, isso era o que mais importava", disse o agora agente. Senna concordou, reforçando: "Independente da figura, o que a gente quer é ganhar".
Contudo, uma equipa não se faz apenas de jogadores, sendo o treinador uma parte essencial do sucesso. O ex-jogador do Villarreal disse que a relação com o treinador é "um plus" para vencer, pois pode haver "um clube bem estruturado, com grandes jogadores”, mas “não se obtêm resultados se não houver 100% confiança no treinador". Mais do que o lado humano, é uma mistura de "pulso firme" e "empatia" com o grupo. Nessa matéria, Deco recordou que até mesmo as grandes equipas de ADN vencedor "naturalmente acabam por cair num certo comodismo, perde-se a sede", sendo a capacidade de gestão do treinador "fundamental em todos os sentidos", às vezes até mais importante do que a própria qualidade do treino.
Por fim, a própria estrutura do clube afeta o rendimento da equipa. Senna deixou claro todo o ambiente à volta do jogar é potencialmente invasivo, sendo que "quantos menos problemas um jogador tiver, melhor ele vai atuar, melhor ele vai treinar. Se o clube tiver uma ótima estrutura e o mínimo de problemas, menos afetado vai estar o jogador". Foi, justamente, o bom exemplo do Villarreal o que convenceu o antigo médio a ficar na pequena localidade espanhola, ele que apenas queria usar o clube como ponte para a Europa quando veio do São Caetano do Brasil, mas acabou por recusar-se a sair. Deco partilhou da mesma opinião, deixando também um elogio aos clubes do futebol português que, apesar de "terem muito por fazer", têm "melhorado bastante em termos de estrutura".
De resto, os dois ex-jogadores puxaram dos galões e acabaram por dizer também quais foram as características que trouxeram às suas equipas e que contribuíram para o seu sucesso. Marcos Senna considerou ter trazido "disciplina e trabalho árduo" às equipas onde jogou assim como grande foco, características essenciais para ajudar uma equipa a bom porto. Deco concordou e ainda complementou com um ingrediente especial: "o facto de querer vencer de verdade, de não aceitar a derrota durante o jogo", algo que "os grandes jogadores têm".
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