Num ano marcado pela ausência de adeptos nos estádios devido à pandemia do novo coronavírus, se algo positivo podemos extrair deste ambiente contranatura recai na rara beleza de se conseguir escutar a sonoridade tão típica do mundo bola. Uma musicalidade que, de outra forma, não estaria ao alcance do ouvido mais tísico do adepto do sofá.
E são vários os tons destes sons irrepetíveis. Desde logo, no “joga”, dado pela indicação do árbitro Hugo Miguel ou no “não é...”, vindo da boca de Jorge Jesus, ao discordar da equipa de arbitragem após esta assinalar “fora” a uma bola conduzida pelo pé de Darwin Núñez, caída para lá da linha lateral.
Sente-se nas risadas de Corona, numa reposição de bola, audível como se o médio portista estivesse à nossa frente e um “cai, ca....”, um impropério tão próprio das emoções à flor da relva, um pedido vindo de uma voz anónima, saída, pelo menos assim pareceu, da cadeira ao nosso lado.
E, por fim, o sonido, por duas ocasiões, do esférico a beijar as redes à guarda de Vlachodimos (Benfica), acompanhado pela magia da palavra “golo”, em duplicado, sem retirar mérito aos decibéis do estrondo da bola ao embater na junção da barra com o poste nas costas do guarda-redes argentino do FC Porto, Marchesín.
Embalados por uma canção de amor, “Stand By Me”, imortalizado por Ben E. King, cantada por um coro ao estilo clássico de “Gospel”, Porto, na qualidade de visitado, e Benfica, perfilharam-se em campo para a 42. ª edição da Supertaça “Cândido de Oliveira”, um superclássico do futebol português.
Hugo Miguel parecia dançar enquanto escrevia no relvado, com o spray, o número 61919, um pedido de apoio aos profissionais de saúde no combate à Covid-19.
Aveiro, terra de finais
O Estádio Municipal de Aveiro tem sido o palco de eleição da Federação Portuguesa de Futebol para receber o jogo do terceiro troféu nacional. Algo que já sucedeu por 10 vezes a partir de 2001, ano em que a prova passou a ser disputada num só jogo.
Foi nesse mesmo estádio desenhado pelo arquiteto Tomás Taveira que Porto e Benfica se encontraram pela última vez (2010). O encontro que tem lançado a época, este ano antecedeu as festividades do Natal e do Fim do Ano.
O peso da história inclinava, à partida, o troféu para os azuis e brancos. Somavam 21 taças, até então, contra 8 das águias. E em 11 finais da Supertaça entre as duas equipas, o FC Porto conquistou o troféu por 10 vezes.
Quando Marega, homem da frente dos Dragões encostou a cabeça a Otamendi, central que veste de encarnado, à memória do adepto surgiu outras finais “quentes” entre os dois clubes. Foi um só frame. Nada mais de especial.
Aos 25’, Taremi é derrubado, na área, pelo guardião benfiquista. Pede-se penalidade (som bem audível por parte do banco de suplentes portista e restante comitiva autorizada a entrar no recinto). No lance, foi, inicialmente, assinalado fora-de-jogo. Pausa. Hugo Miguel coloca o dedo no auricular e pôs-se à escuta. A primeira falta seria retificada pela VAR. Penalidade. Golo. Sérgio Oliveira inaugura o marcador. Ouvem-se gritos vindo das bancadas e do banco.
O pé esquerdo de Grimaldo
À festa comedida de Sérgio Conceição, Jorge Jesus respondeu... com braços cruzados.
Grimaldo, daria, no entanto, e de imediato, um sinal contrário. Iniciou o duelo particular com Marchesín, guardião que viria a impedir, de novo, o golo ao defesa esquerdo encarnado, no segundo tempo, na sequência de um livre. Seria o espanhol, o único com registos de remates, a abanar a baliza portista, em mais um livre.
Jorge Jesus tinha avisado, na antevisão, para um “jogo estratégico”. Um remate enquadrado nos primeiros 45 minutos traduzia essa antecipação.
Um pontapé, do meio da rua, de Uribe e outro de Otávio, contrariaram o oráculo anterior. O grego na baliza da equipa da Luz brilhava. Na outra baliza, o seu homólogo não quis ficar atrás e voou para a bola vinda da bota de Grimaldo (o tal livre).
Atingida uma hora do jogo, a primeira mexida nas águias. O suíço Seferović foi apresentado como a chave da solução (entrou para o lugar do enferrujado Rafa), mas pouco acrescentou a um Benfica “ainda a 50%”, assim diz o seu timoneiro.
Otamendi fez o corte da noite ao tirar com o pé o golo da cabeça de Uribe, milésimos de segundos depois de mais uma grande defesa do último homem da defesa encarnada.
De livre, à entrada da área, Grimaldo, quem mais, sente a bola a bater, com estrondo, no ferro. Fechou, à sua conta, e do Benfica, as despesas de remates. Três, todos de pé esquerdo.
Uma lotaria do Natal saída do banco
Sérgio Conceição, havia, entretanto, mexido na equipa. Luis Diaz, ajudado por Tony Martinez, igualmente entrado em campo, seria a lotaria de Natal. Ao minuto 89. O ex-Famalicão “rouba” a bola no meio-campo, tem ímpetos de correr para a baliza, volta atrás, entrega o esférico em Corona, este emprestou maturidade ao lance, coloca a redondinha no pé esquerdo do sul-americano que pontapeia para as redes. Estava feito o 2-0 para os Dragões.
“Golooooo”...escuta-se, alto e bom som. O grito veio do banco e das bancadas.
Seguem-se cânticos. De quem, se não há ninguém no estádio. A televisão mostra. São os elementos do staff portista e os suplentes a fazerem o papel de adeptos.
Apito final. Fim de jogo. Inicio de festa para o FC Porto. Clube nortenho soma a 22.ª Supertaça, em 42 disputadas. Sérgio Conceição, treinador campeão nacional e vencedor da Taça de Portugal, celebra o terceiro título num ano em que os adeptos não celebram nos estádios. E soma a segunda Supertaça, igualando Vítor Pereira.
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