Foi o tema que marcou a discussão do primeiro orçamento da nova legislatura. A descida do IVA da eletricidade para consumo doméstico marcou a agenda do princípio e ao fim e aquilo que que começou como um debate que todos podiam entender acabou num xadrez cuja lógica se tornou difícil de acompanhar.

Com o orçamento fechado - e aprovado, não há spoilers possíveis: nenhuma das propostas de redução do IVA na fatura da eletricidade foi aprovada; duas chumbaram em plenário (PCP e Bloco de Esquerda) e uma foi retirada na Comissão de Orçamento e Finanças (PSD).

Os acontecimentos que levaram a este desfecho concentraram-se em quatro dias - de 3 a 6 de fevereiro, com uma reta final particularmente intensa, entre a madrugada de quinta-feira e a votação final no mesmo dia. Dias, e noites, com mudanças de posição, volte-faces inesperados e acordos e desacordos improváveis.

Porque esta foi uma discussão importante não apenas pelo tema, mas também por aquilo que revelou da atual conjuntura política, vamos passo a passo revisitar - e contextualizar - o que aconteceu na última semana.

O que propunham os partidos? Este era o ponto de partida

O PSD apresentou uma proposta de redução do IVA de 23% para 6% “exclusivamente para consumo doméstico”, a partir de 01 de julho, mediante contrapartidas que permitissem manter o objetivo de um saldo orçamental de 0,2% do PIB.

Bloco de Esquerda propunha a descida da taxa do IVA da eletricidade e do gás natural de 23% para 13% a partir de julho, e que até ao final da legislatura fosse atingida a taxa reduzida de 6%, com a contrapartida de que fosse aumentado o IVA nos hotéis.

Já o PCP pedia a redução do IVA para todos — doméstico e não doméstico — para 6% sem contrapartidas.

Quando começou a discussão?

A 3 de fevereiro, na Comissão de Orçamento e Finanças, alargando-se depois ao plenário onde se deram as votações finais, a 6 de fevereiro.

A sequência dos acontecimentos

3 de fevereiro: Arrancam as votações na especialidade das alterações propostas ao Orçamento do Estado para 2020, onde se incluem as de redução do IVA da eletricidade.

O PSD diz que quer compensar a descida do IVA com contrapartidas, propondo cortes de 21,7 milhões de euros em gabinetes ministeriais, 98,6 milhões em consumos intermédios e admite que a medida possa implicar uma redução do saldo orçamental até 97,4 milhões de euros, “sem comprometer o objetivo de um saldo orçamental de 0,2% do PIB”.

No entanto, o partido liderado por Rui Rio vê logo chumbada a proposta de redução da despesa dos gabinetes ministeriais em 21,7 milhões de euros. Apesar disso, o partido compromete-se a "trabalhar até ao último minuto" pela redução do IVA na Luz.

5 de fevereiro: O PSD mostra-e disponível para substituir as contrapartidas para compensar a redução do IVA na eletricidade por outras que mereçam o apoio maioritário no parlamento e avança com a proposta de um corte menor nos gabinetes ministeriais — de 8,5 milhões de euros em vez dos 21,7 milhões chumbados anteriormente — e um ajustamento no excedente orçamental de 0,25% para 0,20%. A par, os sociais-democratas alteram a entrada em vigor da medida para 01 de outubro, e não em 01 de julho, como previa a proposta inicialmente.

É nesta altura que o CDS anuncia que se vai abster na proposta do PSD para baixar o IVA na luz, assim como na parte das contrapartidas com que os sociais-democratas pretendem compensar a perda de verbas.

O PSD vê neste dia chumbadas as contrapartidas que apresentou. A proposta que visava a redução das despesas dos gabinetes ministeriais foi rejeitada com os votos contra de PAN e PS, a abstenção de CDS-PP e PCP, e o voto favorável de PSD, Iniciativa Liberal, Chega e BE, na votação na especialidade na Comissão de Orçamento e Finanças. A entrada em vigor da medida apenas em 01 de outubro também foi rejeitada, tendo contado com os votos contra de PCP, PS e PAN, a abstenção de CDS e os votos a favor de PSD, Chega, BE e Iniciativa Liberal.

É neste contexto que o PSD decide por fim retirar proposta de redução do IVA.

Também o PCP e o Bloco de Esquerda veem as suas propostas rejeitadas na Comissão de Orçamento e Finanças.

6 de fevereiro: O debate sobre o IVA da eletricidade regressa ao parlamento por avocação (a avocação para plenário é uma figura regimental que permite repetir uma votação na comissão no plenário). Se as propostas retiradas em comissão não podem ser avocados em plenário — sendo o caso da baixa do IVA para 6% do PSD — as que foram chumbadas podem sê-lo e há três a considerar por esta altura: a do PCP, com a descida do IVA a partir de julho, a do BE, para baixar essa taxa a 13%, também a partir de julho, e as do PSD sobre as contrapartidas por perda de receitas.

É então que o PSD anuncia que irá votar a favor da proposta do PCP de redução do IVA da eletricidade — o que acaba por não acontecer no momento da votação final devido a uma alteração no guião.

O que aconteceu? A estratégia do PSD passava por primeiro aprovar a proposta do PCP e depois eventuais contrapartidas. Com a descida do IVA na luz aprovada ficaria o PS com o ónus de aprovar medidas compensatórias depois.

O que aliás é assumido por Duarte Pacheco, que reiterou que, se tivesse sido respeitada a ordem do guião, o PSD teria votado a favor da proposta do PCP de redução do IVA de 23 para 6% e, depois, “o PS teria nas mãos” a aprovação ou não das contrapartidas do PSD para compensar a perda de receita - cortes nos gabinetes ministeriais e, sobretudo, entrada em vigor da medida apenas em 01 de outubro e não em 01 de março, como defendia o PCP.

No entanto, o PS propôs que a ordem da votação fosse a mesma da comissão de Orçamento e Finanças, na madrugada — primeiro votar as compensações orçamentais e a data de entrada em vigor (outubro) proposta pelo PSD e só depois a própria baixa do IVA proposta pelo PCP.

O PSD contestou a alteração e o presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, resolveu deixar a decisão ao plenário. A mudança na ordem das votações foi aprovada com os votos a favor do PS e PAN e com as abstenções de vários partidos, entre os quais o CDS e o PCP, que acabou desta forma por condenar o voto favorável do PSD à sua proposta de redução do IVA na eletricidade. (já que sem contrapartidas, os sociais-democratas não iriam deixar a proposta dos comunistas).

Assim, com uma mera alteração de guião o PS deitou por terra um dos objetivos políticos do PSD e de Rui Rio que era que o partido do governo fosse parte de uma solução de contrapartidas ou assumisse o custo político de não o fazer.

A proposta de PCP é então chumbada em plenário com os votos contra do PS, CDS, PAN e Joacine Katar Moreira (118 votos), com a abstenção do PSD (79 votos) e os votos a favor do BE, PCP-PEV, Chega e IL (33 votos).

Minutos mais tarde é votada a proposta do Bloco e chumbada com os votos contra do PS, CDS, PAN e Joacine Katar Moreira (118 votos) e os votos a favor do PSD, BE, PCP-Verdes, IL, Chega (112 votos).

Com o chumbo confirmado — António Costa conseguiu levar adiante o seu objetivo — seguiram-se as trocas de acusações entre Bloco de Esquerda, PCP e PSD.

No discurso de encerramento do debate na especialidade do OE2020, que antecede a votação final global do documento, Catarina Martins criticou PSD, PCP, CDS-PP, PAN e a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira pela "oportunidade perdida" e "irresponsabilidade política" do desfecho da "crise do IVA".

Rui Rio, por seu lado, apontou baterias ao CDS que acusou de ter votado "ao lado do PS e do PCP contra a descida do IVA com contrapartidas. O CDS disse que queria baixar o IVA e, na hora da verdade, colocou-se ao lado do Governo e graças ao CDS é impossível baixar o IVA”, devolveu.

O líder comunista, Jerónimo de Sousa, virou-se para o Bloco de Esquerda e disse que “não tivesse o BE aceitado credibilizar a encenação do PSD, acendendo à chantagem de aprovar as ditas medidas de compensação da receita para manter o excedente orçamental, e o PSD não teria tido sapatos para fazer o caminho que fez”.

O que poderia ter sido diferente?

Para que o resultado da votação pudesse ter sido outro duas coisas teriam de ter acontecido.

O CDS teria de ter alinhado na estratégia do seu tradicional parceiro, o PSD, e abster-se na votação das propostas do PCP e do BE (tal como tinha feito com a do PSD na Comissão de Orçamento e Finanças); e Joacine Katar Moreira teria de votar favoravelmente as propostas do PCP e do Bloco de Esquerda, como era expectável que fizesse caso cumprisse o programa do Livre com que se apresentou a eleições.

Logo na quinta-feira, dia da votação, os holofotes recaíram sobre a ex-deputada do Livre e agora deputada não inscrita - pelo facto de o programa do partido ser explícito na matéria do IVA do eletricidade.

A deputada (que perdeu recentemente a confiança política do partido) justificou os seus votos contra as propostas com a necessidade de manter a estabilidade do governativa e criticou-as por colocarem quem polui ao lado de de quem tem frio.

Mas o voto de Joacine Katar Moreira não seria definitivo sem abstenção do CDS. Então o que levou o partido agora liderado por Francisco Rodrigues dos Santos a votar ao lado do PS?

Conta o jornal Expresso na sua edição deste sábado que uma negociação ao cair do pano garantiu que as propostas de redução do IVA não passariam.

"Esta semana, o novo xadrez político pôs o CDS e o PAN no centro do jogo. Os dois partidos foram decisivos para que não passasse nenhuma das propostas de baixa do IVA da luz. Se com o PAN a ideia é continuar uma relação [com o PS] que se acentuou depois das eleições, o CDS foi uma surpresa. O Governo não vê os centristas como um novo parceiro, mas como um desbloqueador de problemas".

De acordo com o Expresso, o acordo entre socialistas e centristas teve o IMI como moeda de troca. "Se até à hora do 'não' centrista à redução do IVA, o PS não tinha votado nenhuma das propostas do CDS neste Orçamento, depois do último telefonema com Francisco Rodrigues dos Santos, pelas 20h [de quarta-feira], o PS aprovou três, todas sobre o Imposto Municipal sobre Imóveis (que não tem peso nos cofres do Governo mas nos das autarquias)".

Já durante o dia de ontem, sábado, o líder do CDS reagiu às notícias. “Eu vi noticiado em alguns órgãos de comunicação social que o CDS tinha estendido a mão ao Governo. Quero ser absolutamente claro nesta matéria. O CDS-PP não faz favores ao Governo socialista”, afirmou Francisco Rodrigues dos Santos. “A medida [redução do IVA], aos olhos do CDS, foi irresponsável e é verdade, quando o Governo, à semelhança do que fez com outros partidos, contactou o CDS, nós dissemos apenas, tão só, qual seria a posição do partido”, acrescentou.

O recém-eleito líder do CDS não deixou, porém, de dar o recado aos sociais-democratas: “Se o PSD quer derrubar o Governo, então deve dialogar à séria com o CDS e não encontrar parceiros na extrema-esquerda capazes de ajudar nessa tarefa”, sustentou, acrescentando que “da parte do CDS não há dificuldade nenhuma no diálogo”. O líder do CDS lembrou ainda que foi ignorado o apelo do partido para um entendimento a três (PSD, PS E CDS) para que fosse possível e viável descer o IVA da eletricidade.

Discussão política à parte, o facto é que o IVA na eletricidade se mantém inalterado na fatura porque o xadrez político o impediu.

Mas afinal porque é que estamos a discutir o IVA na eletricidade?

Para entender o que se passou na discussão e votação das propostas sobre a descida do IVA na fatura da eletricidade é preciso recuar um pouco no tempo e olhar para alguns números.

No segundo semestre de 2018, Portugal teve a eletricidade para consumo doméstico mais cara da União Europeia se medida em paridade de poder de compra (PPC) e a sexta mais cara se medida em euros.  Em euros, os portugueses pagaram 22,9 por 100 kWh, o sexto preço mais alto, com a Dinamarca no topo da tabela (31,2 euros por kWh), seguindo-se a Alemanha (30,0 euros por 100 kWh), a Bélgica (29,4€), a Irlanda (25,4 euros por 100 kWh) e a Espanha (24,8 euros).

No primeiro semestre de 2019, registou-se uma melhoria no valor que as famílias pagam pela eletricidade, ficando Portugal "só" com a oitava eletricidade mais cara da União Europeia mediante uma redução de 4,1% no preço do kiloWatt/hora. Um lugar no ranking contabilizado com os impostos incluídos, sendo que livre todos os impostos e taxas a fatura da eletricidade doméstica colocava Portugal no 19ª lugar dos países que mais pagam (tendo oito países a pagar menos) e com o IVA a 6% posicionava o nosso país em 12º lugar (com 15 países a pagar menos).

créditos: DR

O peso das taxas e impostos no preço total da eletricidade para consumo doméstico é, em Portugal, o terceiro mais alto da Europa, representando 49% e apenas sendo ultrapassado  pela Dinamarca e Alemanha.

O que propunham os partidos nos programas com que concorreram a eleições sobre a redução do IVA na fatura da eletricidade?

Os números justificavam, por isso, que o tema da fatura elétrica paga pelas famílias e, em particular, o peso dos impostos, fossem alvo de atenção nas legislativas do ano passado.

E foi o que aconteceu, sendo o tema inscrito no programa de vários partidos e tendo pelo menos quatro deles proposto de forma expressa a redução do IVA na fatura da eletricidade. Senão vejamos:

"1.12.2. Descida do IVA da eletricidade e do gás para 6%

A par das rendas excessivas pagas às grandes empresas do setor, a introdução, sob o memorando com a troika, da taxa máxima de IVA sobre a eletricidade e o gás, bens de primeira necessidade, é dos principais fatores de agravamento dos custos energéticos nas economias domésticas em Portugal. De acordo com o governo, a perda fiscal líquida resultante desta medida é de 770 M€ por ano."

PCP

"IVA: redução da taxa normal do IVA para 21%; criação de um cabaz mais alargado de bens essenciais taxados a 6%, incluindo a electricidade o gás natural e o gás de botija"

Livre

"Reduzir o escalão do IVA de 23% para 6% em todos serviços essenciais de fornecimento de energia, mais concretamente na eletricidade e no gás (natural e engarrafado), para diminuir os encargos das famílias."

Também PSD e Iniciativa Liberal fazem referência expressa à necessidade de baixar o IVA na fatura de eletricidade.

PSD

"Redução da taxa de IVA aplicável ao consumo de eletricidade para uso doméstico."

Iniciativa Liberal

"O preço elevado da energia resulta numa degradação relevante da qualidade de vida dos portugueses. Em 2017, 22,5% dos residentes em Portugal tinha dificuldade em aquecer a casa no Inverno. Assim, e sendo um bem de primeira necessidade, não se considera adequado que a energia (eletricidade e gás) esteja sujeita à taxa normal de IVA de 23%."

O CDS, que não inscreveu de forma concreta a  proposta de redução do IVA na eletricidade, fez, no entanto, da baixa de impostos a sua principal bandeira. E , sobre o custo da eletricidade, escreveu: "Contudo, o país está hoje a pagar uma fatura elevada pela forma custo-ineficiente como os Governos do PS planearam os investimentos no setor elétrico. Sem os cortes de 3,4 mil milhões de euros nas rendas do setor elétrico – implementados pelo Governo PSD/CDS – o défice tarifário seria de 6 mil milhões de euros em 2020 e não de cerca 600 milhões, como é agora expectável. Não tenhamos dúvidas. Nos próximos anos terão de ser prosseguidos os esforços de redução do “sobrecusto socialista”, de forma a tornar a indústria e a agricultura mais competitivas, e assegurar preços mais acessíveis para os consumidores residenciais", acrescentando como frase de destaque no seu programa o propósito de "libertar as famílias e as empresas da maior carga fiscal de sempre".

Fechada a campanha e realizadas as eleições, resultou para o país um cenário parlamentar em que o partido vencedor das eleições e que foi chamado a formar governo  foi o PS - que não tinha esta medida inscrita no seu programa eleitoral, mas que também não contava com maioria parlamentar para inviabilizar propostas que merecessem a aprovação geral dos restantes partidos. Recorde-se a atual composição parlamentar:

PS: 108 deputados

PSD: 79 deputados

BE: 19 deputados

PCP: 10 deputados (PEV: 2 deputados)

CDS-PP: 5 deputados

PAN: 4 deputados

IL: 1 deputado

Chega: 1 deputado

Livre (agora Joacine Katar Moreira como deputada não inscrita): 1 deputado

Neste cenário, importa também referir a posição do Chega e do PAN para entender o xadrez político que recebeu, discutiu e votou as propostas de redução do IVA da eletricidade.

No caso do Chega, a referência que se encontra no site do partido liderado por André Ventura é a seguinte: "Menos impostos e custos pagos por intermédio da conta de electricidade, pois que são eles os culpados de termos uma das mais caras electricidades da Europa", de onde se conclui a intenção de apoio a medidas de redução da carga fiscal nesta matéria.

No caso do PAN, não existe referência expressa à redução do IVA na fatura da eletricidade, existindo apenas proposta para "garantir a inclusão de uma taxa social fixa para quem não beneficia de uma produção local descentralizada, evitando, deste modo, um aumento significativo das tarifas fixas para o consumidor final".

Neste cenário, seria plausível pensar que - à exceção do PS e eventualmente do PAN por ausência expressa de menção - a redução do IVA da eletricidade seria uma proposta que poderia ser aprovada com uma maioria dos partidos da oposição (PSD, BE, PCP/PEV, CDS-PP, IL, Chega e Livre) que juntos somariam 118 votos versus 112 do PS com o PAN.

E, se a discussão estivesse circunscrita ao tema efetivo - baixar o preço que as famílias pagam pela eletricidade - seria expectável que tivesse acontecido. Mas esse seria um cenário que não levaria em conta os objetivos políticos - mais ou menos claros - de cada partido e que, no final do processo, acabou por condenar qualquer uma das três propostas que chegaram a ser elaboradas.