1. Não vai ser fácil, mas é possível que Fernando Haddad seja o próximo presidente do Brasil. Portanto, resta lutar até já não ser possível. E o primeiro ponto da luta será esse: acreditar.

2. Existem mais de 40 milhões de possíveis votos sem candidato: 7,2 milhões de nulos, mais 3,1 milhões de brancos, mais 29,9 milhões de abstenções. Depois, há os que não passaram à segunda volta, 13,3 milhões de Ciro Gomes, 5 milhões de Geraldo Alckmin, e por aí abaixo, num bolo acima de 25 milhões. O que significa mais de 65 milhões de votos não-atribuídos a Bolsonaro nem a Haddad. A diferença entre ambos na primeira volta foi grande (de 49 para 31 milhões). Mas a margem para reverter isso na segunda volta é muitíssimo maior.
O futuro do Brasil vai jogar-se no trânsito destes votos.

3. Haddad não deverá perder os que já teve, são votos convictos, teimosos ou apenas úteis, e não deixarão de o ser. Mas Bolsonaro é um fenómeno volátil, que aproveitou muito o efeito de contágio, a tendência de seguidismo. É preciso, e possível, roubar votos a Bolsonaro.

4. Por exemplo, o voto evangélico, que largamente se entregou a ele nas vésperas da primeira volta, depois do apoio do caudilho da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, e do seu exército mediático, TV Record à cabeça. E é aqui que entra — aliás, poderia entrar, a ver vamos — Marina Silva.
Na noite da primeira volta, era difícil acreditar que aquela mulher zangada, humilhada, era a mesma que em 2010 foi o fenómeno da eleição. Cobri essa campanha, vi Marina galvanizar gente com a sua história de negra, pobre, quase-freira católica convertida à igreja evangélica, vinda do Acre, a segurar causas ambientalistas que o PT deixara cair. Ela rompera com o lulismo e teve 20 milhões de votos. Daí nasceu o partido REDE, que convenceu muita gente. Mas de erro em erro — incluindo ter apoiado Aécio Neves contra Dilma em 2014, um homem agora apoiante de Bolsonaro — , Marina chegou à derrocada de domingo passado. De vinte milhões para um milhão de votos. E que contraste penoso aquela expressão, aquele longuíssimo discurso, face ao bom humor de Ciro Gomes, que minutos antes, cercado de apoiantes, ria e dizia que estava indo para o barzinho.
Domingo parece ter sido o epílogo de Marina Silva como candidata. Mas estas duas semanas até dia 28 poderiam ser uma grande volta por cima se ela quisesse, e soubesse, apelar a um campo que conhece bem: o povo evangélico, branco e negro. Este é o momento de Marina Silva ser muito maior do que a sua derrocada, muito maior do que os erros dos últimos anos, com um discurso que mobilizasse a faixa flutuante de votos que não eram de Bolsonaro há umas semanas, ou há uns meses. Esperei, em vão, que na noite eleitoral Marina dissesse com clareza onde estava. Se quer dar algo mais ao Brasil, é a hora. Trabalhar para Haddad ganhar, não pondo o anti-pêtismo acima da democracia.

5. Ciro foi o grande orador dessa noite, em que perdia, mas não perdeu. Lamentei a vice que ele escolheu para a sua candidatura — uma defensora do agro-negócio —, bem como o que ele escolheu dizer, por exemplo, em relação ao resultado do movimento #elenão. Mas o Brasil precisa de Ciro, e do efeito diluidor das tensões anti-pêtistas que Ciro pode ter — tanto quanto, ou onde, elas puderem ser diluídas, porque muitas já se transformaram em brigadas de extermínio. A campanha de Haddad precisa das qualidades de um Ciro Gomes bem visível.

6. Quando Haddad apareceu na noite de domingo, a seguir a Ciro e Marina, parecia não apenas exausto como atordoado. Lia-se na cara dele: eu não quis isto, eu não quis este peso de toneladas, este duelo com o inferno. Parece-me difícil não gostar de Haddad, apesar daquilo que no PT não está à altura de Haddad. Mesmo alguns anti-pêtistas ferrenhos que conheço simpatizam com Haddad. Mas será preciso muito mais para Haddad arrebatar estas duas semanas. Será preciso ele fazer-nos acreditar que quer mesmo ser presidente, e vai mesmo ser presidente.
Passei o mês de Agosto no Brasil intrigada com a estratégia do PT, por que demoravam tanto a passar a chama a Haddad. Pareceu-me um erro atirar para tão tarde o seu protagonismo, quando tanta gente ainda mal o conhece. O que tem pela frente agora é monumental, e ele nunca terá imaginado a que ponto. O quanto o mundo estaria agora a olhar para o Brasil na beira do abismo.
Haddad tem currículo como académico e político, ministro da Educação e prefeito de São Paulo. Tem a ficha limpa no capítulo corrupção. E um charme natural, do violão à bicicleta. Só de o imaginar no Planalto já dá força. Mas ele próprio precisa de se convencer totalmente disso.

7. A emancipação de Haddad em relação a Lula é decisiva. Deixar de ir à prisão em Curitiba acertar estratégia. Os novos sinais de campanha apontam nesse sentido, incluindo não deixar o verde-e-amarelo para os fascistas. Haddad precisa de se apropriar de tudo. E o PT de perceber o que não resultou, não hesitando em pôr a democracia acima do partido.

8. Ao mesmo tempo, seria preciso que os anti-pêtistas ainda não enlouquecidos, que não andam a matar, ou a ameaçar quem vota Haddad, fizessem o mesmo, pusessem a democracia acima do seu bloqueio. Porque o PT tornou-se um bloqueio de muita classe média. Uma classe média que é pai, mãe, tio, primo, irmão de amigos meus. Amigos que podem ser LGBT ou mulheres e ouvem dos seus familiares que Haddad e Bolsonaro são dois extremismos, ou então que Bolsonaro é terrível, sim, mas não conseguem votar Haddad, porque isso é votar PT. E assim se preparam para pôr em perigo os próprios filhos, irmãos, sobrinhos.
Que não haja dúvidas sobre isto: votar nulo é eleger Bolsonaro. Ficar em cima do muro, também.
Estas duas semanas têm de ser a altura em que parte destes anti-pêtistas vão cair em si, vão deixar de só falar do PT ou de pôr culpa no #elenão, vão perceber que não é apenas de um demónio no Planalto que estamos a falar. É do incêndio nas ruas que Bolsonaro já ateou. Da pulverização do extermínio. Do terror.

9. O que aconteceu desde domingo já é o terror. Um mestre capoeirista morto na Bahia por um defensor de Bolsonaro depois de uma discussão política. Uma rapariga com uma camisa #elenão agredida por dois rapazes que lhe gravaram uma suástica a canivete na pele, e uma polícia tão absurda que se focou em negar que aquilo era uma suástica, porque os ângulos não estavam na direcção certa. Relatos diários de gente ameaçada de morte, insultada na rua. Mulheres chamadas de feminazis por estarem a ler ou a beber cerveja. Mulheres ameaçadas de violação. Gays ameaçados de porrada até se transformarem em homens. Depressão, medo, insónia, pânico.
Tudo isto é connosco, com cada um de nós. Os brasileiros em risco precisam de saber que não estão sozinhos. Mulheres, LGBT, negros, capoeiristas, macumbeiros, indígenas, precisam de apoio mais do que nunca, porque estão mais em risco do que nunca. A segurança de cada um deles é a segurança do Brasil, e vice versa. O Brasil não será um país se estas pessoas viverem com medo, ou se outros brasileiros acharem que não têm nada a ver com isso. O futuro só virá de o Brasil se conseguir defender do ódio, de superar esta pulsão de morte que o varre.

10. Não acredito que 49 milhões de brasileiros sejam fascistas, ou que declará-los como tal ajude a eleição de Haddad. Não é paternalismo, nem desvalorizar o horror do que levou muitos a votar. Uma parte deste votos é, sim, fascista, vingativa, nostálgica da ditadura. Outra será alucinada, doente, mórbida, comprazendo-se na ignorância.
Mas, de novo, acredito que há milhões no bolo de Bolsonaro que podem ser levados em outra direcção, que votaram nele por acreditarem nas fake news, nas mentiras contínuas, ao mesmo tempo que não acreditam no terror já espalhado pelos bolsonazis.
A campanha de Hadadd não lucra em ver estes 49 milhões como fascistas. Não faz sentido aliená-los como um todo, prescindir de toda essa gente. Não há muito tempo para desarmadilhar parte da banalidade do mal, mas tem de ser possível.

11. Ao mesmo tempo, estas duas semanas são também o momento para poderes económicos, grandes empregadores, tomarem posição. Seria decisivo que desfizessem os fantasmas de supostos pêtistas comedores de criancinhas. Que ajudassem a combater o medo e o ódio. Quem tem de facto poder no Brasil e se calar agora será cúmplice, responsável também.

12. Idem para a imprensa tradicional. Todos os jornais brasileiros deviam seguir o exemplo internacional e tomarem partido claramente: pela democracia, por Haddad. O mesmo para rádios e televisão, além da Globo (que, por sobrevivência, quererá combater a sua rival Record bolsonarista,). Sabe-se que há ordens para fabricar reportagens anti-Haddad na Record e cia. Terá de haver uma contra-corrente.
Estas duas semanas poderão continuar toda uma história negra da grande mídia brasileira, ou contrariá-la. E essa cobrança deve ser feita como nunca por quem vê, ouve e lê.

13. De resto, se as caras conhecidas do Brasil, as que têm de facto influência, na televisão como no cinema, na música como no desporto, esperavam por um momento em que valesse a pena tomar partido, esse momento é agora. É o momento desta geração.

14. Guilherme Boulos declarou de imediato que estaria com Haddad. Também ele, e tanta gente excelente no PSOL, teria — terá — muito a dar à campanha Haddad. Uma das alegrias de domingo, a festejar como inspiração, foi a eleição de várias mulheres negras, faveladas, da periferia. Frutos de Marielle Franco, a vereadora assassinada em Março no centro do Rio de Janeiro. Em Agosto acompanhei um pouco da campanha carioca de Mônica Francisco, Renata Souza, Dani Monteiro e sobretudo Talíria Petrone. Todas foram eleitas. Todas são parte da geração que nasceu com os novos acessos a educação e cultura, com as quotas negras para as universidades e outras acções dos governos Lula. Quem odeia de morte o PT e ao mesmo tempo não deixa de admirar a força destas mulheres, se calhar até votou nelas, tem de pôr isto na balança. Elas são também resultado do melhor do lulismo. E estarão na linha da frente da luta.

15. A hipótese de uma violenta distopia civil-militar da era digital já tem bolsas activas. Caso Haddad seja derrotado, será altura de lidar com isso. Até lá, é lutar por votos, milhões de votos. É isso que está em jogo nestes 15 dias. Não ir abaixo será também uma forma de honrar esta nova geração, descendente de quem sempre esteve afastado do poder. Se Bolsonaro ateou um Brasil de morte, há um outro Brasil que luta desde que nasceu para ficar vivo. E, pela primeira vez na história, também ele está sentado no Congresso, nas assembleias, pele negra, cabelo duro.