Sobre ela, não evito repetir sempre a mesma piadola imodesta, e apontar-lhe as “melhores iniciais da música feita em Portugal”. Nem que seja por estilhaços de alfabeto, uma associação à Uamusse é sempre apetecível. Mas, para os poucos que ainda não estão familiarizados com esta vigorosa presença no nosso panorama artístico, tentarei responder à pergunta: o que faz esta jovem de tão especial?

Música do mundo, é disso que se trata? É inegável que há mundo na música da Selma, mundos na própria Selma. Por todos os sítios onde foi nascendo e renascendo, a Selma Uamusse é também uma parteira: traz cá para fora culturas, canta as tradições que lhe estão no sangue, canta o presente onde habita, deixa-se cantar por uma esperança maior que a vida.

Música do mundo, portanto, até pelos pontos do globo que abrange. As pátrias da Selma são diferentes línguas, diversas batidas, costumes múltiplos e uma só Uamusse. Dizer-se que ela é natural de Moçambique tem precisão histórica, mas não passa duma verdade escassa; ela é natural em qualquer chão que pise, qualquer língua em que dance. A Selma foi uma prenda de Moçambique para Portugal, talvez até uma oferenda de paz. Se acreditarmos num virar de página, no amor que estes países ainda têm para dar um ao outro, então não há fruto mais doce que o celebre: colhido no Índico, amadurecido no Atlântico, com sabores de todo o lado. Ei-la, Uamusse.

Outra vez, música do mundo, e o que é isso afinal? É um contra-senso, é o que é. Diz-se da música que preserva uma tradição localizada e forte, uma identidade cultural íntegra, e a etnografia rica. Chamamos, portanto, Música do Mundo à música que em boa parte não se deixou contaminar pelo mundo (é um contra-senso, é o que é). Na Selma reconhecemos essa pureza, e o exotismo das canções que nos parecem chegar “doutro lado”, mas há muito mais do que isso. Há preocupações domésticas, temas próximos, e línguas francas que não podemos fingir desconhecer. Há partes contaminadas por influência de tudo o que se examina, pelo bem que se retém. E há canções de eternidade, uma cúpula maior que o mundo, maior que a música, maior que a mundana música do mundo.

Se tal ainda não aconteceu, Selma Uamusse é o nome de que vão ouvir falar. É de quem vão querer falar quando a ouvirem. Conhecê-la, porém, não é condição para que se abandone a surpresa. Na biografia desta luso-moçambicana nem tudo aponta para o incomensurável talento que hoje lhe podemos escutar. Há dificuldades, lutas, emancipações, e até um curso de engenharia - relatos que não fariam prever tão determinante encontro com a música. Da adolescente que trabalhava e estudava, até à mulher que é nome sólido do Gospel português, mulher que se dá com a realeza do rock‘n’roll nacional, mulher que se tornou herdeira legítima do gloom da Nina Simone, mulher que é um dos mais fiáveis trunfos para os músicos que a rodeiam, vai uma história inesperada.

Cantar não estava nos planos da Selma Uamusse. Dir-se-ia que foi por acaso, se a palavra “acaso” não nos deixasse um amargo de boca blasfemo. Tal como nas histórias dos grandes profetas, ela não planeou a tarefa a que agora se entrega. É um desígnio maior que escutamos naquela voz maior. A Selma foi chamada no mesmo sentido em que foi dotada; o apelo e o talento com a mesma proveniência. É por isso que se escutarmos o vozeirão dela com atenção (com verdadeira atenção) também conseguimos ouvir um sussurro humilde de orações. Ouvimos “Eis-me aqui, envia-me a mim”. Ouvimos “kanimambo”. Dir-se-ia que foi por acaso, mas só se tivermos o coração irremediavelmente endurecido.

Consta que há um acorde secreto que David tocava e agradava ao Senhor. A Selma Uamusse sabe-o de certeza, e usa-o para cantar música que não é do mundo. O mundo não é suficiente.

SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO

Ainda na música, logo à noite é a última hipótese de participarem neste evento beneficente. A Márcia e o Tiago a disponibilizarem talentos para que possamos disponibilizar solidariedade.

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