Há uma teia que tece várias histórias: a da exposição, a do António e a minha. Convidou-me para fazer a pesquisa que daria origem a um documento que queria escrever sobre a cidade imaginada, a ideia de propor ao Governo de Aníbal Cavaco Silva que Lisboa se candidatasse a receber a exposição mundial de 1998. 

Tudo começou nove anos antes, em 1989. Fui à cata da informação que existia, tinha eu 18 anos. O António 42. Cruzámo-nos primeiramente no Correio da Manhã Rádio, ele a gravar o programa A Voz Humana, com o Paulo Alves Guerra, eu a assistir à gravação do Império dos Sentidos, um programa de Inês Pedrosa, para o qual tinha escrito um texto. Tirei os óculos da carteira e o António disse: “Ah, duas personalidades, uma com óculos, outra sem”. Nunca os usava quando conversávamos, porque tiro sempre os óculos quando estou com pessoas de quem gosto. E era fácil gostar do António. 

Quando precisou de alguém para a tal pesquisa, a Inês perguntou-me se eu estaria disponível. A minha luta para ganhar dinheiro era insana, alguns dias não havia mesmo milagres gastronómicos, por isso respondi que sim com entusiasmo. A minha relação de amizade com o António começou assim. Depois passou a ser uma relação amorosa, como são todas aquelas amizades que se tornam maiores. Nunca tivemos um desacato, tivemos pequenos desgostos, mas nunca uma troca de palavras que se possa classificar como agreste ou infeliz. Conversávamos acerca de tudo e muito sobre a ideia para a Expo 98. 

Trabalhei muito, muitíssimo, para a exposição que haveria de mudar toda a face oriental da cidade de Lisboa. Nunca coleccionei nada, nunca arquivei nada. O que não me deixa compor com exactidão tudo aquilo que fiz, porque a memória está num estado lastimoso, tenho uma vaga ideia do tanto que fiz. O António, pelo contrário, era um coleccionador de coisas, de momentos, de palavras e tinha uma memória invejável. Uma memória que escapava a muitos ao seu redor. 

A Expo 98, dedicada aos oceanos, fez-se há 25 anos. Durante 18 anos vivi no Parque das Nações. O António dizia que era um bom sítio, mas que não se imaginava a viver numa zona da cidade cuja história estava por escrever, mesmo que tivesse sido ele o responsável pelo primeiro capítulo. Amava toda a Lisboa, mas era na Lisboa histórica que se reconhecia, era aí que se encontrava. Sobre isso escreveu muito, escreveu livros incríveis. Resultante de uma conferência que proferiu, foi lançado na segunda-feira um volume sobre Lisboa da sua autoria, com fotografias de Kenton Thatcher. 

Era um homem especial. Gostava de escrever livros. Escreveu muitos. Poucos meses antes de morrer, dizia-me que queria escrever uma crónica sobre a história do Rei Sebastião. Aqui fica: o rei Sebastião parte para negociar com Filipe II uma empreitada contra os mouros e precisava de reforços militares. Passaram alguns dias em grandes comezainas e conversas sobre as possibilidades de conquista. Estamos em Dezembro de 1576. Por fim, o rei espanhol recusou as ideias de Sebastião e este, furibundo, interpelou o duque de Bual, braço direito de Filipe: “O senhor duque sabe qual é a cor do medo?” O duque encarou o jovem rei português e terá respondido: “Senhor, a cor do medo é a cor da prudência”. O António não tinha medo das ideias nem das conquistas. Prudência era uma cor que não lhe fazia falta, porque a sua inteireza estava também numa ideia de risco. 

Celebram-se 25 anos da Expo 98. Lisboa tem hoje uma rua com o nome do António, e uma biblioteca com o seu nome que a Faculdade de Letras irá gerir. Além de um centro interpretativo sobre a Expo 98. Todos nós temos o que ele imaginou na e para a cidade e uma obra que irá perdurar.  Os amigos têm um outro tanto.