Nos dias que correm, ouvimos falar muito de liberdade. Discute-se a liberdade do indivíduo face ao Estado que lhe impõe medidas restritivas para conter a pandemia ou da liberdade das mercadorias e dos capitais que não devem conhecer fronteiras, mesmo quando o mundo enfrenta uma crise terrível. Nas vésperas do 25 de Abril de 2021, estará (uma vez mais) na hora de refletir: afinal, o que é a liberdade?
Nos dias que se seguiram à queda da ditadura fascista do Estado Novo, centenas de presos políticos foram libertos das prisões políticas da ditadura: Caxias e Peniche. Ao vermos as suas imagens sorridentes e ouvirmos os seus testemunhos, as palavras “libertação”, “livre” e “liberdade” repetem-se. Após 48 longos anos de tortura e repressão, havia chegado essa tal liberdade. A democracia portuguesa é filha do período revolucionário que se seguiu. De acordo com a Constituição de 1976: "Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa". Este não foi um período de devaneio juvenil ou utopia, é a fundação do que somos ainda hoje. Garantiram-se as liberdades de expressão, associação, imprensa e o sufrágio universal. No entanto, encetou-se num projeto emancipatório que queria muito mais que isso: o seu propósito era o da liberdade para todos e todas, de viver com dignidade e de quebrar com a opressão.
Deparamo-nos, então, com a questão: do que falamos quando falamos desta liberdade saída do 25 de Abril? Nas décadas que se seguiram à Revolução, insistiu-se na narrativa da Evolução (sem R): o 25 de Abril, seguido de um período de alegada turbulência social, foi um caminho a direito até a uma “normalização democrática”, até à adesão à CEE, até às privatizações. A ideia de liberdade, modificada e com um novo embrulho, foi mobilizada para este projeto revisionista. Existe, assim, uma direita que fala da liberdade como algo que os indivíduos ganham mediante a diminuição da força do Estado, tentando apropriar-se da palavra e ressignificá-la. “Liberdade” para pagar menos impostos, salários baixos, para cobrar mais rendas e cortar apoios sociais. Liberdade para o capital, injustiça para quem vive dos rendimentos do seu trabalho.
A liberdade do 25 de Abril era a de viver dignamente, da saúde para toda a gente, da educação para todas as crianças e de tomar nas mãos o destino das nossas vidas. A liberdade de romper com praticamente meio século de fascismo que nos havia trazido até à década de 1970 com cerca de 30% da população a viver na pobreza e sem habitação digna e 25% sem saber ler nem escrever. Foi esse projeto de construção do Estado Social e de democratização da economia que nos deu, por um lado, a Constituição de 1976, mas também a massificação da Escola Pública que efetivou o combate ao analfabetismo e à iliteracia, direitos para quem trabalha, como o Salário Mínimo Nacional e o Serviço Nacional de Saúde que permitiu a Portugal reduzir drasticamente a mortalidade infantil e hoje responder eficazmente à pandemia de COVID-19.
Chegados a 2021, ainda temos muito caminho para andar na senda do que se sonhou há 47 anos. Por todo o lado, essa nova-velha direita radical que tem ensaiado uma ofensiva revisionista procura reabilitar a memória de uma ditadura fascista que matou e torturou milhares, tanto em Portugal como nas ex-colónias. Simultaneamente, vivemos ainda num país que, tendo descolonizado em 1975, nunca se descolonizou a si próprio, à sua narrativa oficial e à sua memória. Portugal tem um longo passado de colonialismo: de seis milhões de pessoas escravizadas traficadas entre África e o Brasil, de expedições punitivas, de trabalho forçado até à segunda metade do século XX. Assim, somos herdeiros de uma sociedade estruturalmente racista e lusotropicalista que continua a oprimir, violentar e excluir milhares de pessoas racializadas. A liberdade pela qual lutam é também a de poder existir, a de viver em paz.
Durante os longos anos do Estado Novo, as mulheres tiveram sempre um papel central na luta antifascista. Centenas foram presas e torturadas pelo seu papel de resistentes, organizando-se nos seus locais de trabalho, liceus e faculdades ou vivendo na clandestinidade. Estas mulheres lutavam pelo fim da ditadura e da repressão e, ao mesmo tempo, contra uma sociedade profundamente patriarcal que lhes impunha um rígido papel de mães e esposas obedientes. O 25 de Abril marcou um tempo novo, permitindo que florescesse em Portugal a luta por uma sociedade onde as mulheres não são mais atores secundários. Nos anos seguintes, elas arregaçaram as mangas para construir a revolução e o sonho de uma sociedade mais justa. No entanto, ainda há muito por fazer. Desde 2004, 564 mulheres foram mortas em contexto de violência doméstica. Das mulheres assassinadas em 2020, em 63% dos casos já havia violência prévia e em 40% até ameaças de morte. A diferença salarial entre homens e mulheres continua a rondar os 15% e, com a pandemia, vimos que fomos mais afetadas pela perda de rendimentos e despedimentos. A liberdade a sério só existe quando todas formos livres para existir sem pedir licença e viver uma vida igual à dos nossos companheiros homens.
O neoliberalismo, com um Estado reduzido, privatizações dos setores chave da economia e desregulação das relações laborais, não poderia estar mais distante da liberdade que se conquistou a partir daquele dia 25 de Abril. Se o Estado não se impuser às desigualdades, elas impõem-se a todas e todos nós. Em 2021, queremos aprofundar essas liberdades: viver num país onde não temos que temer a discriminação e a violência e no qual o acesso à saúde, educação, habitação e trabalho com direitos são garantias inalienáveis. Só assim se é livre.
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