1. “ A cidade chora.” Foi assim que Julio respondeu quando lhe escrevi na segunda-feira. Ecio acabava de morrer, de um cancro de pulmão fulminante. Primeira manifestação a 21 de Maio. Internamento, radioterapia. E, dois meses depois, Ecio morreu no hospital. Acompanhei dia a dia no grupo de WhatsApp que alguns próximos criaram. Ecio tinha feito 50 anos pouco antes de adoecer, festejados como ele adorava, com a camiseta do Vasco de Gama, seu time de sempre, correndo atrás da bola com os amigos, lá em Olaria, junto ao Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, onde crescera. Era, na origem, um carioca branco, pobre, da periferia. E dedicou a vida a mudar isso: pôr a periferia na cidade, a cidade na periferia. Instigar todos a falar, criar, tocar, trocar, improvisar.
Ecio Salles foi uma das pessoas que eu vi a mudar a ideia de cidade, numa das cidades mais belas, trágicas e violentas do mundo. E tenho visto como a corrente de amor pelo que ele foi, e fez, não pára. “A cidade chora”, respondeu Julio. Era ele o grande parceiro de Ecio nessa ideia: Julio Ludemir. E vai ser ele a levá-la.
2. Consultei o meu mail, e a primeira vez que vi o nome Ecio Salles foi ainda em 2010, acabada de chegar ao Rio de Janeiro como correspondente. Eu queria fazer uma história sobre Otávio Júnior, jovem livreiro do Complexo do Alemão, e um amigo escritor, Luiz Ruffato, mandou-me um mail com o mail do Ecio a dizer que ele saberia ajudar. Soube sim, trocámos mails nesse Dezembro que agora parece de outra era, e no fim da assinatura vejo o que Ecio ainda fazia na altura: era Secretário de Cultura em Nova Iguaçu. Aquilo que em Portugal se chama vereador. Nova Iguaçu é um município na Baixada Fluminense. Digamos, o fundo estatístico do Rio de Janeiro. Não só longe do centro, mas pobre e violento. Publiquei a história com Otávio no Alemão, e nunca mais deixei de estar em contacto com Ecio. Através dele conheci Julio, que se tornou um amigo próximo. Julio é flamenguista devoto. Sobrevivi com ele a jogo no Maracanã.
Pois na terça-feira, quando o corpo de Ecio foi velado na Biblioteca Parque da Avenida Presidente Vargas, um dos equipamentos de cultura onde eles fizeram acontecer coisas, nesse centro do Rio tão ao deus-dará, Julio estava lá vestido como nunca imaginara: com a camiseta do rival Vasco da Gama. Li isso agora, quando ia fazer esta crónica, num post de outro amigo, Marcelo Moutinho. Então antes de começar a escrever mandei uma mensagem a Julio a dizer como achara lindo aquilo. Ele, que além de dinamizador cultural é escritor no duro, não tinha conseguido escrever ainda uma linha na morte do grande amigo. E sobre a camiseta disse: “Precisava estar com algo que ele ame de verdade.” Usou o verbo assim no presente.
3. Foi de Julio a ideia que tornou este par — Julio Ludemir/Ecio Salles — uma referência bem além do Rio de Janeiro. Porque eles conseguiram, na verdade, levar muitos pedaços do mundo para a periferia, e vice-versa. Tive a sorte de ver essa ideia começar, fiz uma reportagem para o “Globo” quando ela se multiplicou por várias favelas, em sessões lotadas que misturaram jovens periféricos com escritores internacionais, o que me permite agora reconstituir datas e lugares com Ecio.
Na era entre o último governo Lula e o primeiro governo Dilma, de 2010 para 2011, justamente quando comecei a morar no Rio, ainda havia expectativas na cidade em relação às chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) nas favelas. Tanto que Julio, inspirado pela Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, pensou numa Festa Literária das UPP, a FLUPP. E foi falar com o seu amigo Ecio, que já tinha todo um trabalho com as periferias. Ecio foi curador do selo Tramas Urbanas na editora Aeroplano (de Heloísa Buarque, sua grande incentivadora), fizera o livro “Poesia Revoltada” sobre hip hop no Brasil e “História e Memória de Vigário Geral”, depois da chacina que em 1993 aconteceu naquela favela, colaborara com o Afro Reggae (também em Vigário Geral), com o Observatório das Favelas (na Maré), era uma cria do Alemão, estava na cultura da Baixada, estudara jornalismo, haveria de doutorar-se na UFRJ. Muito calo na luta contra várias espécies de discriminação, incluindo a racial, ele que era marido de uma negra, pai de meninas mestiças.
Ecio e Julio chamaram parceiros como o antropólogo Luiz Eduardo Soares, a ensaísta e crítica Heloísa Buarque de Holanda, o ex-colega de Julio no “Jornal do Brasil”, e então editor do programa “Fantástico”, Toni Marques. Foram agregando escritores publicados, e em 2012 já tinham em curso as sessões preparatórias da FLUPP, que eram a FLUPPensa. Encontros, debates, workshops em que escritores traziam experiências e comentavam os textos experimentais de jovens das favelas. Uma sequência de sábados históricos.
No de São João, a 23 de Junho, no Complexo do Alemão, estavam por exemplo Luiz Ruffato, Paulo Scott, Silviano Santiago, e tudo acabou com uma festança junina no quintal da mãe de Ecio, em Olaria. Foi a maior fogueira de São João que vi na vida. Com o doce que não falta em qualquer festa junina, grande tradição do Brasil: canjica. No Rio trabalho sempre é algum modo de festa, e eu já tinha estado com Ecio em roda de cervejinhas na livraria Folha Seca, um dos seus poisos de “armação”, ou seja de combinações. Mas ali era Ecio radiante à luz da fogueira, com a família e os amigos, naquela aldeia que é todo o quintal de periferia carioca. Nunca esqueci essa noite, e acabei por a pôr numa passagem do romance carioca que depois escrevi, emprestando a um dos meus personagens, Gabriel, duas ou três coisas daquelas origens de Ecio. Os personagens são sempre feitos de mil estilhaços, muitas vezes difíceis de localizar, mas esses são muito claros. Homenagem.
No sábado seguinte estávamos na Mangueira. Depois encontrámo-nos todos na FLIP de Paraty, onde eu e Ecio esse ano fomos moderadores. De volta ao Rio, segunda-feira a FLUPP ocupou o Morro dos Prazeres, com escritores internacionais que tinham vindo da FLIP, como Hanif Kureishi ou Zoé Valdés, entre bloguers, activistas e vários meninos e meninas cariocas que hoje estão aí a mil, como Bruno Duarte ou Vivi Salles. E terça-feira, no Morro do Cantagalo, Ecio esteve imparável das onze da manhã às oito da noite, articulando escritores como Teju Cole ou Suketu Mehta com a plateia, lotada. Como fazer literatura num lugar onde as pessoas não têm nem acesso a saúde?, perguntava uma moça. Batalhas de rap free style, dança do passinho para 200 crianças. “Esta é a quinta vez que falo no Brasil mas a primeira em que vejo um número significativo de pessoas da minha cor”, disse Teju Cole. A fechar a noite, Julio, sempre emotivo: “Isso era absolutamente impossível, só na cabeça de um flamenguista.” O que Ecio, claro, não deixou passar, logo puxou do Vasco.
Foi no fim do começo dessa incrível aventura que Julio resumiu: “Todos os lugares da cidade serem de todas as pessoas. A cidade é tua, cara. A cidade é nossa.”
4. A expectativa das UPP foi-se. Mas a FLUPP continuou, passou a significar Festa Literária das Periferias, FLUP. Atravessou todos os desastres dos últimos anos, o golpe que derrubou Dilma, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro. Quando Ecio foi hospitalizado, Julio voltou de Londres, onde estava numa espécie de sabática, aterrou de pára-quedas para pegar na FLUP. Conduziu-a sozinho neste último pós-FLIP, um longo 15 de Julho com mil pessoas a assistir (feminismo negro: Grada Kilomba, Conceição Evaristo, Flavia Oliveira, Ana Paula Lisboa). “Começámos às 10 da manhã e fomos até às duas da madrugada, com uma fila de autógrafos que não terminava nunca.” No centro do Rio de Janeiro. Segunda-feira, Ecio será celebrado num Sarau de Sétimo Dia. Sarau é como no Brasil se chama um recital. O Circo Crescer e Viver, dirigido por Júnior Perim, abre as suas portas para isso, as receitas do bar revertem para a família, e o sarau terá poemas, histórias, música. “É o compromisso ético URGENTE de quem dividiu espaços-tempos de invenção de um novo horizonte utópico para o Rio de Janeiros”, diz o convite.
E há um livro para sair. A biografia de Pai Santana (1932-2011), lendário massagista do Vasco da Gama, que também servia de líder espiritual. Ecio trabalhou nisto nos últimos anos. “O futebol, o carnaval, a umbanda, as estratégias de afirmação da negritude, da reinvenção e reencantamento da vida. Tá tudo ali.” Escreveu Ecio na última mensagem que recebi dele.
É muita herança. Resta levar adiante.
5. A crónica teria acabado aqui, mas Julio ainda me contou uma história que ele acha das mais fundadoras na vida de Ecio. Na adolescência, Ecio teve tuberculose e passou três meses a ler Machado de Assis. “Voltou para a escola uma outra pessoa. Mudou inclusive sua sexualidade. Ganhou seu primeiro beijo na boca empoderado pelo Machado.”
Quem leu “Dom Casmurro” não esquece aquele primeiro beijo lá. Para o olimpo dos beijos na língua portuguesa. Machado mudando a vida de Ecio, que mudou a vida de tanta gente, e isso meter beijos. Brasil.
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