Se eu soubesse responder, propunha-me já como Salvador… Não sei, mas posso levantar as permissas do problema, a ver se alguém descobre a quadratura do círculo!
Ultimamente dois acontecimentos paralelos dominam a atenção. Primeiro, as sucessivas vitórias, e ameaças de vitória, de líderes “iliberais”, ou seja, que pretendem subverter os sistemas democráticos que os elegeram. A Argentina e a Holanda são os últimos, mas a probabilidade é forte nos Estados Unidos e em França, isto para não falar na Espanha, onde um jogo pouco limpo permitiu manter no poder um líder que se diz socialista. Segundo, os sistemas democráticos estão a falhar na sua promessa mais aliciante, que é o bem-estar generalizado. Estamos focados em Portugal, evidentemente, mas o Reino Unido está tão mal ou pior (SNS a desfazer-se, custo da habitação impraticável, etc) e os Estados Unidos, que nos mostram o paraíso nos seus filmes, têm 11,5% de pobres e quase 2% vivem na rua.
A famosa “classe média” que foi quem inventou a democracia moderna, vê-se cada vez em maiores dificuldades em manter os padrões de vida que considera dignos para o seu estatuto, e não se considera representada pelos políticos profissionais que tomaram conta do sistema. (Não vou falar no “berço da Democracia”, a Grécia, porque foi há muito tempo e não era democracia nenhuma.)
É também na classe média que se encontram os anti-capitalistas, aqueles intelectuais (ou pretendentes) que não percebem que o capitalismo não é uma opção, mas sim uma componente do sistema produtivo. A questão é quem são os capitalistas, gordos detentores do capital (na mitologia da esquerda) ou as nomenclaturas que decidem como se gasta o capital, nos sistemas marxistas. O capital é indispensável para criar emprego, o problema está nas decisões erradas ou na corrupção dos que o controlam. Nos sistemas democráticos, supõe-se que o Estado limita os excessos dos capitalistas, mas a prática prova que isso não tem funcionado muito bem; basta constatar que 1,1% da população detem 45,8% da riqueza global.
Ou seja, a democracia política não implica a democracia económica. (Estou a simplificar, misturando países com diferenças entre ricos e pobres muito variadas, mas isso não invalida o argumento). Nos países de capitalismo de Estado, a percentagem é total: os “decisores” manejam 100% do capital disponível, supostamente para alimentar os 99,9% que não têm poder de decisão.
Mas não é o capitalismo que está aqui em discussão, embora não se possa ignorar a sua importância numa democracia política. O que gostava de considerar é o sistema democrático em si. Como é que um eleitorado pode escolher um líder cujo último interesse não é o bem estar dos eleitores?
Há aqueles que querem liderar pelo prazer egocêntrico do poder; há os que vêem uma oportunidade de enriquecer rapidamente, a eles e aos seus amigos, no exercício do poder; e há os que acreditam ter uma solução milagrosa para a felicidade geral. Estes três motivos não se excluem mutuamente; muitas vezes uma pessoa “mete-se” na política porque acha que tem as tais soluções milagrosas e depois, ao subir na hierarquia partidária, vai perdendo a inocência e pureza. Quanto à inocência, há que negociar, ceder e fazer ceder, para subir na carreira. Quanto à pureza, a ocasião faz o ladrão, como se costuma dizer; se há dinheiro a ganhar discretamente, em contratos que beneficiam todos, porque não? Daí a ganhar discretamente em contratos que não beneficiam ninguém, vai um aperto de mão. (Garanto que não estou a falar em nenhum país em particular; estas situações são universais, apenas variando os sistemas constitucionais e judiciais que os permitem e até oficializam.)
Nos tempos do “ancien regime”, isto é, nos tempos a que chamaremos, para simplificar, do “Trono e Altar” (até 1688 na Grã-Bretanha, 1789 em França, 1834 (1832-1834) em Portugal, não havia problemas filosóficos; os senhores eram senhores por hereditariedade, o povo obedecia porque era a vontade de Deus, e viviam todos em harmonia. Segundo me disse o conservador inglês que entrevistei, Tom Gallagher, “depois vieram os franceses com a revolução e estragaram tudo”!
Criou-se então o maravilhoso mito de que as pessoas escolheriam aqueles que melhor resolveriam os seus problemas. Assim nasceu a classe dos políticos vindos da plebe e que, muito naturalmente, defenderiam os interesses dos seus.
Não preciso (nem tenho tempo e espaço para) contar as histórias que esta nova teoria gerou, entre ditadores, populistas, líderes generosos e compassivos, malucos, oportunistas, idealistas, etc, etc. O que aconteceu, nestes cerca de 200 anos de democracias, foi que o sistema gerou uma perversão. A complexidade cada vez maior das sociedades exige políticos profissionais, a tempo inteiro e essa classe variada, mesmo oriunda da ralé, que acabou por se afastar dos seus eleitores e criou a elite daqueles que sabem governar - façam-no com boas ou más intenções. E, ultimamente, os governados começaram a sentir que essa elite se afastou da ideia original de representatividade e deixou de pugnar pelos seus interesses. Assim surgiu o chamado populismo, formado pelos políticos que se dizem anti-políticos para continuar a mesma política de sempre.
Só esta perversão do sistema explica o estado a que chegamos. Os eleitores, mal informados e ressabiados, escolhem democraticamente figuras que andam entre o perigoso (Hitler, Orban, Netanayu, tantos, tantos) e o caricato (Bolsonaro, Milei, Boris Johnson, tantos, tantos), para espanto e perplexidade da minoria que tem alguma cultura, sabe um pouco de história e tem um resto de bom senso.
Muito se tem escrito sobre isto. Longos ensaios com explicações lógicas para aquilo que a lógica não explica. O mais recente, de uma longa lista, é “A crise do capitalismo democrático” de Martin Woolf, que inspirou estas considerações.
A questão é simples: os pensadores políticos já perceberam que o sistema democrático contém as sementes da sua própria destruição. Em muitos países, líderes anti-democráticos foram ou estão para ser eleitos - para não falar daqueles países em que a democracia nem sequer teve uma oportunidade de falhar. Mas, se todos concordam que estamos perante uma crise de proporções globais, ninguém sabe como resolvê-la. Cada caso é um caso, ou, como dizem os pós-dependentes, um dia de cada vez. Enquanto isso, assistimos, de boca aberta, a vencedores de eleições com moto-serra que querem acabar com o ministério da educação, e esperamos que ganhem outros que querem limpar o aparelho de estado dos seus desafectos ou expulsar os emigrantes - a lista de inanidades aumenta todos os dias, assim como aumenta a possibilidade dos governados escolherem mal, muito mal.
Pode ser que as alterações climáticas se encarreguem de resolver estes problemas, matando toda a gente. Mas enquanto há vida - e democracia - há esperança.
Aceitam-se sugestões.
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